Gaiola de ferro e os acessórios.
Um dia o jovem Amadeu estava preso em uma gaiola de ferro. Ele já tinha tentado sair pelas hastes de aço, mas não cabia na abertura. Estava lá há tanto tempo que já não sabia quantos anos ele tinha. A gaiola ficava suspensa a cerca de quinze metros de altura, içada por fortes correntes. Uma vez por dia, a gaiola arriava no chão de terra e os soldados abriram o portão para que ele pudesse fazer suas necessidades no chão. Não adiantava tentar fugir, pois outra corrente estava presa a sua cintura.
Ele não conhecia os pais, muito menos sua origem ou como viera parar ali. Seu cérebro havia se acostumado àquelas condições desumanas de sobrevivência, mas ele nunca teve um referencial para sofrer, pois sempre viveu ali. Seus únicos parâmetros de tranquilidade ou inquietude eram os dias frios e os dias quentes, pois tudo o mais não mudava. A comida nunca fora diferente daquela pasta amarelada, posta em um prato amassado de alumínio.
Para ele, viver ali significava viver. E sua mente lhe contou que a vida dos soldados, que estavam sempre bem vestidos e gordos, não era igual à sua porque eles pertenciam a outra espécie de ser humano. Cada espécie tinha uma maneira de viver, a dele era permanecer na gaiola, dormir, comer e realizar suas necessidades fisiológicas na hora de "desovar", como diziam os soldados.
Não era muito comum ocorrer esse tipo de prisão no interior da cidade de Belo Norte, mas se tratando daquela ilha sonolenta e angustiante, talvez não fosse algo anormal. Para Amadeu, a prisão não era ruim, era apenas uma forma diferente de vida, um estilo estático de existência. Ele tinha muita dificuldade de se expressar, pois não sabia falar, nem ler, nem escrever, nem existir. Entretanto, seus pensamento corriam silenciosos por sua perturbada cabeça.
O mais intrigante não era a prisão em si, mas seu estado de conformismo com aquilo tudo e seu profundo pendor para o nada. Talvez tudo isso seja menos importante do que dizer o motivo de aquele menino estar ali. Ele estava esperando o "dia de diluir-se", o grande propósito de sua vida. Seu carcereiro, apenas uma vez, disse-lhe sobre isso. Neste dia ele sairia de sua gaiola vendado, andaria trinta e quatro passos para frente, viraria para direita, com as mãos estendidas para frente tocaria um pedaço longo de madeira chamado remo. Deixando de contar passos, usaria este remo para tatear o chão até que atingisse um solo úmido. Avançaria mais alguns passos até que a lâmina d'água lhe atingisse os joelhos. Neste momento, em algum lugar ao seu redor, um objeto chamado barco flutuaria preso às margens. Deveria subir naquilo!
Ele já havia decorado tudo o que podia, apesar de ter sido dito uma única vez. Daquela sequência desorganizada de ideias, ele podia extrair algum sentido, pois sabia o que era "passo" e sabia o que era "água". Temia que o remo fosse algo grande demais para carregar e supunha ser o barco uma estrutura com portão, chão, teto e correntes, como sua morada, porém, de madeira e não de aço. Incomodava-o não saber dimensionar o que eram "trinta e quatro".
Então este dia chegou! Amadeu ouviu o som das correntes chorarem para levar a gaiola ao solo. Alguém que não era soldado destrancou o portão e sussurrou em seu ouvido: Hoje é o dia de diluir-se"! Ele não quis olhar para o rosto do carcereiro enquanto as correntes de sua cintura eram removidas. Em poucos minutos, o homem colocou sobre o rosto do menino um pano para cobrir-lhe a vista.
- Ande! Você sabe o que tem que fazer, não sabe?
Amadeu não sabia falar... Então apenas executou o que achava que tinha aprendido. Não sabia contar, mas andou passos que achavam serem suficientes para agradar o "trinta e quatro". Virou para o lado que tinha certeza ser o direito. Estendeu os braços lentamente e caminhou. Aquele trecho parecia ser mais demorado do que ele imaginava. Certo instante esbarrou no remo. Parecia que alguém estava o segurando e lhe entregou o objeto. Usou isso para tocar o chão em uma caminhada ainda maior.
Muito tempo depois de andar sobre solo seco e pedregoso, chegou a uma areia fofa e úmida. A água gelada foi subindo conforme ele avançava. Quando sentiu tocarem seus joelhos, segurou o remo para frente e girou o corpo para encontrar o barco. Bastante tempo foi necessário para achá-lo. Mas não era como ele pensou, tinha o formato de uma grande folha de madeira. Ele subiu.
Por horas a fio Amadeu permaneceu inerte, ajoelhado no barco sem tirar a venda. O carcereiro disse-lhe que se tirasse veria um monstro enorme chamado Existência. Se ele esperasse muito tempo uma criatura chamada Inexistência iria ajuda-lo. Também lhe contou que estas duas criaturas brigavam constantemente e um dia uma delas venceria a luta. O Existência era mais forte e insistia em ocupar o lugar das coisas. O Inexistência era pequeno, mas conquistaria todos os lugares mais cedo ou mais tarde.
Quando não conseguia mais suportar o cansaço, deitou, mas jamais tirou a venda, pois não queria ver Existência. Ele tinha fé que Inexistência viria busca-lo. Ali as coisas pareciam se reduzir ao que tornava tudo aquilo peculiar: o nada! Amadeu não percebera, mas Inexistência estava bem ao seu lado. E disse-lhe:
- Olha garoto. Sei que você não vai entender a profundidade do que vou te dizer. Mas encare essas palavras como uma das coisas que você cultiva ai dentro! Existência é muito forte, não sei se consigo vencê-lo! Na última luta, de ontem, ele se tornou numeroso e povoou as coisas e os lugares. Cada vez que eu ocupava um espaço, era banido dele e colocado em um canto escuro. Existência se pendura e baseia em coisas pequenas e irrelevantes como dor, cheiro, gosto, som e tato. Mas ontem ele pressionou-me contra o chão, pisando sobre minha cabeça e disse que me mataria. Repetiu isso por muitas vezes e então percebi que ele estava vencendo, pois assim estava embutindo um novo acessório em mim: a esperança!
Amadeu ficou apavorado, desejando a vitória de Inexistência. Começou a chorar...
- Mas acalme-se, filho! Existe uma última chance de vencermos, mas você tem que me ajudar.
- Como? – Dizia Amadeu, querendo arrancar a venda de seus olhos.
- Olhe para água e tire a venda para me ver! Quando me enxergar, preciso que me dê as mãos!
Amadeu lentamente foi à beira do barco, apoiou-se com a cabeça apontada para água e tirou a venda. Imediatamente ele viu na água uma criatura extremamente estranha, com olhos negros, a face suja, cabelo despenteado e dentes podres. Inexistência era mesmo um ser muito estranho.
- Vamos! Agora é só me dar as mãos.
E Amadeu estendeu os braços devagar até que suas mãos encontrassem as mãos de seu reflexo na água. Inexistência conseguiu reduzir Existência a zero e tomou o lugar dele! Amadeu escapou do acessório "esperança".
Horas depois, um grupo de policiais desceu as encostas de uma caverna escura e profunda para encontrar o corpo de Amadeu flutuando em uma pequena lagoa ali dentro. O carcereiro foi preso e sua propriedade de vários hectares foi interditada para preservar a cena do crime: sete gaiolas suspensas com meninos mortos. Os soldados que ajudavam a içar as jaulas no teto da caverna foram mortos.
Depois de um tempo em reclusão total, você se perde no mundo, pois não existe referencial. O isolamento gradativo empurra para dentro das entranhas pequenas parcelas de nada, até que você mesmo as aceite e deixe Inexistência te levar!
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