Futebol Também é Coisa do Diabo
Na madrugada, o cadáver do Diego tomava um banho de chuva. A ventania girava a corda que o prendia pelo pescoço. Suspenso na trave de dois metros e quarenta e quatro centímetros de altura, tamanho padrão em um estádio de futebol, ele esperava por uma visita. Apesar do temporal, logo, logo o seu pai chegaria para o banquete.
Enquanto isso, uma multidão se agrupava em torno da arena. Eles saíam dos becos e marchavam até o local do confronto iminente. Os espíritos ansiavam por um acerto de contas. Eles sentiam a presença do mal. A raiva ganhando substância em forma de tempestade. Estavam preparados para dar um fim à maldição daquele ser diabólico.
O estádio Montese havia sido abandonado em 2014, pouco depois da Copa do Mundo no Brasil. A prefeitura achou melhor encerrar as atividades por motivos de segurança. Além de vítimas de incêndio, graças a combinação perfeita de bandeiras e fogos de artifício, assassinatos eram cometidos durante as partidas. A violência entre as torcidas organizadas virou uma tradição. Com diversos casos aparecendo em telejornais, a cobrança em cima do prefeito se tornou péssima para sua popularidade. E assim, a decisão mais radical teve que ser tomada.
Mas havia outro problema. O lugar era o estádio oficial do time Carnaúba, o qual vinha crescendo nos principais campeonatos cearenses. Uma ascensão que encontrou o seu fim quando o presidente do clube enfrentou vários processos judiciais envolvendo corrupção.
Como consequência desses eventos, a família Tavares passou por um aperto financeiro. Diego Tavares treinava na categoria sub-15 do Carnaúba. Já havia ganhado várias medalhas e era uma promessa para a nova geração. E além de se destacar como o goleiro que mais defendeu pênaltis durante a temporada, ele era reconhecido por sua postura e disciplina em campo. Contudo, nada disso importava para um clube à beira da falência.
O chefe da família Tavares era o empresário do garoto. Joel Messias Tavares, um homem que sempre quis ser jogador profissional, afinal, era o sonho de qualquer moleque da sua época. Mas a vida pedia um pouco mais de pé no chão e menos na grama. Joel seguiu sobrevivendo e sem tempo para sonhar alto. A paixão pelo futebol continuou lá das arquibancadas. Virou um torcedor fanático e ativo. Era sócio do clube e um vândalo de primeira categoria que brigava após os jogos. Até que o filhão nasceu, já com a certeza de que seria um torcedor do Carnaúba. Diego cresceu com a orientação do pai.
Era o único caminho. O garoto conquistaria tudo que Joel não conseguiu. Bem que Diego tentou, mas antes de completar quinze anos, ele foi sacrificado como um bode para uma celebração maior. A maré de azar tinha que ser freada. Os pecados tinham que ser expiados. E o mal sentia fome. Aliás, não era à toa que um bode preto era mascote do Carnaúba. Fato que aumentava superstições e boatos a respeito do time.
Tudo que passava do ponto tomava uma proporção lendária. O sentimento de rivalidade na arena Montese era tão intenso que alguns diziam que existia uma influência a mais na energia dos torcedores. As vibrações, as vaias e os xingamentos faziam o estádio tremer sob os pés do povão. A emoção era descrita como avassaladora. O time que perdia era tomado por uma ira sem fim. E então, a brutalidade estourava e pintava os bancos com sangue e ódio.
Montese carregava uma maldição. Cada banco, tijolo e coluna estavam impregnados com essa mácula. Cada carnaubense, ou qualquer fanático por futebol, tinha um jeitinho especial para ajudar o time do coração a ganhar: uma cueca da sorte, uma promessa a um santo católico, um pé de coelho ou um pacto com Satanás. Valia tudo! Até mesmo a diretoria do clube entrou nessa onda de simpatias. E o anjo caído que assumiu o pacto infernal com os diretores era conhecido como Azazel, o responsável pelo pecado da ira.
Diego foi marcado para morrer através de um sorteio entre todos os jogadores de todas as categorias. Simples assim! O camisa 1 da categoria sub-15 escrito num pedaço de papel aleatório. A partir daí um novo contrato foi feito com o pai do garoto. Um reembolso de trinta mil reais, fora alguns adicionais pelo valor sentimental. No início, a ideia de perder o filho desagradou a Joel. Mas em termos práticos, os diretores só precisavam de duas coisinhas: uma impressão digital e assinaturas.
Havia mais um detalhe. Ao realizar um pacto, primeiro o demônio credor tinha que ser invocado. Depois alguém perdia o corpo para dar hospedagem a criatura. E o acordo ficou mais fácil quando Joel perdeu sua alma para servir como recipiente de Azazel.
De volta a madrugada chuvosa, ele teve uma surpresa assim que chegou em frente do Montese. Fazia duzentos anos desde a última refeição. Por isso, Azazel estava ansioso e com uma fome abissal. Mas pelo visto, o banquete não seria tão fácil. Ali havia dezenas de mendigos que esperavam por ele. E o pior, todos estavam armados com pedras, facas, garrafas de vidro ou qualquer parafernália pontuda e fácil de achar no lixo.
Assim que eles viram Joel, o ódio cresceu no coração deles. Estavam ali por vingança. Cada alma era uma vítima assassinada dentro daquele estádio maldito. Os espíritos dos torcedores, tanto do Carnaúba quanto dos times rivais, apossaram-se dos corpos daqueles que dormiam na rua. Portanto, a multidão furiosa conseguia ver a criatura dentro da casca humana. O culpado por perpetuar a ira desde a fundação da arena.
Joel vestia a blusa dos Cabras da Peste, a principal torcida organizada do Carnaúba Futebol Clube. A estampa da blusa era um bode preto, musculoso e com traços de um corpo humanoide segurando um pé de cabra vermelho. E foi exatamente nisso em que Azazel se transformou antes de começar o massacre.
Um raio rasgou as nuvens e um trovão rugiu como um grito de guerra. As pedras voaram em direção ao monstro, que avançou, recebendo os impactos. Logo os mendigos partiram para cima dele. Eles enterraram facas e pedaços de ferro na carne da aberração.
O sangue ácido de Azazel respingava na pele dos humanos, criando bolhas que inchavam e estouravam instantaneamente. Apesar das queimaduras, eles continuavam atacando.
Mas o demônio da ira mostrou para que servia um pé de cabra. A força descomunal partia crânios como uma colher quebrando casca de ovo. Ele continuou avançando enquanto derrubava massa encefálica no chão. Até que cinco pularam sobre ele e o fizeram parar. Mais um chegou e o agarrou pelo rabo. Outro enfiou uma barra de aço no estômago do bicho.
Nessa altura, o grupo na linha de frente gritava num coro insano, a dor se tornava insuportável. Os ossos das mãos já estavam expostos devido ao sangue ácido, cada vez mais abundante, vazando por cada ferimento aberto a facadas.
Numa explosão de fúria, Azazel empurrou, girou e pulou com movimentos animalescos, aplicando golpes contínuos e aleatórios. O resultado foi uma carnificina. Seu chifre esquerdo perfurou um coração, e com uma jogada de cabeça para trás, ele arremessou o infeliz para o alto. Ele aleijou um deles ao pisar bem no meio da coluna com seu casco. O pé de cabra vermelho colheu alguns dentes da boca de outro.
Morte atrás de morte.
Com todo esse esforço, o apetite do demônio ficava cada vez maior. O problema era que ele só podia comer a carne de quem era oferecido como sacrifício. Havia regras até no inferno. E com a morte dos corpos que serviam como recipiente, os espíritos vingativos abandonavam a luta e voltavam para o além.
Azazel acabou com todos eles. A chuva espalhou o sangue pela calçada. O ar fedia a enxofre. Vitorioso, a criatura soltou um berro gutural que atravessou a noite. Ele subiu as escadas. As feridas se regeneraram, e ele reverteu a metamorfose, assumindo o corpo de Joel mais uma vez.
Ao entrar no campo, ele viu a oferenda amarrada na trave. Agora, o caminho estava livre de obstáculos. Finalmente, ficou cara a cara com o cadáver do garoto. Azazel ergueu a cabeça e levantou os braços. Um clarão surgiu de repente. Todos os holofotes iluminaram o gramado. Vários espectros fugiram da luz e esconderam-se embaixo das arquibancadas. Eles eram a plateia de Azazel, diabretes que serviam ao anjo caído. Seres abstratos que o acompanhavam como os seguidores de Cristo, ou mesmo, as moscas de Belzebu.
— Meus filhos! Mais um se juntará a vocês nesta noite — disse o demônio, ainda de braços erguidos. — Sei que não suportam a luz, mas ela será necessária para que vejam de onde todos nascemos.
Azazel relaxou o corpo e pôs a mão sobre o peito esquerdo. Antes da ceia, uma oração. Mas não palavras cristãs. Longe disso! O seu cliente de pacto infernal era o time cearense. Então, ele cantou o hino oficial do Carnaúba em tom de deboche:
O maior time do Nordeste
Damos o sangue pela glória
Torcedor Cabra da Peste
Conquistamos a vitória
Carnaúba Futebol Clube
O time campeão
A árvore que dá vida
Nossa honra, nossa paixão!
Bandeira tricolor
Dos Cabras da Peste
Preto, verde, branco
O maior do Nordeste
Damos o sangue pela glória
Os maiores da história
Salve, Carnaúba!
Em seguida, os espectros comemoraram porque agora viria a parte boa. O mestre deles comeria o defunto. E assim, Azazel devorou a morte. A carne sem alma era recheada com os pecados da diretoria do clube. O sabor era sensacional. O anjo saboreava um adultério macio, um homicídio crocante, um estupro de vulnerável que derretia na boca. Cada parte do Diego era uma novidade deliciosa; era um pecado secreto dos seus clientes.
Só sobrou o laço da corda quando o ritual terminou, e mais um espectro se juntou aos demais. Azazel ergueu os braços, e todos os holofotes explodiram numa chuva de faíscas. Agora os diabretes circulavam à vontade.
Estava feito!
Carnaúba iria ascender na classificação. O Brasil conheceria o seu espetáculo em campo e a fúria dos seus torcedores. A escuridão embaixo das arquibancadas sussurraria nos ouvidos dos mais fanáticos. Tudo isso porque futebol também era coisa do Diabo.
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