6 - caixas de fósforos jogadas no chão
QUANDO EU ERA pequena, lembro de ter uma conversa interessante com uma garota. Eu não podia atrapalhar mamãe durante suas aulas particulares, mas sempre que elas chegavam ao fim, eu saía do meu quarto e fazia companhia para qualquer que fosse seu aluno, até que um dos seus pais chegasse para buscá-lo.
Essa conversa em específico aconteceu na minha sala de estar, em uma época distante onde ainda tínhamos um sofá confortável. E a garota e eu conversávamos sobre a caixa de fósforos largada por algum motivo irrelevante no chão da minha cozinha.
— O meu irmão consegue queimar as pontas dos dedos sem sentir nenhuma dor - ela disse, os olhos fitando a caixinha com muito interesse. — Você sabe acender fósforos, Nina?
— Não, a Carmela diz que é perigoso.
Isso era verdade. Eu devia ter uns seis ou sete anos, e ainda não estava muito familiarizada com o mundo das mentiras. Eu era uma criança muito assustada, se quer saber, e pensar em fazer coisas minimamente erradas me deixava apavorada.
— Sabia que o meu sobrenome tem a ver com fogo?
Encarei curiosa a menina, que agora olhava para mim com os seus olhos grandes e castanhos.
Não lembro o que respondi, nem mesmo sei se insistimos nesse papo. A única coisa de que me recordo é que, assim que Frida Tropelia saiu da minha casa naquele dia, eu apanhei a caixa no chão e, ainda em pé no meio da cozinha, acendi o meu primeiro fósforo.
Espero paciente mamãe sair de casa na quarta à noite, avisando que não demora no mercado. Carmela está estudando no seu quarto, então vou nas pontas dos meus pés até a suíte dos meus pais. Papai nunca está em casa, e hoje em dia é raro até quando aparece durante os fins de semana. Muito trabalho, e viagens de Velha Laguna até Alto-Mar são demoradas e cansativas. Por isso, o quarto deles mais parece um quarto só da mamãe: roupas dela espalhadas, maquiagem na penteadeira, saltos na sapateira. Me pergunto se papai também se sente um intruso quando entra aqui, assim como eu nesse exato momento.
Preciso comentar que mamãe é uma típica senhora de meia idade. Ela pode não ser velha de verdade, mas é de espírito, e hoje eu agradeço por isso. Porque graças aos céus Dona Ângela nunca anota nada no celular ou em e-mails ou arquivos online. Tudo que ela considera importante está guardado nas suas agendas.
E ela tem um monte. Encontro todas empilhadas em uma gaveta da mesa de cabeceira, juntando poeira e informações desnecessárias e a esse ponto inúteis. E se minhas contas estiverem corretas, eu acharei o que procuro na agenda preta com os números 2-0-1-0 gravado na capa.
Bingo!
Tá bem, encontrar isso não ajudou tanto quanto eu imaginei que ajudaria, mas me esclarece algumas coisas importantes e que andavam me tirando o sono. Não há nenhum Lennon no seu nome. Também não há nada nele relacionado à droga das estrelas que ela usa como parte da sua assinatura. Mas o que esse A. significa?
A lista de sobrenomes com a letra A são imensas. Andrade, Alves, Almeida, Azevedo. Avante. Era só o que me faltava, Frida ser uma prima perdida ou sei lá o quê. De qualquer forma, seja lá o que A. significa, pode ser esse o outro sobrenome que ela anda usando por aí.
Lennon A. Interessante.
Busco o meu celular no bolso e tiro uma foto da página, guardando a agenda de volta na gaveta. Saio do quarto às pressas, fechando a porta com cuidado e seguindo pelo corredor até a sala como se nada tivesse acontecido, como se eu não tivesse acabado de cometer mais um ato rebelde inevitável.
Levo os meus olhos até a cozinha, encarando o piso onde, anos atrás, a caixa de fósforo estava jogada sem explicação. Minha primeira vez na terra da rebeldia, quando sem querer me apaixonei pelo frio na barriga e pelo fogo que segurava entre os dedos.
Quem diria que Frida Tropelia continua me transformando em uma garota rebelde depois de todo esse tempo.
LENNON ARAÚJO. LENNON Albuquerque. Lennon Avelar.
Nenhum desses nomes está no Facebook, Instagram ou Twitter. Juro que estou quase desistindo e procurando Lennon Avante de uma vez por todas, só pra tirar da minha mente essa ideia ridícula de que somos parentes.
— Não vai comer, Ninazinha? — pergunta Iara, apontando para o meu sanduíche devorado pela metade.
— Não, pode ficar.
Divido a mesa do refeitório com minha melhor amiga e, para o meu desgosto, o Juliano. Eles estão sentados juntos, Iara sendo abraçada por trás de um jeito muito sufocador. Lionel também divide a mesa com a gente, mas parece concentrado demais no livro que está lendo. Pelo menos eu não sou obrigada a prestar atenção no casal ridículo, porque estou muito ocupada tentando descobrir todos os sobrenomes existentes com a letra A nesse país. Um há de ser o certo. Eu não aceito ficar louca por causa disso.
O problema é que eu nem sei exatamente o que tô fazendo. Estou sendo movida pela curiosidade, e isso meio que tá atingindo proporções preocupantes. Porque uma coisa é você dar uma olhada no perfil de um amigo de infância ou de um cara bonito, outra é o que eu ando fazendo aqui. Só espero que toda essa minha paranoia seja justificável.
Eu conheço Frida há mais de dez anos. Quero dizer, eu conhecia Frida. E sei lá, é normal que você queira saber como andam as pessoas com quem você tinha contato antigamente, principalmente quando descobre que uma pessoa em específico mudou de nome por algum motivo misterioso. Acho que qualquer pessoa faria o que eu tô tentando fazer.
— Vocês acham que é difícil hackear o sistema da escola e encontrar dados de antigos alunos?
Meu Deus. Eu falei isso em voz alta?
— Quem você quer hackear, Nina? — pergunta Ju, uma sobrancelha erguida que me dá vontade de socar o seu rosto.
— Não é nada — resmungo, voltando a olhar para o meu celular. — É só uma situação hipotética. Pra algo que tô escrevendo.
Boa, Nina Avante. Mais uma vez, minha mente graduada em mentiras esfarrapadas salvando a minha pele.
Vou ignorar o breve momento de desespero pra deixar claro que esse plano é péssimo, não é? Eu sei disso. Infelizmente não tenho amigos hackers que poderiam me dar uma força nessa situação. Quero dizer, a ideia nem é tão ruim assim, aposto que encontraria fácil o que procuro, mas é a execução que estraga tudo.
Meu Deus, será que não existe uma única pessoa nessa escola que poderia me dizer o nome completo dessa garota? De verdade, isso é difícil mesmo ou eu só não estou pensando de maneira óbvia?!
Depois do almoço, me despeço de Lionel e passo direto por Juliano antes de seguir até o estacionamento da escola, onde Iara e eu seguimos de moto até a Travessa Tubarão. Ela fala alguma coisa sobre a aula de hoje, mas não consigo me concentrar muito bem na conversa.
— Tá com a cabeça nas nuvens, Nina — Iara reclama, estacionando a motocicleta em frente ao Ardentia. — Tá tudo bem contigo?
— Tá sim, eu só... — Suspiro, pulando da moto e a entregando o capacete. — O que você faria caso quisesse encontrar alguém que não tá na internet?
Apesar de sermos melhores amigas, Iara e eu não compartilhamos o costume de contar tudo uma para a outra. Não é como se escondêssemos de propósito, mas ambas gostamos de privacidade. Resolver nossos dilemas sozinhas e tudo o mais. Mas eu tentei lidar com toda essa questão a sós e nada funcionou até então. Acho que tudo bem pedir umas dicas pra garota que conhece muito melhor as redes sociais do que eu.
— Atrás de um garoto ou coisa do tipo?
Tusso.
— Coisa do tipo. — Damos boa tarde para o Damião, atrás da caixa registradora como de costume, e seguimos até a área dos funcionários à procura dos nossos uniformes. — Mas eu não o encontro de jeito nenhum, sabe? Acho que ele não tem redes sociais.
— Todo mundo da nossa idade está na internet, Nina. Acho que você só não soube procurar direito.
Ah, como se essa hipótese não tivesse passado pela minha cabeça no mínimo trezentas e quarenta e sete vezes. Mas eu não tenho como procurar direito se não faço ideia do que de fato eu ando procurando.
Frida tinha por volta dos oito anos quando a gente se conheceu, e nossa relação passou a ser inexistente depois que ela desistiu das aulas particulares de piano, que nem duraram muito, pra início de conversa. E vamos ser realistas, não dá pra conhecer ninguém aos oito anos. A gente muda o tempo inteiro, e a adolescência fode com a gente de um jeito que nunca saímos ilesos no final dela. Duvido muito que Frida, ou melhor, Lennon ainda goste de Os Padrinhos Mágicos tanto quanto gostava dez anos atrás.
Eu mesma não gosto do piano da mesma forma que gostava dez anos atrás.
O meu ponto é: nessas minhas pesquisas, eu não sei bem o que espero encontrar. Se eu encontrar um perfil no Instagram, vai tá cheio de fotos dela ou de frases motivacionais sem sentido? Será que ela compartilha fotos do pôr do sol na Praia das Tartarugas ou faz mais o estilo fotografias em preto e branco conceituais? Ela fala sobre os filmes que aluga ou mantêm seu gosto cinematográfico em segredo?
Eu não sei o que esperar. E acho que é por isso que me sinto tão curiosa.
— Você conhece alguém próximo dele? Tipo, alguém de confiança pra quem possa perguntar se ele tá no Twitter ou coisa parecida.
Faço uma careta, balançando a cabeça em negação. Por ser mais velha do que eu, todos os amigos de Lennon são pessoas formadas com quem tenho zero contato. Na verdade, eu não faço ideia com quem ela anda, já que sempre a vejo sozinha com a bicicleta (que pega fogo) por aí.
— Ah, Nina, então... Sei lá. — Iara resmunga, amarrando o avental. — Tenta ao menos descobrir algo que esse garoto gosta. Talvez isso ajude a, não sei, encontrar alguma informação sobre ele na internet. As pessoas sempre gostam de compartilhar sobre as coisas que curtem.
— Tipo o quê?
— Ah, você sabe — ela dá de ombros —, eu compartilho tutoriais de maquiagem no Instagram, você vive falando sobre música e filmes. Esse tipo de coisa, entendeu?
Saímos da área dos funcionários, encontrando a Ardentia tipicamente vazia. Me voluntario para organizar os DVDs devolvidos pela manhã, e enquanto caço as prateleiras certas para cada um, eu tento fazer uma lista mental de tudo o que eu acredito que Lennon A. Tropelia goste.
Bicicletas vermelhas. Shorts de praia. Guitarras. Fósforos pegando fogo. Tatuagens. Nomes de astro de rock. Estrelas. E, com toda a certeza, filmes.
O meu plano desde o início era arrancar informações do meu chefe, mas depois de precisar sair correndo da Ardentia Locadora naquela manhã, não tive coragem de voltar e fazer perguntas para o Damião. O homem deve ter ficado pra lá de confuso, mas agradeço aos céus por não ter me feito perguntas. Pelo menos até esse momento.
Só que agora eu ando me perguntando se isso não foi um erro. Se eu não deveria ir até o balcão agora mesmo e fazer um interrogatório, questionar sobre todas as coisas que talvez ele venha a saber, já que sempre a atende pela manhã — o que presumo já que os vi juntos no meu dia de espionagem.
Mas, sério, como eu posso ir até o Damião e perguntar ei, o que você sabe sobre Frida Tropelia? sem parecer uma louca obcecada? Uma stalker maluca e sem talento, já que nem uma simples pesquisa de internet sei fazer? A resposta é: não dá pra fazer isso. Porque mesmo com o meu talento notável em arranjar boas desculpas para uma infinidade de situações, eu não consigo encontrar nenhuma para essa.
— Ei, Damião, a gente pode pendurar isso aqui na frente?
Do lado de fora da locadora, duas garotas seguram um panfleto que não consigo ler daqui de tão longe. Uma delas tem o cabelo raspado, mas já começando a crescer, e a outra cabelos curtos e pintados de roxo forte. Vejo o meu chefe fazer um sinal de positivo, e encaixo Jurassic Park — o antigo, clássico — entre os outros DVDs na gôndola de FICÇÃO CIENTÍFICA enquanto assisto as garotas estilosas grudarem o papel no vidro em frente à loja.
Elas agradecem a Damião antes de continuarem a subir a rua, e eu espero alguns minutos para caminhar até a calçada e conferir o pôster rabiscado a mão preso na nossa janela.
Eu conheço essa guitarra, a vejo tatuada na parte de trás do ombro de Lennon imediatamente. Pisco algumas vezes, respiro fundo e busco o meu celular a procura de mais informações sobre Garotas Rebeldes em Combustão.
É uma banda local com algumas músicas disponíveis no YouTube, e encontro a sua página no Instagram sem muito esforço. Ela anuncia o primeiro show no último post, como no panfleto que encaro no vidro. Desço mais o feed até encontrar uma foto das integrantes da banda, três garotas tocando no que parece ser uma garagem muito apertada. Duas delas estão marcadas na foto, e reconheço serem as meninas paradas em frente ao Ardentia minutos atrás.
E há a terceira garota.
Não sei se dá para me entender, mas enquanto encaro a foto, é como se essa informação fosse uma nova caixa largada sem motivos no chão da minha cozinha. A sensação que eu tenho é de que estou prestes a acender mais um fósforo.
E o frio na barriga — e o fogo dessa vez metafórico entre os dedos — me atinge com muita força.
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