25 - ressaca moral
EU NUNCA MAIS vou beber na minha vida. Preciso deixar esse aviso mental fixado para sempre porque, quando acordo pela manhã com a maior dor de cabeça do mundo, eu percebo não me recordo de metade das coisas que aconteceram na noite passada.
Acho que conversei com a Mabel em algum momento, e me lembro vagamente de ter visto a Frida com um violão. Ela deve ter cantado alguma música, mas isso aconteceu antes ou depois do garoto me oferecer a garrafa de vodca? Antes ou depois da Frida ter beijado a ex-namorada?
— Iara, você tá acordada? — pergunto pro quarto escuro, mas não tenho resposta alguma. Eu nem me lembro de ter vindo parar aqui, pra ser sincera.
Encontro meu celular jogado ao meu lado na cama, a bateria quase morrendo. Já passam das oito da manhã, e tirando uma mensagem antiga do papai, nenhuma outra aparece na minha tela. Geralmente o grupo da banda está lotada de fotos nossas depois de uma festa como a da noite passada, então por que ele tá tão silencioso quanto esse quarto?
E por que eu tenho a leve impressão de que a culpa disso é minha?
— NINA!
Fecho os olhos assim que ouço o grito, a onda de dor se espalhando pela minha cabeça. Escancarando a porta do jeito mais barulhento possível e ligando as luzes sem qualquer aviso prévio, Cauê, irmãozinho da Iara, se joga em cima de mim com o maior sorrisão no rosto.
— Você roubou a minha cama!
— É, parece que sim. — Sorrio de volta, Iara na cama ao lado enfiando a cabeça embaixo do seu travesseiro. — Obrigada por ter me emprestado ela essa noite.
— A mamãe contou que você vinha dormir aqui, aí eu disse que não tinha problema você ficar com ela — explica, suas covinhas fofas aparecendo. — Quis ficar te esperando ontem, mas a mamãe falou que era pra eu dormir que você ia tá aqui de manhã. — Ele se aproxima, falando mais baixinho. — Você e a Iara foram numa festa de gente grande, foi?
Assinto, soltando uma risadinha enquanto tento relaxar minha cabeça de volta no travesseiro. A dor continua muito forte.
— Poxa, queria ir numa dessas. Até pedi, mas a Iara não quis me levar.
— Porque você é um bobão — minha amiga diz, arremessando seu travesseiro no irmão.
Diferente do que Iara tenta fazer parecer, ela e o irmão são bem próximos. Mesmo ele tendo só cinco anos e ela dezessete, sempre achei super fofa a relação dos dois, e por muito tempo eu até desejei um irmãozinho quando era mais nova. Mas acho que o Cauê cumpre bem esse papel na minha vida, mesmo que a gente não se veja com tanta frequência como antigamente. Mas quando tô aqui, ele sempre me trata como uma irmã mais velha legal e descolada.
— Por que você não vai ajudar a mamãe a preparar o café ou coisa parecida, hein? — Iara pede, se sentando na cama e esfregando os olhos. — E por favor, bate a porta devagar quando sair.
— Tá bom! — Ele se levanta, saindo do quarto às pressas, mas tomando cuidado pra não fazer barulho.
Observo minha amiga cobrir o rosto com as mãos, parecendo cansada. Não sei de que horas chegamos em casa, mas aposto que não dormimos tanto assim.
Me ajeito na cama, devagar por causa da dor de cabeça. Já consigo sentir a tensão se formando nesse quarto, se espalhando e consumindo nós duas, e quanto mais demora pra Iara falar alguma coisa, mais eu tenho certeza de que devo ter pisado na bola.
— Em que momento eu troquei de roupa? — pergunto, percebendo que tô usando uma das camisetas dela.
— Precisei te enfiar em algo limpo quando a gente chegou, a sua blusa tava toda vomitada — ela explica, finalmente olhando pra mim. — A gente precisa conversar, Nina.
— Eu fiz besteira, não foi?
Iara assente devagar, e eu sinto um peso enorme cair sobre minha consciência antes mesmo de saber o que fiz.
— Mas vem — ela convida, saindo da cama e me oferecendo a mão pra me ajudar a levantar. — Antes de eu te contar todos os desastres da noite passada, acho que você precisa de uns bons dez litros de café.
— AI MEU DEUS, eu fiz o quê?!
— Pois é, amiga...
Sério. Eu não acredito que fiz isso. Entre todos os cenários catastróficos que imaginei terem acontecido, esse definitivamente não era um deles, porque nada poderia ser pior do que essa merda. E eu falo pra valer. Comecei aquela festa dizendo que ia beijar uma garota, mas, sendo sincera, não era como se eu acreditasse naquilo de verdade. Sou a pessoa mais medrosa do mundo todo e tinha certeza de que ia dar pra trás com aquela ideia idiota. Só que, sabe, entre todas as garotas naquele lugar, eu precisava beijar logo a Lana?
— Ela não tá com raiva de você nem nada do tipo.
— Ah, é? E como você sabe?
— A gente conversou bastante ontem à noite, depois que te pus na cama — Iara explica, desviando o olhar e perguntando baixinho: — Mas com esse beijo e tudo o mais... você não tá gostado dela, né? Ou tá e eu entendi errado achando...
— Não! Pelo amor de Deus, eu não tô gostando da Lana.
— Ah, que bom.
Olho para ela, minhas sobrancelhas franzidas. Ela solta um suspiro, se ajeitando no sofá e encolhendo as pernas.
— Tenho uma coisa pra te contar, mas não importa agora. O que importa de verdade nesse momento é que a Frida viu vocês se beijando, Nina. E até agora ela não respondeu as mensagens da Lana, então aposto que deve tá bem magoada.
— Magoada? Mas por quê? — questiono, de repente me lembrando do beijo entre Frida e Teresa que preferi não assistir. Acho que é a última lembrança clara que tenho da festa. — Não tô dizendo que eu não errei beijando a Lana, porque ela é só a minha amiga e eu não quero estragar isso, mas não faz sentido a Frida ficar com raiva de mim por causa de um beijo. Desde quando ela se importa com quem as amigas dela andam beijando?
Iara me encara como se eu fosse a garota mais idiota da face da Terra. Não responde, só fica olhando para mim com as sobrancelhas erguidas enquanto move a cabeça pra lá e pra cá.
— O que foi?
— Pra alguém que quer ser roteirista e prevê o plot de quase todos os filmes, você tá sendo extremamente burra. Sério, Nina, pelo amor de Deus! Você nunca percebeu mesmo?
— Percebi o quê? Do que você tá falando, Iara?
— Nina, a Frida tá apaixonada por você.
Tá bem. Isso não faz nenhum sentido. Acho que a Iara ainda deve tá um pouco bêbada da noite passada, porque o que ela tá falando aqui é bobagem, e uma das grandes. Eu tô andando com a Frida faz quase três meses, e nunca, nunca, nunca vi indício algum disso. Se Frida Ardentia Tropelia estivesse apaixonada por mim, eu saberia. Eu saberia! Tenho certeza de que eu saberia. Minha nossa, isso não faz nenhum sentido.
— Desde quando?
— Desde sempre, sua besta! — ela rebate, batendo em mim com uma das almofadas. — Desde o dia em que você entrou na banda, ou desde o dia em que ela pareceu lá na Ardentia pra alugar um filme, ou quem sabe desde que vocês eram pequenas. O que importa é que é verdade. Frida Tropelia tá apaixonada por você, mas te viu beijando outra.
Num instante, algumas lembranças da noite passada voltam pra mim numa velocidade assustadora. Consigo visualizar perfeitamente o rosto da Frida, como ela parecia meio perdida vendo toda aquela situação. Como parecia sentida com aquilo também. E meu Deus, tudo faz mais sentido, parando pra pensar. Ela gosta de mim, e de um jeito bem diferente do que imaginei. O jeito como ela me trata, como sempre é atenciosa, sempre escolhe tá do meu lado. Frida Tropelia tá apaixonada por mim... e eu não faço ideia de como responder a isso.
— Preciso conversar com ela, né?
— Acho que ela tá precisando de um tempo, Ninazinha. Sei lá, talvez agora ela ainda esteja um pouco, não sei, balançada com tudo que viu.
— Mas eu preciso deixar claro que o beijo com a Lana foi um erro, que não devia ter acontecido.
— Sei disso, mas... é só isso que você tem pra dizer a Frida, Nina?
Deixo escapar um suspiro, cobrindo o meu rosto com uma almofada, precisando mais do que nunca soltar um grito. Eu não sei o que a Iara espera que eu diga, porque não é como se fosse fácil assim. Eu descobri essa coisa toda de paixão faz trinta segundos, ainda nem sei como reagir a isso. Mas sei que não posso ir até a Frida, pedir desculpas e deixar isso pra lá. Preciso de uma resposta de verdade pra dar a ela.
— Eu não sei, Iara.
— Não sabe de quê?
— Se eu... — tento dizer, encarando o chão e mordendo meu lábio inferior numa tentativa de me livrar do nervosismo. —... Se eu gosto dela de volta.
— Nina — Iara murmura, me fazendo olhar para ela. Mais uma vez, ela parece a ponto de me acertar no rosto, como se eu não estivesse entendendo algo simples. — Você não lembra de nada do que me disse na noite passada?
Nego com a cabeça, sentindo o frio na barriga já se instalando. Apesar de curiosa, não sei se estou muito disposta a saber quais coisas saíram da boca de uma Nina Avante bêbada pra caramba.
— Fazendo um breve resumo — minha amiga começa, e eu percebo que ela está tentando não soltar uma risada —, você veio o caminho inteiro até em casa aos prantos dizendo que tinha beijado a garota errada. Sem falar que me perguntou umas dez mil vezes se a Frida um dia ia querer te beijar também.
— Mentira...
— Verdade! — ela exclama, agora sem esconder o sorriso. — Não acredito que a sua versão embriagada sabe disso e você não. Porque, sério, isso tá escrito na sua testa faz tempo.
— Eu gosto da Frida? — pergunto, acho que mais pra mim do que pra ela. — Tá, eu gosto de tudo que ela faz, adoro tá perto dela e... amo a voz e o cheiro e como ela faz eu me sentir especial e... meu Deus do céu!
Iara concorda com a cabeça, sorrindo de um jeito que me irrita um pouco. Acho que parte dela tá aliviada por eu finalmente perceber isso, enquanto outra tá achando fofa toda essa minha reação. Ainda que não exista nada de fofo nisso aqui. Eu tô muito, muito, muito apavorada. Acho que vou vomitar.
— Eu gosto da Frida, Iara...
— Sei disso! E não é só eu, viu? As meninas da banda também estão carecas de saber, temos até um grupo só pra falar de vocês duas.
— Vocês têm?!
Minha melhor amiga ri, o que me deixa mil vezes mais irritada e constrangida.
— Não, mas até que é uma boa ideia. Que nome pro ship você acha melhor? Frina ou... — Ela nega com a cabeça, me pedindo pra deixar pra lá. — Quer saber, vou pensar em algo melhor e...
— Iara.
Acho que nunca estive tão nervosa na minha vida, e eu tô incluindo a vez em que cantei no Área 51 e o dia em que precisei tocar num evento da faculdade do papai e errei pelo menos vinte notas na frente de umas cem pessoas. Meu coração tá acelerado, minhas mãos estão suando, a dor de cabeça tá longe de ir embora. E a única coisa em que consigo pensar é em como tudo se transformou nessa bagunça enorme tão rápido.
Eu gosto de Frida Tropelia e Frida Tropelia gosta de mim. O resto não deveria ser tão dificil assim, não é? A taquicardia possivelmente é algo normal nesses casos, mas... Os filmes me ensinaram tudo errado. Eu não tô empolgada ou com corações no lugar dos olhos, não tô super esperançosa imaginando como vai ser nosso primeiro beijo ou coisa parecida. A verdade é que eu tô mal pra caramba, hiperventilando, desejando sumir e nunca mais voltar.
Percebi que tô apaixonada faz dois minutos e já tô odiando esse sentimento idiota.
— Ei, vem cá. — Iara se aproxima, me puxando pra um abraço. Ela deita minha cabeça na almofada em seu colo, e diz enquanto faz carinho no meu cabelo: — Vou te dar um conselho, e talvez você não goste muito dele, mas vou fazer isso mesmo assim, tá? — Murmuro um sim em resposta, e ela continua: — A Frida consegue aguentar um dia sem saber que você gosta dela de volta. Mas agora, Nina, você precisa tirar um tempo pra, sabe, pôr a cabeça no lugar, pensar em todas essas coisas com calma pra não agir no impulso como vem fazendo com tudo nos últimos meses.
— E se ela achar que tô evitando uma conversa de propósito? Eu preciso me explicar pra ela, Iara.
— Sei disso e concordo — ela diz, sua voz firme e cheia de certeza —, mas, como eu já te disse, a Frida tá precisando de um tempinho só pra ela também. Do mesmo jeito que você tá aqui toda assustada, ela também deve tá, e nada como um dia de paz e livre de álcool pra gente pensar na vida, né?
Solto uma risadinha, me permitindo relaxar um pouco. Tô tão tensa e duvido muito que isso passe antes de eu conversar pra valer com a Frida, mas sei que minha amiga tá certa. Um dia pra pensar melhor em todas as coisas que andamos sentindo vai ser bom pra nós duas.
— Sério, acho que você e a Fri são as únicas pessoas no mundo que nunca notaram que são apaixonadas uma pela outra, e eu não entendo por que isso é absurdamente fofo. — Ela ri. — Mas acho que é normal. O amor deixa as pessoas burras.
— É. Tipo tu e o Juliano — brinco, tentando ignorar o fato da Iara ter usado a droga da palavrinha com A.
— Haha, muito engraçado — Ela revira os olhos, sorrindo de lado e coçando a nuca. —Pra sua informação, eu já superei aquele babaca faz tempo, e inclusive... é sobre isso que preciso falar com você.
— O quê? Outro plano de assassinato contra o Juliano ou...
— Não! Não é algo sobre ele, mas sim sobre eu já ter superado nosso namoro e essas coisas e... — Gagueja, visivelmente nervosa. — Vou tentar falar sem me enrolar toda, tirar o band-aid de uma vez só. Então, Nina. — Ela prende a respiração, se preparando pra dizer seja lá o que for. — Digamos que o seu beijo com a Lana tenha sido mais problemático do que você pode imaginar.
Corrijo minha postura, voltando a me sentar no sofá. Quando tava começando a pensar que as coisas talvez não fossem tão ruins, acabo descobrindo que eu tava bem enganada.
— Como assim?
— Bem... como eu te explico isso? — Iara desvia o olhar várias vezes, conferindo se não tem alguém por perto pra ouvir nossa conversa, o que nem faz sentido já que seus pais e seu irmão saíram faz mais de meia-hora pra irem à praia. Só tem nós duas na casa, mas mesmo assim ela fala baixinho, como se nem as paredes tivessem permissão pra nos ouvir: — Você lembra quando me contou que se descobriu lésbica depois que a gente se beijou lá na sua casa? Então. Isso meio que aconteceu comigo também.
— Ai meu...
— Mas calma! Vou te explicar melhor.
Ela desbloqueia seu celular, abrindo o navegador de internet e me mostrando seu histórico de buscas de algumas semanas atrás. Coisas como saber se gosto de garotas e manifesto bissexual estão por toda parte.
— Eu já desconfiava fazia um tempo, antes mesmo de te beijar, até — me conta, tímida de um jeito que nunca vi na vida. — Tipo, lembra quando a gente maratonou Crepúsculo lá no nono ano e eu ficava dizendo o tempo todo que a Alice era linda e essas coisas? Pois é. Talvez eu devesse ter dado mais atenção a esses sinais.
— Então Alice Cullen foi sua primeira paixonite feminina?
— É, acho que sim. — Ela solta uma risadinha, encarando as próprias mãos. — E aí eu passei os últimos meses chamando a Frida de gata e insinuando o tempo todo que a daria uns beijos, e acredite, Nina, eu pensava nisso bem mais do que deixava escapar nas nossas conversas. Chegou um ponto que eu tava preocupada de verdade e comecei a me questionar, tipo, porra, o que você tá fazendo? Porque não fazia nenhum sentido ser apenas enaltecimento feminino se eu fazia isso na maior parte do tempo só pra mim.
Ergo uma sobrancelha, começando a ficar confusa.
— Você tá dizendo que... gosta da Frida também?
Iara me encara, negando rápido.
— Não, claro que não! Tudo não passava de uma atração unicamente física, o que você não pode questionar, já que nós duas sabemos que a Frida é uma... — A interrompo com o olhar, e ela tosse, limpando a garganta. — O que quero que fique claro é que não, eu não gosto dela nesse sentido. E agora que sei que vocês duas vão se casar e ter filhos lindos um dia, não consigo nem vê-la de um jeito além de fraternal. Ela agora é minha cunhada, e eu respeito isso.
— Ótimo — murmuro, Iara deixando escapar um sorrisinho.
— Mas enfim, o meu ponto é: de algum jeito eu já vinha desconfiando, e não quero que ache que eu te usei aquele dia ou coisa parecida, mas o nosso beijo foi meio esclarecedor pra mim também. E eu tinha acabado de terminar com o Juliano e sei lá... achei que já tava na hora de me descobrir de uma vez por todas.
— Então... você é bi.
Depois de alguns segundos me encarando ela finalmente assente, com o sorriso mais lindo do mundo no rosto.
— Quando você me contou que era lésbica, perguntou se eu tava bem com isso. E eu já sei qual vai ser a resposta, mas vou te fazer a mesma pergunta, porque você, Nina, é minha melhor amiga e sempre vai ser. Seu apoio nessa doideira toda é muito importante pra mim, então, me diz... você tá bem com isso?
Sorrio, a puxando pra mais um abraço apertado.
— Como eu não estaria bem com o fato de você também gostar de garotas, Iara? — pergunto, apoiando minha cabeça no seu ombro. — Tô orgulhosa pra caramba e você é incrível. Não esquece disso nunca, tá bem?
— Tá bem.
— E obrigada por contar — agradeço, separando o abraço pra poder olhar pra ela. — Saber que confia em mim pra revelar isso me faz sentir importante.
— Claro que você é importante, sua bobona. Como eu disse, você é minha melhor amiga. Pra sempre. E não é permitido renegar esse título, tipo, em nenhum momento da sua vida.
— Não vou, fica tranquila — garanto, antes de erguer as sobrancelhas e perguntar, curiosa: — Mas o que tudo isso tem a ver com o meu beijo com a Lana, hein?
Ela sorri mostrando os dentes, deixando claro que continua me escondendo alguma coisa.
— Certo, a parte complicada eu deixei pro final. — Ela ajeita a postura, cruzando os braços e me encarando como se tentasse encontrar o jeito certo de me contar essa parte complicada. — Tá, vou voltar no tempo de novo. Lembra que, no mesmo dia em que a gente se beijou, eu falei que ia ficar solteira por um tempo? — Assinto, já adivinhando onde essa conversa vai chegar. — Pois é, é provável que isso já tenha caído por terra há um tempo.
— Meu Deus, você tá namorando a Lana?!
Ela faz uma careta, desviando o olhar pela centésima vez nessa conversa.
— Acho que namorar é uma palavra muito forte... Se conhecendo melhor talvez se encaixe mais apropriadamente aqui. Tudo bem que a gente já se beijou pra caramba e já tenhamos ido pra cama umas duas ou três vezes...
— Iara!
—... e já concordamos que eu vou pegar o sobrenome dela já que ela vai ser uma baterista famosa e essas coisas, mas... Só estamos nos conhecendo. Por enquanto.
Eu mal tomei o café da manhã e já estou sendo bombardeada com informações importantes demais. Como eu não tinha percebido que elas duas estavam próximas de um jeito nem um pouco amigável? Acho que sou uma idiota e meu radar deve ser péssimo pra essas coisas porque... meu Deus.
— Meu Deus.
— Pois é.
— E eu beijei a Lana! — exclamo, me dando conta que a coisa mais horrível que eu já fiz na vida se tornou ainda mais horrível. — Iara, me desculpa, eu juro que se soubesse eu nunca, nunca, nunca...
— Eu sei disso, Nina, e tá tudo bem — ela diz, me dirigindo um sorriso breve. — Não tô chateada ou com ciúmes nem nada parecido. Na verdade, achei bem legal da parte da Lana ter te afastado rápido, porque prova que ela além de ser uma fiel quase-namorada, também é uma boa amiga. Ela sabe sobre a Frida gostar de você e... eu nem imagino como ela deve tá se sentindo mal por ter feito isso com ela, mesmo sabendo que não teve culpa de verdade.
Afundo meu rosto na almofada, cansada demais pra ouvir novamente sobre a droga desse beijo que nunca deveria ter acontecido. Tô me sentindo mais péssima do que nunca também. Eu nem sei por onde começar a medir a confusão que foi fazer isso. Não basta eu ter beijado a garota errada na frente da garota certa, eu ainda beijei a provável futura namorada da minha melhor amiga. E a Frida deve tá com raiva de todas nós por causa desse ato impulsivo e errado. Ótimo. Acho que vou me odiar pra sempre.
— Vou seguir o seu conselho e dar um tempo pra Frida esfriar a cabeça — digo, massageando minha testa numa tentativa falha de fazer a dor de cabeça passar. — Mas eu preciso conversar com a Lana. Pedir desculpa e tudo o mais. Você acha que... a gente pode fazer um desvio antes de você me deixar em casa?
IARA BUZINA ALGUMAS vezes até finalmente Lana abrir a porta. Com a maior cara de sono, vejo minha melhor amiga sorrir feito boba enquanto assiste a namorada, ou melhor, a quase-namorada caminhar até nós na calçada. Certo. Espero que não demore muito pra eu me acostumar com essa nova mudança na dinâmica do nosso grupo.
— Ei... — ela nos cumprimenta, sorrindo pra Iara e me encarando de um jeito estranho. Desconfortável. — Tá melhor, Nina?
— Tô sim, tirando a dor de cabeça. — Pulo da moto, tirando o capacete e apertando meus olhos por causa do sol. — A gente pode conversar rapidinho?
— Claro — ela não demora pra responder, ainda que eu sinta um pouco de hesitação na sua voz. — Vai esperar aqui? — pergunta pra Iara, que assente.
— Uhum. Acho que vocês estão precisando conversar sozinhas — responde, pendendo a cabeça e sorrindo de um jeito provocante. — E qual é? Eu fico uma gata parada aqui com essa moto.
Lana ri, revirando os olhos e dando um beijo rápido nela antes de me pedir com o olhar pra que eu a acompanhe até a garagem.
Os instrumentos estão meio bagunçados desde o último ensaio, algumas caixas com equipamentos novos ainda lacradas jogadas num canto. É estranho estar aqui sem as outras meninas, e eu consigo perceber que a Lana está mal antes mesmo dela abrir a boca. Se as coisas fossem diferentes, se não tivesse todo o problema com a Frida nessa história, o nosso beijo seria tão irrelevante quanto aquele que troquei com a Iara meses atrás. Não tem problema nenhum em beijar alguém em festas, eu mesma fazia isso o tempo todo antes. Mas tudo aqui é tão mais complicado. E a culpa de estarmos nessa situação é inteiramente minha.
— Juro que não sei o que aconteceu — tento começar, cruzando os braços enquanto Lana se acomoda no sofá velho da garagem. — E eu falo sério quando digo que não sei, porque nem me lembro direito do que eu fiz ou por que eu fiz, e... Eu tava mal, muito bêbeda e devo ter pensado que se fosse pra beijar alguém naquela festa, seria melhor que fosse alguém que eu conheço e gosto e... Não que eu goste de você! No sentido romântico falando, quero dizer, porque eu gosto de você como amiga e...
— Nina — ela me interrompe antes que mais besteiras escapem da minha boca. — Tá tudo bem, sério. E o problema não foi você ter me beijado. Sabe disso, né?
— Sei?
Ela suspira, abraçando os próprios joelhos enquanto continua me encarando com esse olhar esquisito.
— Você e as outras meninas da banda, Nina, são minhas melhores amigas. E não teria problema se fosse só um simples beijo de festa, mas acho que nós duas sabemos que não é o caso aqui — ela diz, encolhendo os ombros. — Acontece que eu sabia o que a Frida sentia por você. Melhor falando, eu sei o que ela sente. E mesmo que tenha sido você que me beijou e eu saiba que te afastei um segundo depois, parte de mim ainda sente que eu traí a Frida. Que eu traí uma das minhas melhores amigas, consegue entender?
— Me desculpa.
— Não, não precisa se desculpar — pede, com firmeza. — Você não é culpada de nada, da mesma forma que eu também não sou. Não tem culpada nessa história, Nina. Mas isso não quer dizer que a Frida não tenha ficado mal vendo a gente se beijar. — Lana cobre o rosto com as mãos, visivelmente exausta, e eu duvido muito que esse cansaço todo seja resolvido só com uma boa noite de sono. — Até agora ela não respondeu as mensagens que mandei ontem à noite. E eu sei que ela vai fazer isso assim que estiver melhor, mas agora não consigo deixar de pensar que uma das pessoas que eu mais amo no mundo deve tá me odiando pra caramba.
Mordo os lábios, o nó na garganta se formando rápido. Tudo é culpa minha, e não quero nem imaginar o quanto vou me odiar caso isso tudo não se resolva. E se a Frida não quiser me perdoar? Se ela não quiser perdoar a Lana? O que isso vai significar pra gente e pro futuro da Garotas Rebeldes em Combustão?
— Mas ei. — Ela caminha até mim, alisando de leve um dos meus braços. — Não se preocupa, tá bem? Tudo parece horrível agora, mas as coisas vão se ajeitar.
— Acha mesmo?
— Acho mesmo — garante, e eu solto um suspiro de alivio. Não sei até que ponto nós duas acreditamos nisso, mas prefiro me agarrar a esse fio de esperança do que me deixar ser tomada de uma vez por todas pelo desespero. — De qualquer forma, a gente tem ensaio amanhã, então...
Concordo, entendendo o que ela quer dizer.
— Até amanhã, tudo já vai ter se resolvido.
— É isso aí. E qual é, é a Frida de quem estamos falando, né? — Lana finalmente sorri, parecendo um pouco mais tranquila agora. — Ela é a pessoa mais compreensiva do mundo, e se tratando de você, duvido muito que ela fique com raiva por tanto tempo, então... relaxa. Vai ficar tudo bem, tá?
Assinto, sorrindo de volta e tentando por tudo que é mais sagrado acreditar nela.
Mesmo que uma parte gigantesca de mim insista em acreditar que essa ressaca moral é só uma parte minúscula de toda a confusão que está por vir.
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