Cap 3 - Capitão Xark
Drotes: aparelhos para escutar conversas gravadas pela Floresta de Aycol
Lua Ádria: satélite natural do planeta
Praga-viva: termo ofensivo aos não galaceanos
Rapés: árvores extremamente altas
Tortugo: espécie de jabuti
O veterano Capitão Xark seguia seus objetivos com dificuldade. Apesar de ser o melhor caçador da SOTE estava ciente de que atravessar uma passagem nível dois ou três era uma proeza digna de gratidão eterna.
Ainda que ameaçasse e capturasse galaceanos, nunca obtinha as informações necessárias para adentrar nos domínios da Sociedade de Gala, a mais visada por ele. O segredo era protegido pelos usuários que — se preciso — abraçariam a morte a delatar quaisquer entradas secretas. Aquele pacto de amor garantia a prosperidade dos conterrâneos e dos fundamentos aos quais acreditavam.
— E agora, capitão? — Tomi vinha com o raciocínio entalado na garganta. O nó apertado descia e golpeava a boca do estômago a cada engolida. — O que faremos? Eles... eles... evaporaram!
Dissolvendo-se feito farelo ao vento, a cena dos guardiões ia de encontro à razão. Olhando em volta, ambos custavam a crer terem a floresta só para eles.
Xark demorou-se numa resposta carrancuda e silenciosa. Anos de experiência nas costas e também se atormentava com os desaparecimentos instantâneos. Eram tão nocivos quanto uma alergia crônica, a se manifestar cada vez que chegava perto de uma passagem.
— Temos de tirar o chapéu ao velho esdrúxulo! — Embora reconhecesse a astúcia de Jalef, a boca do capitão contorcia infestada de desprezo. — Ele não é tão... gagá como os toscos dizem por aí.
Tomi soltou um riso debochado, revelando seus dentes de coelho.
— Velho esperto, isso sim! — O leal aprendiz descontou chutes no mato ao redor, resmungando feito um menino contrariado. — Chegamos tão perto daqueles dois guardiões idiotas. E sumiram na nossa cara!
— São esses acessos e as malditas senhas! — Xark cuspiu um catarro amarelado na grama. — Mas sei que cedo ou tarde cruzaremos um desses. Aí, meu chapa, o estrago será grande! Ninguém vai escapar!
O novato concordou copiando o semblante ofídico desdobrado pelo comparsa.
— Faz tempo que o chefe cisma em atravessá-las e nada. E o que ele quer? — O jovem raspou o pé no chão num disfarce tão anêmico quanto o rosto. — Acho que se esquece que compartilham a mesma genética. O tio é tão sabido quanto ele!
Os dois se entreolharam e o rapaz soluçou. Xark arranhou a barba com a conclusão precipitada e abanou a mão jogando as palavras para longe. Receava admitir a genialidade de Jalef. Contudo, longe do mestre, a ousadia em confessar os pensamentos se emancipava, desenfreada como pedregulhos numa ribanceira.
Anuindo com a cabeça, o capitão revelou uma covinha ao apertar o canto da boca e as sobrancelhas arqueadas admitiram a verdade exposta pelo aspirante a caçador. Numa repetição de eventos audaciosos, o sangue acusou a desenvoltura e determinação do irmão mais velho dos Terók.
"Por que raios ele se rebelou?" — O mistério insistia em açoitar a mente juvenil.
— Jalef sempre foi tido por menino rebelde da família — o veterano se antecipou ao ver um lampejo de dúvida estampado nos olhos de Tomi Arcata feito um outdoor luminoso. — E quando se é macetado, ano após ano, por pessoas próximas — fez uma pausa, empinando o nariz para farejar o trajeto de volta — acaba encarnando a ideia.
Soltando um barulhinho com a boca, o novato virou o rosto. Supondo que o rapaz achava tudo uma baboseira, Xark não teve saída a não ser continuar o falatório:
— Taurim e o filho sempre fizeram pouco caso de Jalef. Mas, Traium, ainda rapaz, começou a dar uma atenção extra no tio.
— Por quê? O que ele fez? — Tomi apertou os olhos tão afiados quanto o vidro, imaginando a face do velho desenhada nas mãos.
Xark meneou a cabeça, analisando se as orelhas do recruta não se desenvolviam conforme as de um burro. Às vezes, era isso que Traium queria, pensou, erguendo com nojo o lábio superior. Ter muitos soldados para defendê-lo e poucos cérebros para atormentá-lo, sabe?
No entanto, se o garoto desconhecia a história dos Teróks era melhor que o assunto continuasse enterrado no passado. Além disso, se desse com a língua nos dentes, o preço a se pagar se estenderia à pena capital. Xark fechou a cara num misto de preocupação e desdém. Não queria perder o soldado, mas não derramaria uma lágrima por ele.
— Jalef abriu as asas feito um pássaro desesperado e abandonou o cativeiro. Então, desvinculou-se da SOTE e criou a Sociedade de Gala — sem ter escapatória, refrescou a mente juvenil, mas apenas o necessário. — Com alguns apoiadores, formou o Conselho de Glacídeo e ampliou os ideais contrários aos do irmão.
— Resumindo: é um insolente nato! Amante das pragas-vivas que se espalham pelo planeta! — O aprendiz diminuiu a boca com a cara de nojo.
O capitão desprezava o jeito do jovem. Além de ser um péssimo caçador, não tinha papas na língua. Isso poderia ser sua ruína, caso a afronta atingisse um superior. Riu ao imaginar sua submissão brotando dos pontapés que daria, caso algum desaforo estourasse em cima dele. No entanto, Tomi narrou o jogo de maneira certa. Tinha de admitir. Afinal, para ele, Jalef nunca passou de um primogênito mimado e arrogante.
— Não satisfeito, ainda abriu novas passagens pelo planeta, cuidando para que só a sua trupe tosca pudesse atravessar, claro — o galaceano cuspiu e mirou um ponto perdido na mata. O gesto fez o rapaz analisar o ambiente, um tanto desconfiado. — O cara nasceu para dificultar nossa vida. Esses dunas cretinos vão acabar dominando o lugar! E a culpa será inteiramente dele!
— Eu não me conformo com isso aí também! Um bando de praga-viva andando por Galácena, livre como nós! Não me conformo! — Os punhos do jovem se agitaram na penumbra da floresta, desejosos por um pescoço e os pés bateram no chão num reflexo de criança ressentida. — E nós, capitão? Vamos voltar sem nada? Traium vai nos trucidar!
— Cale a boca e se recomponha! — O comandante venceu a disputa no grito, o indicador quase entrando no nariz aquilino. — Temos a localização do sumiço daqueles dois. Já é um começo!
— Recomeço você quer dizer! — Arriscou numa voz chorosa, domando o que restava de raiva ao andar com lerdeza pela vegetação rasteira. — O resultado é sempre esse...
Com o rosto mais escurecido que a noite, Xark se demorou na petulância juvenil. Ouvir verdades doloridas degolavam seu brio de predador.
"Sempre a mesma sorte, sempre a mesma mágica." — O caçador sentiu o estômago embrulhar ao refletir sobre a incapacidade em observar a passagem tomada pelos fugitivos. Golpeou o ar com dois socos fechados e rápidos.
Estranhou o cessar do falatório do novato, mas achou bom. Se continuasse, alteraria a palidez do sujeito ao despejar o peso das próprias afirmações. No entanto, Tomi ficou estacionado no meio do mato. Então, os olhos embaçados de ódio, correram em linha reta à única prova a denunciar a presença dos rebeldes. Uma trilha de pegadas se escondia entre o solo arenoso. Correu ao ponto de início da fuga e se arremessou no chão. Dilatando o nariz, farejou perfume, suor e veneno. Um capim ralo crescia em meio a um sedimento seco, dando fim ao rastro dos membros da Sociedade de Gala.
— Veja! Rastejaram por aqui... e aqui — ele apontava às denúncias do terreno, percebendo ser inútil insistir na investigação, em sua opinião, sem pé nem cabeça. — Fim do trajeto.
Devido à estiagem, o capitão calculou que alcançariam uma bifurcação do Lago Palla metros à frente. Inúmeras garças despediam-se com o alçar dos voos, assustadas pelo alvoroço dos dois. Além de enfeitar a água com seus tons variados — fez uma careta de desagrado — eram ágeis feito os Guardiões de Gala. Desviando-se umas das outras, embalavam uma corrida irregular sobre a superfície aquática. Voltando à própria pesquisa, contudo, não viu quando Tomi tremeu os lábios num meio sorriso.
"Eu estou aqui, estou seguro..." — A movimentação do viveiro a céu aberto o deixou desconcertado. Num instinto, fechou os olhos e encolheu o pescoço por causa da barulheira. Ser esquecido, em tenra idade, num lugar sujo e lotado de penas por dias, assaltou a mente de imediato.
Grasnando com as asas declaradas, a névoa colorida se despediu acusando a fobia penosa incrustada no rapaz. Com os braços enrolados no corpo arcado, manteve-se estátua até que o último soldado bicudo ganhasse o céu.
De fato, o local não se adequava ao restante da Floresta de Aycol. O canto dos pássaros — que se aninhavam nos poucos galhos ao redor do lago — contrastava com um silêncio perturbador da região, engrandecendo o lugar. Sem mata alta ou enormes rapés qualquer um era presa fácil, fosse dos soldados de Traium, fosse das garças histéricas.
— Se não o conhecesse, diria estar desvairado — o aprendiz a caçador circulou o dedo ao redor da têmpora, mas respirou aliviado pelo desinteresse do comparsa no capítulo vexatório — talvez cômico — dele com as aves.
Em meio a resmungos sem sentido, Xark permaneceu agachado, conversando com a vegetação. Apesar de ignorar o atrevimento, reparou que o sujeito minguou o corpo assim que o encontrou. De cara amarrada deu um tranco no ombro do encrenqueiro.
— Não adianta! — O comandante enxugou a testa e cuspiu. — Qualquer tentativa de busca será um desperdício de energia.
— Quê? — Arcata sentiu o estômago reclamar com a ideia de voltar de mãos abanando. Os olhos variaram entre ele e um ponto vago na mata. — Não podemos desistir, capitão!
— E o que você sugere, hein? — Três passos pesados e chegou a centímetros do insolente. — Se conseguiram sumir, mesmo com dois grudes nas costas... — Pigarreou duas vezes e se livrou do catarro. — Temos de admitir: foram espertos além da conta!
— Vamos olhar ao redor — o rapaz o puxou pela mão, já dando pulinhos no mato alto. — A passagem está entre as flores! Deu para ver!
O homem se soltou de imediato. O solavanco fez o novato cambalear para o lado. Sem dar ouvidos, ateve-se à dor dos ferimentos que pareciam corroer o corpo. Precisava de cuidados.
— Se não fossem esses cortes... — Xark cuspiu outra reclamação amarelada, enquanto as mãos sufocavam um par de veias inchadas numa das pernas. — Eles veriam só!
Rasgos profundos e arroxeados desciam queimando os membros inferiores. Comparou-os a rios de lava com a intensidade aumentando como se ainda estivesse entre as rosas. O anseio da perseguição fora tanto que não verificou o caminho peçonhento ao qual se infiltrara. Acabou sendo vítima da própria arrogância ao não dar o devido valor à situação tão previsível quanto perigosa.
Xark petrificou ao avaliar o ataque das flores de Aycol. Pontos dilacerados do uniforme, expunham a pele à toxina. Soltou um palavrão cabeludo ao lembrar do teatro realista de Zincon. Havia razão no sujeito em hesitar pertencer à vegetação. No entanto, só agora compreendia que o medo do guardião dera créditos à fuga, ludibriando seu bom senso de caçador. Apertou os punhos, louco para acertar um rosto ao juntar as peças do quebra-cabeça. Afinal, não se atiraria num ambiente que julgasse oferecer mais estragos que vantagens.
Sentiu o corpo tremer ao se imaginar cara a cara com o chefe e espiou o recruta paralisado ao lado. Num disfarce, riu sem alegria com a figura — tão abatida quanto pálida — esbugalhando a vista com a desistência da caçada. Em seguida, buscou pelo lucro — mínimo — do momento e, após enrolar a calça acima dos joelhos, apressou-se em entrar no lago. Consumindo-se em um grande suspiro, desfrutou de cada minuto refrescante como se nada mais importasse.
De modo gradativo, a ardência diminuiu e o veneno se neutralizou em resposta à água congelante. Da mesma forma, os braços receberam o bálsamo natural. Apenas o tronco e as mãos, protegidas por luvas, ficaram ilesos à aventura no roseiral.
O sedimento, erguendo-se ao fundo com a força dos movimentos, logo retornou ao repouso habitual e a água clareou outra vez. Estacionado em cima de algumas pedras, apoiou as mãos na cintura e deu meia volta com a cabeça, a fim de investigar superficialmente o lugar. O semblante e o uniforme — amarrotados e sujos — combinavam num estilo único de quem jogou e perdeu.
— O que o senhor está fazendo, capitão? — Sentado num toco e sustentando um cenho carrancudo, Tomi aguardava pela pausa do superior. — Vamos vasculhar o local!
— Olhe só isso aqui! — Aos berros o comandante apontou o sangue manchando a água ao redor. Alguns pássaros revoaram, mas o recruta segurou os nervos. — Acha que estou descansando, hã? Curtindo o calor do verão? — Companheiras do deboche, as mãos balançaram no ar.
— Ah, pare de reclamar dessas feridinhas! — O galaceano cavou o ar com a mão, insistindo em ignorar as próprias lesões e a algazarra no céu. — Que marica!
— Não seja ridículo, muito menos negligente! — A cólera do veterano escalou a garganta com a petulância na beira do lago. Por sorte, não estava em condições de esbofetear ninguém. — Fui convocado por meu superintendente para instruí-lo! Então, pare de saracotear e cuide do seu estrago!
Apesar de ter aberto o caminho pelas roseiras, o capitão sabia que o novato também se arranhara. Certificou-se da suspeita quando o rapaz subiu a calça. As pernas vermelhas apresentavam vergões compridos entre os joelhos e as canelas. E a tonalidade pálida cedia espaço a uma vermelhidão alérgica. Mesmo com o cenário dolorido, cogitou que o contato com o veneno das flores fora menor. Talvez, por isso, parecesse não demonstrar tanta aflição.
Notando que o físico de Tomi denunciava-se em disposição e que por ele a caçada deveria continuar, Xark se sentiu humilhado. Os berros e a grosseria nada mais foram que um reflexo desse sentimento. Além do faro, era o que fazia de melhor.
— Se acalme, rapaz! — Arranhou a barba de três dias, sem acreditar no que dizia.
De dentro do lago, observou o recruta se arrastar de um lado ao outro, um animal enjaulado esperando pelo tratador. Uma névoa de poeira ergueu-se à altura das coxas, denunciando o tamanho da frustração.
Após um tempo submersas, o fluxo sanguíneo vertia com menos força e as pernas do comandante venciam a batalha. Amortecido pela água gelada, aproveitou para limpar provisoriamente as luvas sujas de sangue seco e terra. A feição relaxada lembrava a um simples camponês ocupado com afazeres do cotidiano.
Apesar da aparência do jovem carregar um desapontamento visível, o capitão aprovou a desistência da afronta. Os lábios torcidos estacionaram num protesto enojado, mas discreto. Com alguns ferimentos já cicatrizados, arriscou caminhar em terra firme.
— Não há nada, por enquanto, que possamos fazer contra essas malditas passagens — o caçador indicou um lugar qualquer na vegetação. A sobrancelha arqueada se impôs quase tão afiada quantos os espinhos. — Pare de insistir e vamos embora!
O aprendiz desviou os traços juvenis ao lado oposto. Fingindo não ver a cara nutrida em contradição, Xark se dirigiu à borda do lago.
— Sei que tem ânsia em vencer, Tomi — tornou o comandante extraindo, não sabia de onde, a paciência que julgava não ter. — Já fui como você!
Observando uma garça remanescente, silenciou as próprias palavras. Ao reboque, o recruta seguiu o gesto, rondando o animal xereta apenas com os olhos. Soltou um ar trêmulo quando o bicho dispersou.
— De que jeito vou provar meu valor a Traium? — Mostrou as palmas vazias e sem cor e engoliu uma saliva abarrotada de desgosto. — Você sabe como ele é... irredutível! Desistir não faz parte do seu vocabulário!
— E quem falou em desistir? — O capitão subiu o queixo. Vendo-se obrigar a peitar o rapaz, chegou perto. Os olhos o desafiaram até o galaceano baixar a guarda. — Com o tempo você vai aprender a controlar os nervos e saber tirar bom proveito deles na hora certa. Sei o que digo!
Xark deu um tapinha no lombo franzino e, então, se curvou para amarrar um pedaço de pano e estancar o sangue que insistia em sair na parte de cima de uma das panturrilhas. Levantando-se com calma, esticou as costas até estalarem, abandonando a margem do rio na sequência.
— Você deveria tratar esses machucados. À noite, podem piorar! — O alerta tomava distância, largando o novato à própria sorte. Se não aprendesse por bem, seria por mal.
"Pior que dói prá burro" — Tão novas quanto inexperientes, as pernas do aprendiz latejaram num ritmo mais acelerado que antes. O líquido quente escorria na direção do tornozelo, silencioso e sem pressa.
Ele se espantou de início, mas sem ter a quem recorrer, remeteu-se a erguer o lábio com nojo do próprio sangue. Enquanto a agressividade do veneno corroía a pele, a respiração pesava no peito. Ainda assim, não estava tão ferido quanto o comandante. A ardência, entretanto, ia além da imaginação e não deveria ser subestimada.
O jovem inclinou a cabeça em busca dos joelhos, avaliando novamente o estrago. Enfim, seguiu o conselho do capitão. Afinal, precisava estar em forma caso fosse convocado à outra missão. Lançando os ferimentos na água, fechou os olhos ao sentir um alívio instantâneo. Logo depois, caminhou em direção a um ponto afastado em meio à mata intermediária.
Quase vencido pelo crepúsculo, o sol se esforçava em clarear a região do Lago Palla. Tomi girou para trás e viu as aves revoando, retornarem às partes rasas. Algumas arriscavam uma pescaria para o jantar. O galaceano passou a mão por todo o cabelo, feliz por estar longe dos animais.
Um vento forte e morno agitou a água calma, bastando para levantar as folhas e os pequenos gravetos livres no chão. As árvores balançaram em ritmo ordenado como num ensaio de despedida e ele apressou os pés. O céu escurecia ganhando a noite com rapidez e nuvens densas se juntavam em uma única massa. O ar quente sugeriu a vinda de uma grande tempestade, a romper a paisagem tranquila da floresta a qualquer momento. Então, as aves alçaram voo — cruzando o céu a poucos metros de sua cabeça — sumindo na mata. Suspirou num ar esgotado, por sorte tinha Xark e seu faro como companhia.
Tal mãe a proteger a cria, o breu envolveu os caçadores camuflando-os de possíveis ameaças. Em meio às árvores, confessavam-se presentes apenas à denúncia da lua Ádria. Tomi guardava ao máximo os pensamentos para si. Sabia que qualquer conversa virava refém da vegetação, embora permanecesse livre no ambiente.
Já na cola do superior, enrugou a testa. Não viu nada ao redor, mas os olhos saltaram das órbitas com uma faísca acendendo a mente. Mordeu os dentes, sem resistir.
— E se usarmos os drotes? — O rosto se arredondou numa admiração com os próprios neurônios. — Se essa floresta enxerida guarda tudo para si, cada verbo, cada sussurro — bateu uma mão à outra, fatiando as palavras — nada mais justo do que dividir com a gente o que aqueles vermes disseram!
Analisando-se por instantes, trocaram olhares semicerrados.
"A ideia é ótima." — Xark tremeu por dentro, lamentando-se não ter cogitado o uso do aparelho primeiro. Mudo, espelhou o pensamento num sorriso forçado, um que talvez nem mesmo admitisse a astúcia do rapaz.
Metendo a mão no bolso, retirou um objeto pouco maior que a palma. O dispositivo era liso, lustrado e lembrava a um caracol com exceção do tamanho. O brilho dourado reluziu ao luar, fazendo ambos comungarem um pedaço de felicidade. Nem tudo estava perdido, afinal.
Com a vista vidrada num ponto qualquer da mata, o capitão colocou a parte pontiaguda da pecinha num dos ouvidos. O jovem aprendiz não ousou falar, apenas passou a mão no rosto suado. No entanto, ficou apreensivo quando o superior se trancou em total escuridão. Concentrar-se nas vozes da floresta exigia disciplina.
Tomi agradeceu por não ser ele a ouvir o ambiente. Tinha receio do aparelho, pois ser invadido por risadas, assobios e vozes — por vezes arrepiantes — não era para os fracos. Soube que se falhasse nos treinos, poderia até enlouquecer.
Empilhado a centímetros do capitão, aguardou. Ao vê-lo negar com a cabeça, arqueou o corpo, reprimindo milhares de perguntas prontas ao despejo.
— Nada — o ânimo do caçador latejou as têmporas e a orelha reclamou após vários minutos de investida. — Bem pensado, rapaz. Agora, vamos para casa.
Não era sempre que o comandante distribuía elogios. Àquele instante, ofereceu ao jovem um sorriso dividido. Algo entre o reconhecimento e a ruína do plano.
— Como assim? — Embora cabisbaixo, deixou a mudez de lado para enfrentar o superior. — Conte o que houve!
— Foi pura agitação — disse simplesmente, detestando ter de afirmar a segunda derrota do dia. Ao encarar a olheira juvenil, decidiu acabar com o suspense. — Foi uma confusão, uma festa cheia de balões prestes a estourar na minha cabeça. As conversas vieram carregadas por uma cavalaria... — acenou com a mão aos gotes imaginários e soltou um ar pesado, cheirando a tabaco. — Então, mirraram e depois de um estampido... nossa — meteu o dedo no ouvido como se o barulho se perpetuasse infinitamente — meu tímpano quase estourou.
Tomi murchou o corpo com o relato, definhando igual a um velho de noventa anos. Começou pelos ombros, depois o tronco e por fim as pernas. Cogitou que as palavras que Xark buscou, no entanto, ou se esconderam no amontoado de frases ou simplesmente não foram captadas pelo aparelho.
Quando o galaceano guardou o drote, o rosto esbranquiçado tomou-se por uma vermelhidão momentânea. Dedos rígidos curvaram-se, mas agarraram apenas o ar. Resmungando palavras soltas, começou a balançar os braços num vaivém alvoroçado logo atrás do capitão. Por um instante, teve o comportamento ignorado até que tropeçou feito um bêbado desconjuntado.
Erguendo uma feição abastecida em desconfiança, secou o nariz e aceitou o reforço para se levantar. Continuou o percurso em silêncio. Se de vergonha ou fúria não soube avaliar. Contudo, os olhos iniciaram uma revolta, esmagando cada planta classificada como inimiga em potencial.
No entanto, admitiu em segredo, que o autocontrole do comandante provava a evolução dos nervos. Soltando a decepção pelo nariz, seguiu em frente como se esquecesse do fiasco com o drote. Supôs que a ele, bastava canalizar a atenção no olfato de lobo e tudo estava em paz.
Tomi largou os ombros. Ainda tinham quilômetros a cobrir até alcançarem os domínios da SOTE, mesmo que desfrutassem das passagens simples. Apesar do mau humor não o abandonar, agradeceu por Jalef não as ter confiscado.
— Vamos encurtar a distância — disse o veterano com o indicador em ação ao avistar um dos acessos comuns. — Ali no barranco.
O galaceano assentiu sem muito entusiasmo e, assim que chegou ao pequeno talude, desapareceu. Aterrissando no outro lado do portal, largou um suspiro comprido. Enxergar novamente fazia toda diferença.
— É lua cheia — conservando o pescoço torcido para cima, o jovem admirou a dona da noite quando o mais velho surgiu na borda de uma clareira.
— E daí? — O caçador deu uma rápida analisada no círculo brilhante. — Vai uivar?
Pressionando a língua entre os dentes, o recruta sacudiu a cabeça ao responder o deboche com um nhé-nhé-nhé".
— Ele fica duas, melhor, três vezes mais nervoso nesse período — manteve a vontade de soqueá-lo bufando sozinha no peito. — Nunca reparou?
— É óbvio — reconheceu sem dar trégua aos pés. — Mas não há nada que possamos fazer. Já disse!
Testemunha de uma revolta, a lua Ádria foi a primeira coisa que Traium viu ao romper com a então, adolescente, Marguel Redin. A separação lhe causara um transtorno maior que o esperado e estava acima de qualquer compreensão, inclusive dos caçadores. Podia-se contar nos dedos o número de felizardos a par da situação. Xark era um e o parceiro o invejava por isso.
— Calma, rapaz! — O capitão deu um tapinha nas costas do novato como se o baque dispersasse a angústia juvenil. Não era costume demonstrar sentimentos, mas o aprendiz era sua responsabilidade sob todos os ângulos. — Não estamos tão ferrados assim! — Insistiu na mentira.
Sinalizando estar tudo bem, o jovem assentiu, mesmo que a boca pesasse dois quilos. Com um sorrisinho esquisito, de quem aceita sem acreditar, o veterano apertou os passos e seguiu em frente.
Embora a superfície do terreno fosse nivelada, o trajeto declinou após a contribuição infeliz de Tomi sobre a lua e Traium. De cansativo para indigestos, os pensamentos consumiram ambas as mentes. Se antes experimentavam uma sopa de caldo ralo, agora receberiam nada além de água de esgoto ao chegarem na SOTE.
Apesar da longa distância, o fardo por estarem de mãos vazias era o peso incômodo a ser transportado, a denúncia da falha no processo. E, numa noite de lua como aquela, sabiam que qualquer pedrinha com limo poderia gerar um tombo catastrófico.
Sem dispor de prisioneiros ou informações precisas, a insegurança borbulhou nas entranhas dos caçadores, especialmente do recruta. Calcular a recepção que teriam só piorava o mal-estar. Fungou o medo pelo nariz. Ao menos tinham ciência que o Lago Palla era dono de uma entrada "viva", acionada pelos Guardiões de Gala.
Por ora, a ideia bastou para amansar a queimação estomacal. Suspeitou, entretanto, o silêncio incomum do comparsa. Afinal, enquanto ele externava a frustração pela caçada e o pavor em topar Terók, o capitão se disfarçava de maneira exemplar. Mal imaginou, contudo, que comungavam dos mesmos sentimentos. Esticando o canto da boca, almejou ser igual ao galaceano quando crescesse.
"Talvez, se ficássemos de campana próximos à região..." — erguendo o nariz Xark captou o cheiro da rota, embora a cabeça parecesse uma panela de pressão — "...pudéssemos obter algum sucesso." — O cérebro, porém, antes de derreter o resto de conexão, encontrou uma defesa hábil. Algo que divulgaria ao chefe supremo a fim de amenizar a "cólera da lua cheia".
A carta na manga caminhava ao lado, meio amassada e descolorida, mas inteira. Tomi não mensurava ser o trunfo secreto, o escudo de proteção de alguém que mantinha uma imagem de soberba enraizada na alma. O dom do aprendiz serviria como moeda de troca. E eles mudariam o placar do jogo ao apresentar a peça extra ao juiz.
O dom aguçado de Xark, no entanto, conquistou seu espaço ao auxiliar no deslocamento pelo breu da noite. Horas depois, um terreno de gramíneas e pequenos arbustos acusou a fronteira com os domínios da SOTE.
Com o horizonte revelando-se à luz do luar, o recruta deixou escapar um gemido agonizante ao presumir a fúria de Traium o abocanhar pelas costas.
"Uma mordida de tubarão" — engoliu um amargo ao aprovar a ideia infeliz que arrancaria um braço ou uma perna e, com um pouco de sorte, pouparia a cabeça.
Meio sem jeito, coçou a nuca ao ver a silhueta do caçador. Não dava para distinguir muito bem, mas pôde jurar haver um peixe maior, pronto para triturá-lo no próximo deslize de covardia.
Assim que cruzaram o último morro, o entorno do castelo estendeu-se diante da dupla. Imponente, tal qual a sociedade que abrigava, reluzia um paredão alto, repleto de tochas brilhantes. O Pântano Sherper tangia uma das beiradas da construção. Sua água, tão lamacenta quanto as mentes detrás do muro, coloria-se em vários pontos dourados. Entre a vegetação, espionaram dezenas de flechas mirando aos movimentos suspeitos.
— Alto lá! — Berrou uma sentinela de plantão, contendo o ataque com a mão direita. — Identifiquem-se!
Ambos saíram do matagal na lerdeza de dois tortugos. E, com as mãos livres de quaisquer ameaças pontiagudas, aproximaram-se pelo calçamento de pedras.
— Capitão Xark e Tomi Arcata, senhor — respondeu o primeiro, içando o rosto devagar como um trator em primeira. — Vamos, abram os portões!
O veterano se posicionou a um metro do lodaçal. De punhos cerrados e o tronco mais ereto que uma parede, exigiu o devido respeito. Admirando a atitude, Tomi o imitou ao lado.
Sem demora, a tropa abaixou a imensa entrada de ferro, dando livre passagem aos concidadãos da SOTE. Com as fisionomias escaldadas em suor e os trajes vindos de uma guerra, deslizaram por um corredor de soldados como se o ar abrisse caminho.
— Vamos pegar esses caras — ao soquear a palma, os pensamentos cambalearam num misto de revolta e pavor. — Custe o que custar!
Apesar de murmurar, o aprendiz notou a curiosidade espiá-lo em vários capacetes. O local ao qual circulavam fervilhava com mentes desocupadas, interessadas em conteúdos reservados que rendessem uma boa fofoca. Assuntos como aqueles dois brindes, aparecendo sem aviso prévio na calada da noite.
O jovem, distraído nas lamúrias, respondeu a bisbilhotice dos guardas esmagando o próprio maxilar. Num conjunto de cenho e punhos fechados, intimidou um ou outro mais próximo.
Deixando-os ao acaso, galopou à divisa do segundo portão, freando a centímetros do comparsa. Ambos atravessaram a sala central de boca fechada, apenas com os passos ecoando pelo recinto. Apesar da lama seca, ainda soavam um leve toc-toc. Do outro lado, um galaceano os aguardava.
Os caçadores da SOTE tiveram que "engolir um sapo". 🏹 Xark, no entanto, tem uma carta na manga, para tanto, Tomi precisa baixar a crista de galo.🐔
Não percam o próximo capítulo!!📖
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