Cap 12 - A Receita de Vânie Richtor
Duna: pessoa não galaceana
Ouvinte Lateral: dom da audição supersensível
Pouco antes do meio dia, a dupla mestiça entrou no escritório de Jalef. A porta abriu sem pressa quando o terráqueo ameaçou batê-la. Surpresos pela recepção, ambos permaneceram em silêncio.
— Professor? — A voz da guardiã percorreu pelo ambiente nebuloso, cuja uma fina camada de luz vencia pontos abertos na cortina. — Estamos aqui.
Por precaução, Sofia trancou no recinto. Ao se virar, encontrou uma figura paralisada passos à frente. Os olhos acompanhavam cada movimento dos dois, embora parecessem divagar para longe dali. Segundos correram até o homem voltar a se mover com naturalidade.
A galaceana o analisou de cima a baixo, convicta de que ele investigara possíveis ameaças engatadas no rastro da dupla.
— Fique tranquilo! — Soando um desprazer, deslizou a mão à cintura e esticou o rosto. — Não há bisbilhoteiros atrás de nós. Varri o trajeto inteiro.
— Bom, todo cuidado é pouco, minha cara. Não queremos a companhia de... curiosos, sim? — Deu uma piscadela e dirigiu-se ao duna com certo azedume. A pose arbitrária indiciava no rapaz a causa de qualquer chamariz. — Além do mais, é força do hábito, eh.
Alex não o afrontou. Apenas assentiu com o pedido de desculpas curvando uma das sobrancelhas.
— Estamos perto do almoço, mas... — Concluindo estarem a salvo, Jalef ofereceu um pote cheio de bombons e indicou os assentos.
Sem fazer desfeita, o casal serviu-se com os embrulhos coloridos e acomodou-se nas poltronas.
— Doces realmente ajudam a relaxar — a guardiã anunciou mastigando um chocolate recheado de mel e pedaços de avelãs.
— Então, é mesmo possível? — O terráqueo desencapou a ansiedade ao esmagar metade de um doce caramelizado. — Elka revelou. Viu o senhor mexendo em um...
Ambos correram os olhos pelo recinto, curiosos com o que não encontraram.
Desmentindo a visão contada pela amiga, o local permanecia intacto. Não havia sinal de caldeirão ou de qualquer intenção do galaceano para com a dupla mestiça. Não demorou muito, contudo, para Sofia reconhecer que o panelão de ferro, até então, se preservava no futuro.
— Sim, meus queridos, fui eu quem Elka viu — Jalef sorriu, embora conservasse um olhar vidrado no pote de bombons. — No entanto, vocês podem ver que ainda não produzi o fármaco.
— Quanto tempo até a transformação? — As mãos entrelaçadas da guardiã estrangularam o joelho dobrado. — Quais tipos de reações a autora citou? Há descrição de sequelas?
Ao contrário do namorado, Sofia permaneceu séria, receosa com o resultado ao qual a aventura poderia oferecer. Nem mesmo a tensão que começou no pescoço e desceu por um escorregador de nervos a fez desviar do Terók-bom.
— Sequelas? — Alex remexeu os cabelos com a observação que escapuliu sem permissão. Tentando parecer otimista, exibiu um sorriso de que tudo vai bem. — E vou me preocupar com isso? Não tempos tempo a perder! Não vamos dar com os burros n'água, tenho certeza.
Como um velho leão importunado por moscas, Jalef fechou a cara e balançou a cabeça. Notando o deslize, a mulher mordeu o lábio. Não era o momento de analisar o lado negativo da coisa.
Então, o jovem largou a poltrona para se escorar atrás da mulher. Torcendo o corpo, ela acompanhou o movimento e o encontrou ouriçando os cabelos num frenesi incurável. Sem medir o tamanho da tormenta, elegeu medo e impaciência os principais causadores do pânico.
Logo, o mundo pareceu desabar sobre a galaceana. Aflita com o terráqueo, inflou os pulmões até se igualar ao de um mergulhador profissional. A investida, entretanto, não fora o suficiente e o coração protestou a favor de um boicote. Não conhecer os riscos aos quais seu afeto encontraria, era correr pelo Roseiral de Aycol de olhos vendados.
— Querido, você não tem noção do que passará ao beber algo que não esteja acostumado! — Prevendo uma piscina de ácido ao final da ribanceira, levantou-se. — Não é assim, chegar, tomar e pronto! Tudo tem efeito colateral, principalmente se você é um...
Um silêncio insalubre instalou-se por instantes. Envergonhada com as palavras, engoliu os lábios ao culpá-los pela indelicadeza.
— Vamos, diga — Alex acenou com a mão e estufou o peito. — Um duna! Sou mesmo e daí?
— Calma, crianças — abandonando a cadeira, Jalef revelou ser o mais alto do trio e o único a manter a compostura. — Vocês sabem, até as paredes têm ouvidos. Se é que me entendem!
A mulher soube que a piscadela recebida, desta vez voltava-se aos ouvintes laterais que perambulavam pela SOTE. O número era reduzido, mas se houvesse apenas um estacionado do lado de fora, a conversa seria compartilhada.
Cabisbaixa com a falta de decoro, a dupla retornou aos assentos tão murcha quanto bexiga em fim de festa. Sem ousar erguer o rosto, a guardiã se sentiu traída pelo gênio impulsivo.
— Querido, a possibilidade em se alterar um material genético sempre foi tida como lenda — encarou o conterrâneo com olhos desejosos por um amparo. — Nós ouvíamos histórias a respeito quando pequenos.
— Sim, meu caro, as crianças em idade escolar adoram fantasiar sobre elas — o professor se apressou a confirmar, temendo sobre as conclusões precipitadas de Alex. Mesmo assim, se vestiu em sinceridade. — Já ouvimos inúmeras histórias de pessoas modificadas que se tornaram monstros ou ficaram deformadas. Revoltadas, atacavam e destruíam o restante da popul...
— Ah, por favor, Jalef! — Sofia descontou um tapa na poltrona e o berro corou as bochechas. — Todos sabemos que isso é len-da!
A feição estragada ajudou a cortar o exagero do amigo que anuiu uma vez com a cabeça e baixou as mãos ainda paralisadas em garras ameaçadoras.
— Desculpe, minha cara — ergueu os ombros, isentando-se com uma risadinha à brincadeira deslocada. — Não pude evitar, sim?
Descrente da atitude, a guardiã esmagou a vista e o observou com interesse. Quando a astúcia dos Terók se desprendia das amarras, nem mesmo Jalef se aguentava. Estava ciente, no entanto, que apesar de ser irmão de Taurim, era como ela: um combatente em busca da paz.
Acariciando as mãos de Alex, a mulher desejou tirar as imagens perturbadoras que decerto conspiravam na mente do amado. Queria tê-lo perto, mas sadio. A ela, a morte seria menos dolorosa do que vê-lo desvairado para sempre.
— Essas narrativas limitam-se aos livros e ao folclore de Galácena, meu filho — o professor tentou consertar ao ver o rosto do forasteiro esticado igual a um bambu. — Nunca foi constatado alguém nessas condições e...
— Eu não vou recuar! — Apesar do estômago se revoltar com uma possível mudança no caráter, a voz saiu calma. Não estava nos planos desistir antes de tentar. — Se há um meio deste planeta me aceitar, eu... irei atrás...
"Vamos protegê-lo durante o procedimento, sim?" — Misturando-se à mente feminina, o anfitrião arquitetou uma defesa à cobaia. — "Camuflar o processo com a fábula infantil."
O raciocínio do amigo acabou por confortá-la e ela assentiu sem se mover. Um suspiro foi o único produto confessando a comunicação. Afinal, ninguém poderia supor uma ocorrência antes de a mesma acontecer. O único, no entanto, a beirar um perigo palpável era Alex. Algo que sinalizara estar disposto a enfrentar e a guardiã não tinha como impedir.
— Bom, eu encontrei uma fórmula! Bem complexa por sinal — Jalef levantou o troféu retangular. — Está em um dos capítulos escritos por Vânie Richtor.
Sofia atarraxou olhos e boca numa comemoração silenciosa. Suas idas furtivas às estantes ilegais compensaram o risco e, agora, renderiam bons frutos.
"Quem diria que esse livrinho seria dono de uma chave preciosa" — ela analisou o objeto nas mãos do amigo com um sorriso tão discreto quanto o próprio exemplar. — "A direção certa a um recomeço secreto e proibido..."
Feliz com o atrevimento, lembrou-se do momento em que encontrou o livro, esquecido atrás de outros mais robustos.
Despertando-a do cenário frio da biblioteca, uma energia invadiu a mente e, sem permissão, sugou-lhe os pensamentos. Com o susto, esbarrou na vista acentuada do professor.
"Exato, querida!" — Estalou os dedos com a voz intrusa confiscando parte do cérebro e excluindo o duna da conversa. — "E o mérito é seu! Nem eu recordava de tal aquisição."
As bochechas arderam com o elogio, embora desconfiasse da ingenuidade de Jalef para com o livro. Sem dar importância ao fato, agradeceu o resultado positivo ser a consequência do perigo que decidiu passar. A partir daquele encontro, a estadia permanente do forasteiro se desenhava tão concreta quanto as paredes do escritório. Um pulinho na poltrona desconectou-a do amigo.
— Ficará tudo bem, meu amor! Em breve nos livramos da separação! — Alheio à trama formada, o terráqueo aparentou um ar mais decidido. — Eu acredito em Jalef.
"Melhor assim" — resignou-se atrás de uma feição mentirosa ao sentir a carícia na mão. — "Quanto menos ele souber, menores as chances de Taurim aterrorizá-lo."
O mestre agradeceu à declaração do rapaz oferecendo outro tanto de bombons. O jovem pegou dois de uma vez. A guardiã, entretanto, preferiu forrar o estômago com a ideia de que os anos que passariam afastados estavam com os dias contados. E se havia alguém em quem confiava de olhos fechados era no homem de cabelos dourados. Mesmo sendo um Terók, a integridade era peça chave de seu caráter.
Ao acaso, um plano nasceu nas dependências da biblioteca da SOTE. A mãe, sequer imaginava a concepção e sustentava olhos brilhante de interesse desde o momento em pisara no escritório. A fibra e a coragem de Sofia reforçariam os propósitos do genitor. Era hora de agir em prol de um bem maior, mesmo se despertassem a ira de alguns.
— A primeira coisa a se fazer, meus caros, é coletar os ingredientes, sim? — Agitou uma folha de papel ao que pareceu ser uma longa lista. — Levará meses até reunirmos tudo.
— Meses? — A reclamação se ergueu nas mãos e um sorriso azedo custou a surgir em Alex. — Podemos colaborar para juntar os itens?
— Assim encurtamos o tempo — convencida de que o elenco seria liquidado num estalar de dedos, a mulher incentivou o diagnóstico do professor batendo o pé contra o piso.
— Talvez não seja má ideia — Jalef pendeu a boca, pensando na dificuldade em angariar todos os tópicos sozinho. — Mas, por ora, deixem-me averiguar melhor os elementos apontados pela autora, sim?
A jovem suspeitou do deboche engatilhado no semblante de quase cinquenta anos. Ao analisar a listagem, mordiscou as unhas como se escolhesse o almoço num menu escrito em outra língua. O entusiasmo inicial rolava por um desfiladeiro e no momento não via chance de resgatá-lo. Entortando a cabeça, tentou desmistificar a fórmula que se acumulava nos mais variados componentes. Desistiu no meio do percurso.
"Se levar meses estaremos no lucro" — entregou uma cara de sono ao anfitrião após checar que a receita exigia atenção até mesmo na hora do dia para se coletar os ingredientes.
Devolvendo o papel rabiscado, encarou o rapaz num tom desbotado. Afinal, não seria tão simples fazer uma poção cujos itens se revezavam entre o difícil e o impossível.
— Temos de ter muita cautela e não provocar a desconfiança em ninguém — a guardiã demorou-se em Alex. — O menor descuido...
— Vai dar certo, meu bem — ele explorava as páginas do livreto, embora seguisse tão alheio ao que significavam quanto à amada. — ...mais cedo do que imaginamos!
Como se brincassem do Jogo do Sério, a dupla galaceana se examinou por instantes. Tinham total ciência do terreno espinhoso — mais que o próprio Roseiral de Aycol — ao qual se embrenhariam. Teriam de usar todo artifício que estivesse ao alcance para enfrentar Terók e seus simpatizantes, pois a atitude do trio se destacaria numa provocação sem precedentes.
— Se Taurim ou Traium nos descobrir... — sem coragem de prosseguir com a blasfêmia, a mulher indicou com a cabeça o livreto sendo folheado à toa pelo terráqueo.
Ouviu-se um barulho estalado quando Alex fechou o exemplar, lançando-o sobre a escrivaninha na sequência.
— Não daremos motivos para tal, minha jovem — o professor empilhou alguns livros sobre os dois eleitos. — Por isso levaremos o tempo necessário e só então agiremos pelas vias de fato.
— E também nunca saberão de seu envolvimento, senhor! — O rapaz soou esperançoso. — Levaremos o segredo além de nossos túmulos.
A guardiã notou um ar polido se moldar no rosto do anfitrião. Diferente do duna, sabia que a preocupação do homem perambulava em outro campo, um vigiado por alguém com olhos de falcão e alma de abutre.
Era óbvio que o galaceano se defenderia das garras dos familiares — a mulher sorriu com o próprio pensamento — caso contrário, estaria em qualquer lugar que não ali. O maior receio de Jalef, porém, — e isto deixou transparecer a ela — era de que Taurim, em meio a um devaneio, atentasse contra a vida do terráqueo.
Num misto de raiva, desespero e medo, os olhos da guerreira se avermelharam com a ideia. Imediatamente, o pavor em serem expostos tentou minar o desejo tão singular de desfrutar uma vida com Alex. Manteve-se isolada, no entanto, sem demonstrar o caos imperando nos nervos. Apesar do coração bater na garganta, o conforto em ter uma peça importante ao lado a impulsionaria adiante.
Afinal, agarrara-se na figura mais emblemática possível de Galácena, a fim de solucionar o problema genético do namorado. A oportunidade, contudo, fervia no sangue de um Terók e isso não poderia contestar.
Longe de fazer donativos, conhecia a fama da família. E com o amigo não seria diferente. Mesmo assim, aceitou a aliança ciente de que seria sua marionete particular. Um preço que julgou relativamente baixo por um prêmio de ouro.
Sofia trilhava um caminho semelhante ao de Jalef, embora suspeitasse terem objetivos distintos. Se no seu lado havia a vontade de ter um forasteiro para sempre no planeta, no do mestre havia o desejo em mostrar de que era possível. Um era o respaldo do outro de um princípio questionável por muitos: o direito de viver em Galácena.
Adendo da página 22 do livreto: O Âmago das Fórmulas Moleculares, da autora Vânie Richtor.
Alguns itens da Receita...
As lendas galaceanas poderão resolver o ❌ da questão❓ Ou não passam de histórias infantis📖🧒🏽? Ou são uma pedra no 👞 dos Teróks❔
Vamos juntos viver essa aventura!!
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