12 - até o clark kent precisa dormir
ALÉM DE HIPÓCRITA, Frida Tropelia é uma baita de uma mentirosa. Ela permaneceu calada durante todo o percurso até a praia, mesmo comigo entrando em desespero e tentando convencê-la de que hoje é um péssimo dia para aulas de natação. Não tenho roupa de banho, não tenho forças, e bem, uma praia não é o melhor lugar pra se aprender a nadar. Ondas e tudo o mais. As chances de eu sair morta disso seriam enormes.
Mas tudo não passa de uma grande mentira, e eu só descubro após uns cinco minutos andando pelo calçadão. Frida finalmente cede a postura, caindo na gargalhada depois que eu choramingo sobre as chances de eu ser queimada por águas-vivas. Não que isso aconteça muito aqui em Alto-Mar, mas, sinceramente, estou tão desesperada que começo a tirar desculpas não sei de onde.
— Meu Deus, Nina, se acalma! — ela pede, parando no meio da calçada, as mãos no guidão da bicicleta. — Não vou te ensinar a nadar. Não hoje. Ainda. — Frida morde o lábio inferior enquanto me dirige um sorrisinho, apressando o passo até o bicicletário e prendendo a bicicleta vermelha que pega fogo. — Tô aqui pra te mostrar uma coisa, te disse.
— E eu posso saber o que é?
— Vem comigo.
Ela segura a minha mão e me arrasta com ela pela praia, e mesmo com meu coração acelerando um pouquinho, eu não tento achar motivos para não deixá-la fazer isso. Na verdade, me sinto mais confortável sabendo que estou sendo guiada pela areia, um pouco estranha sob meus tênis que não combinam em nada com esse ambiente. Deixo que Frida me leve até uma das barracas espalhadas pela praia, sentindo sua mão segurar firme a minha. Leio a placa de madeira, as letras pintadas de branco já se desbotando: QUIOSQUE VERÃO – ALUGUEL DE BOIAS E PRANCHAS.
Encaro a garota ao meu lado, sem acreditar em como ela mentiu para mim de novo. Se Frida não quer me ensinar a nadar, por que me arrastar até a droga de uma barraca de boias?
— Ei, se não são as minhas garotas favoritas do mundo todo!
Me viro quando ouço a voz, Jasmine de biquini aparecendo no interior do quiosque. Ela sorri radiante, apoiando os cotovelos no balcão que separa a área interna da barraca do restante da praia. Antes que eu diga alguma coisa, Mabel também aparece, com uma boia gigante em formato de sapo nas mãos. Eu nem sabia que elas trabalhavam aqui, na praia. Acho que todo mundo vive na praia nessa cidade, menos eu.
— Vim mostrar a ela aquele negócio — explica Frida, voltando a apertar a minha mão, que não chegou a soltar nenhum segundo. Ela me leva até uma portinha estreita na lateral do quiosque, me fazendo entrar nesse espaço minúsculo cheio de boias e pranchas e latas vazias de refrigerante.
— Não repara na bagunça, por favor — pede Mabel, largando a boia de sapo exageradamente grande em cima de outras de formatos diferenciados. — Se senta um pouco, você parece cansada.
Nossa, queria poder dizer que é impressão sua. Mas eu sei que dois dias sem dormir direito não me ajudam muito a não parecer uma morta-viva. E não consigo recusar quando a garota aponta para um sofá minúsculo largado no canto, eu precisando desviar das latinhas vazias como se estivesse em um campo minado.
— Onde você deixou, hein, Jas? — pergunta Frida, revirando algumas caixas com coletes salva-vidas.
— Tá por aí em algum lugar, Fridazinha, juro que guardei — ela garante, ainda apoiada no balcão, desviando a atenção quando alguém aparece pra alugar uma prancha.
— O que você tá procurando? — pergunto, sem forças pra levantar e procurar seja lá o que for junto a ela, mesmo que essa seja a minha vontade.
— Calma aí, eu quero te mostrar e não... só te contar e... achei! — Frida exclama, puxando um panfleto com força e o rasgando no meio. Uma parte está na sua mão, a outra largada na caixa, presa entre dois coletes. — Merda!
Ela arranca a outra parte do panfleto e caminha até mim, se largando no sofá ao meu lado. É apertado. Tipo, ele consegue ser menor que um sofá de dois lugares, e o espaço claustrofóbico desse quiosque também não ajuda muito. Frida tem cheiro de mar, protetor solar e daqueles sabonetes líquidos de bebê. E eu consigo sentir tudo isso perfeitamente, mesmo com todos os outros odores presentes aqui.
— Tó. — Ela me estende o panfleto rasgado pela metade, segurando suas partes na minha frente de forma que eu consiga ler tudo sem problemas.
É um anúncio sobre um concurso aleatório aqui da cidade. Eu nem sabia que isso existia aqui, mas, segundo o panfleto, é a segunda edição do Concurso de Documentários Amadores de Alto-Mar, o que eu demoro a ler por causa do papel partido em dois. No canto, é avisado que as inscrições vão até o dia dezesseis de dezembro.
— O que tem isso? — pergunto, encarando Frida enquanto abraço minhamochila, largada no meu colo. Ela ergue as sobrancelhas, como se a respostafosse óbvia. — Eu não tenho documentários prontos, Frida. Na verdade, eu nãotenho nem um comercial de trinta segundos pronto. — Suspiro, fazendo uma caretacontra minha vontade. — Eu nunca passei da fase dos roteiros, eu nem sequercheguei a terminar um.
— Nina, qual é — ela rebate, me encarando como se eu fosse uma criança fazendo birra. — Você teria até o fim do ano pra produzir alguma coisa, e... — Frida vira os papéis, mais informações aparecendo no seu verso —... o vencedor ganharia uma bolsa em um curso de cinema. Totalmente pago!
Ela acha mesmo que eu tenho capacidade pra algo desse tamanho? Não estamos falando de um vídeo meia-boca gravado com uma câmera de celular, e sim de um documentário. Eu mal tenho tempo pro trabalho e pros ensaios da banda, eu mal dormi nos últimos dias, como arranjaria tempo pra gravar a droga de um documentário?
— Eu procurei algumas informações na internet — avisa Mabel, chutando algumas latinhas e sentando no chão de frente para o sofá. — Vai ter todo um evento antes do Natal, aqui na praia. Vão apresentar todos os documentários selecionados, e então divulgarão o vencedor. — Ela sorri, dando tapinhas no meu joelho em sinal de empolgação. — Sério, Nina, seria incrível! Acho de verdade que você devia tentar.
— E mesmo que não vença — ouço Jas argumentar, voltando a atenção para nós enquanto permanece com um dos cotovelos no balcão —, você ganha experiência né?
Frida me entrega o panfleto partido pela metade, e eu o encaro sem saber o que fazer. É sério que essas garotas acreditam mesmo em mim? Nem eu acredito em mim, não a esse ponto. Mas Jasmine está certa, eu acabaria ganhando alguma coisa de qualquer forma. E é inevitável pensar naquela conversa que tive com Frida no píer, onde ela disse que eu não precisava esperar pra começar a fazer o que eu quero. Talvez seja essa a oportunidade que eu precisava. Talvez.
— Eu nem sei sobre o que eu falaria.
— Isso você descobre, né? — assegura Frida, apoiando os pés no sofá e abraçando suas pernas. — Mas e aí? Por favor, diz que vai ao menos pensar no assunto.
Existe esse item na minha to do list inacabada. Fazer um curta independente, mesmo que seja um bem ruim. Um documentário não é um curta, mas acho que chega perto. E, se eu me organizar direito, talvez eu consiga criar alguma coisa no meu tempo livre.
— Posso pensar — digo, relaxando a postura e encarando as garotas, que abrem sorrisos empolgados. — Mas não prometo nada, tá bem?
— Não é o que estamos pedindo, Super-Homem.
Sorrio, abraçando com mais força a mochila no meu colo. Uma moça exageradamente bronzeada aparece à procura de um colete, e Mabel se levanta para atendê-la. Frida me encara, perto demais — de um jeito assustador — nesse sofá apertado, e eu guardo o panfleto dentro do meu caderno numa tentativa de desviar a atenção. Sentir o olhar dela em mim tá me deixando um pouco nervosa.
— O que foi? — pergunto, a encarando com as sobrancelhas franzidas.
— Nada, eu só... tô feliz que vai tentar fazer isso. Acho que vai ser uma boa oportunidade pra você aprender mais — ela diz, apoiando o queixo nos joelhos. Muda de assunto: — Há quanto tempo você não dorme, Super-Homem?
— Dá pra parar de me chamar assim?
Ela nega, sorrindo com os olhos fechados. Criançona.
— Mas sério, há quanto tempo?
— Umas quarenta e oito horas? — respondo, umedecendo os lábios enquanto vejo Frida arregalar os olhos, sem acreditar. — Mas eu dei um cochilo durante a aula, então tô ótima.
Frida solta uma risadinha, ajeitando a postura e arrancando a mochila das minhas mãos. Eu não sei o que ela está tentando fazer, e eu só consigo ficar parada, o mais distante possível dela nesse sofá apertado, o que não é muita coisa. Nossos joelhos estão se tocando e isso tá me deixando um tanto desconfortável.
— Sabe, até o Clark Kent precisa dormir de vez em quando — diz, largando minha mochila no lugar em que estava e se sentando no chão, me dando espaço no sofá. — Dorme um pouquinho, eu te aviso quando der a hora de você ir pra casa.
Quero dizer que não posso dormir, que não tô a fim de deitar e dar um cochilo na droga do Quiosque Verão. Seria horrível para os negócios se descobrissem que deixam garotas aleatórias — e com trajes nada apropriados para a praia — dormirem aqui. Eu acho. Não me encontro no melhor momento para entender os meus pensamentos sem sentido.
— Dorme, Nina — Frida insiste, e eu não sei o que dá em mim quando posiciono minha mochila nos braços do sofá para me servir de travesseiro.
Frida tem cheiro de mar, protetor solar e sabonete líquido de bebê. Mas seu cabelo tem cheiro de outra coisa. Enquanto me deito, meu rosto passa perto do cabelo dela, e eu consigo ver os fios perfeitamente raspados atrás da nuca. Acho muito bonito.
— Te chamo antes das cinco, tá? — ela avisa, e eu nem tenho tempo de responder alguma coisa ante de pegar no sono.
SHAMPOO DE CHOCOLATE. É esse o cheiro do cabelo de Frida, e eu acordo pensando nisso porque acho que sonhei com algo que envolvia ela, chocolate e shampoos. E é engraçado. Todo mundo adorava esse shampoo quando tinha uns dez anos, mas Frida o usa no auge dos seus dezoito. Acho que combina bem com o sabonete líquido de bebê.
Acordo com meu celular vibrando na minha cabeça. Dentro da mochila. Ainda estou meio dopada de sono e o Quiosque Verão me recebe aos poucos com todo o seu caos. Assisto Jas recolher as latas de refrigerante vazias, enquanto Mabel organiza todas as pranchas por tamanho. Demoro muito tempo pra notar Frida, ainda no chão ao meu lado, usando o celular com uma mão e fazendo cafuné nos meus cabelos com a outra.
Meu celular vibra novamente. Ergo meu corpo com o susto.
— Ei, bom dia! — ouço Jas dizer enquanto vasculho minha mochila.
Não sei que horas são e, mesmo Frida me garantindo que me acordaria antes das cinco, tenho medo de ser mais tarde. Se for mamãe me ligando, preocupada com o fato de eu não ter chegado em casa ainda, posso dar adeus a tudo.
— Que horas são, gente? — pergunto, já abrindo o terceiro bolso e nada de encontrar a droga do meu celular.
— Quatro e quarenta e três — avisa Mabel, encarando o relógio no pulso antes de deslizar a grade que nos separa do restante da praia, dando por encerrado o expediente no quiosque.
Encontro o meu aparelho escondido no meio do meu uniforme de Educação Física, ele ainda vibrando. Não é o contato da mamãe que aparece na tela, mas sim o da Iara, e antes mesmo de atender eu sei que tem algo de errado acontecendo. Aquela conversa que ela estava tendo com o Juliano quando saí da Ardentia não estava mesmo me cheirando bem.
— Nina, finalmente! É a quinta vez que te ligo.
— Foi mal, eu tava... Tá tudo bem? — pergunto, percebendo que a sua voz não soa como de costume. Iara não parece estar chorando, mas parece estar quase. As palavras saem meio embargadas da sua garganta.
— Não? Eu... meio que terminei com o Ju.
Acho que sou uma péssima amiga. Sério. Ou no mínimo uma amiga muito filha da puta, porque a minha primeira reação após ouvir suas palavras é sorrir. Eu quase solto um grito de comemoração no telefone, mas felizmente me seguro. É claro que eu tô mal por ela, a coitada, mas não posso negar que estou aliviada pra caramba com essa notícia. Sinceramente, já não era sem tempo.
— Eu posso ir pra sua casa? — ela pergunta, antes mesmo que eu consiga responder. — Não tô a fim de ir pra minha e ouvir meus pais reclamarem sobre como eu tô um lixo.
— Vou ligar pra mamãe, aviso que você vai dormir lá — digo, me ajeitando no sofá e buscando minha mochila. — Onde você tá agora?
— Trancada na sala dos funcionários. Damião disse que eu podia vir chorar aqui, pra não espantar os funcionários. — Ela conta, soltando uma risadinha. — Onde você tá? Passo aí pra te pegar, se ainda não tiver em casa.
Encerro a chamada depois de avisá-la que estou na praia e que esperarei por ela no calçadão. Frida já se levantou há um tempo, e me encara enquanto ponho minha mochila nas costas.
— Tá tudo legal?
— Tá sim — asseguro, ajeitando meus cabelos que se amassaram enquanto eu dormia. — Só minha amiga que tá com uns problemas.
— Nada que uma noite do pijama não resolva, então — ela brinca, sorrindo sem jeito e encarando os pés.
— É, é o que eu espero.
Saímos todas juntas do quiosque depois que ligo para mamãe, Mabel e Jas se despedindo de nós duas antes de entrarem em seu carro e seguirem caminho pela avenida. Aguardo Iara próxima ao bicicletário, Frida fazendo questão de esperar comigo, usando a desculpa de que não é muito seguro ficar no meio do calçadão sozinha. Assaltos, ela disse, mesmo que exista a maior possibilidade de eu ser atropelada por um ciclista do que de fato ser assaltada. Mas tudo bem. Não é como se a companhia dela não fosse bem-vinda.
— Pelo visto deu tudo certo, né? — ela pergunta, e eu ergo as sobrancelhas, sem entender. — Com a sua mãe.
— Ah, deu sim. Só precisei mentir ainda mais, mas é. Tudo certo.
Explico brevemente a história que precisei bolar para que Dona Ângela não descobrisse sobre todas as minhas mentiras. Falo sobre as supostas aulas particulares de piano, e Frida ri quando eu digo que é ela a minha suposta aluna.
— Acho que precisaremos mesmo providenciar isso, então — ela diz, pondo as mãos nos bolsos e me encarando de cima. — E claro, suas aulas de natação também.
— Eu não quero aprender a nadar, Frida — resmungo, batendo a biqueira do meu tênis no calçadão numa tentativa falha de livrar meus pés da areia da praia.
— Tá bom, mas não venha puxar o meu pé caso um dia morra afogada e vire fantasma — ela brinca, e eu reviro os olhos de leve. — O que você quer aprender em troca, então?
— Hm. Você pode me ensinar a tocar ukulele.
Perigo, perigo, perigo. Onde eu tô com a cabeça pra fazer uma pergunta dessas? Eu nem deveria saber que Frida toca ukulele!
— Como sabe que eu toco ukulele, hein?
— Não sei — minto, batendo meus tênis no chão com ainda mais força. — Mas você acabou de me responder, então... Sei lá, eu só... achei que fazia o seu estilo.
— Como assim?
— Lésbicas tocam ukulele, né? — respondo, e me arrependo na mesma hora. — Quero dizer... não que haja algo de errado nisso, eu não tô julgando lésbicas ou tocadoras de ukulele, porque... — Pelo amor de Deus, Nina Avante, cale a boca! —... nem todas as garotas que tocam precisam ser lésbicas, e nem toda lésbica precisa saber tocar, e...
— Nina, calma.
Frida está rindo de mim. Eu, por outro lado, tô uma pilha de nervos, e não consigo calar a boca de jeito nenhum, o que é um erro. Devia parar de falar para o meu próprio bem, mas eu faço questão de soltar mais uma coisa ridícula:
— E eu não tô querendo aprender a tocar porque sou lésbica, tá? — aviso, e eu sinto vontade de me bater no mesmo instante. — Como eu disse, nem todo mundo que toca precisa ser e... eu sou hétero. Gosto de garotos e tal. É, garotos...
Ela me encara com os olhos apertados, as maçãs do rosto salientes porque ela continua sorrindo. Cadê a Iara quando se precisa dela? Eu tenho que sair daqui imediatamente. Talvez desista de ajudar a banda também depois dessa, porque acho que nunca mais vou ter coragem de olhar nos olhos dessa garota.
— Esse até que é um bom tema pro seu documentário.
— O quê?
— Como garotas heterossexuais que tocam ukulele sofrem por serem taxadas de lésbicas — ela explica, e eu franzo as sobrancelhas.
— Você tá falando sério ou...
—Meu Deus, Nina, eu tô brincando! — Frida volta a rir, me encarando com seus um metro e setenta de altura que me tiram dos nervos. — Por favor, não faça um documentário sobre garotas heterossexuais, elas já têm muita coisa só pra elas.
Antes que eu possa responder, ouço a buzina da moto da Iara, minha melhor amiga me esperando no meio-fio. Quase solto um suspiro de alívio.
— A minha carona — aviso, Frida se apressando para buscar sua bicicleta. — Até amanhã, no ensaio.
— Até, Super-Homem. E não esquece de pensar com carinho sobre o documentário, tá bom? Um não-heterossexual, de preferência — ela brinca, e eu sorrio.
— Vou ver o que posso fazer.
A vejo subir na bicicleta e pedalar para longe, no sentido contrário para qual Iara e eu seguiremos. Dou um abraço rápido na minha melhor amiga antes de subir na moto, colocando o capacete e me segurando firme quando Iara acelera pela Avenida Litoral. Ela não fala nada, e sinto que é dever meu quebrar o silêncio, mesmo que seja com uma pergunta idiota.
— Então... quais os planos pra nossa noite?
— Desabafos, chocolate-quente, fofocas... e um assassinato.
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