Tentativa E Erro | Capítulo Cinco
Acordou com Heathcliff miando e andando em cima de si, as patinhas fofas pisoteando seu abdômen. Ainda estava na cama, seu ombro ainda doía, mas era mais suportável do que antes.
Fez uma careta e o empurrou cuidadosamente com o braço bom, gemendo de dor quando apoiou o cotovelo no colchão para se sentar. Foi levemente e por alguns segundos, mas o suficiente para enviar uma onda de choque e dor pelo braço inteiro.
Quando se sentou na cama, viu que Azazel estava rotineiramente apoiada na parede de pedra crua, como da primeira vez em que acordara ali. Percebeu que ela segurava uma tipoia, balançando-a levemente pela alça entre os dedos.
— Curei o que pude, mas você ainda deveria deixá-lo imobilizado por alguns dias — sugeriu Azazel, jogando-lhe a tipoia. Observou-a cair no colchão ao seu lado, Heathcliff foi mais rápido e jogou-se em cima dela antes que pudesse pegá-la, brincando com a fivela da alça e mordendo-a com seus dentinhos afiados.
— Quer me explicar como consegui deslocar o ombro sem nem ao menos mover o braço? — indagou, afagando Heathcliff antes de afastá-lo.
Odiava a ideia de usar aquilo, mas seu ombro ainda latejava quando tentava movimentá-lo. Seria melhor imobilizá-lo por algum tempo, considerando o inchaço e a vermelhidão. Demoraria um pouco para a inflamação passar.
— Você é a pesquisadora aqui, é você quem deveria ter a explicação — rebateu, sem se alterar. Clarissa franziu as sobrancelhas enquanto colocava o braço no apoio da tipoia, passando a faixa em volta do pescoço. Heathcliff continuava curioso, pronto para voltar a brincar com a fivela.
— Não tenho — confessou, com um suspiro fraco.
Azazel até colocou algumas teorias, mas Clarissa estava com a mente longínqua. Sentia-se um tanto desconfortável e febril, uma dor estranha descendo por ambos os ombros. Quando Azazel lhe deixou novamente sozinha, tomou um banho quente para aliviar a dor muscular e colocou roupas largas, jogando-se na cama logo depois.
Não dormiu bem. Acordou gritando o nome de Elisa, a camisa empapada de suor e a pele queimando. Seu estômago revirou e se virou para o lado, vomitando. Vomitou apenas um líquido preto e gosmento, sem entender o que era aquilo.
« ♡ »
Clarissa havia lido quase todos os livros enquanto seu ombro desinchava e melhorava aos poucos. A dor desaparecera bem lentamente, mas ainda tinha pesadelos e acordava com dores horríveis, o latejar descendo pelo ombro em direção à coluna em duas linhas inflamadas.
Quando isso acontecia, precisava se segurar para não chorar. Queria Elisa. Queria Lena. Queria qualquer conforto ou qualquer notícia que lhe acalmasse. Vomitara algumas vezes, tivera ondas de dor, tontura e também um cansaço que definitivamente não era natural.
Havia momentos em que se sentia melhor, então os aproveitava para testar suas teorias. E agora estava ali, em uma cena inacreditável e cômica ao mesmo tempo, comendo pizza com uma suposta regente do inferno.
Clarissa sempre gostara da solidão, de locais quietos e silêncio, então não se incomodava em ficar naquele lugar isolado, não com seu gato e tantos livros ali. Ficava muito bem assim, mas, com o passar dos dias, passara a apreciar as visitas de Azazel, ela não era uma companhia tão ruim quanto imaginara.
E precisava admitir que sentira falta de comer pizza. Ser uma querubim e não poder comer era realmente sem graça.
— E então? O que pretende fazer depois? — indagou Azazel, e Clarissa mordeu um pedaço da fatia para evitar responder.
Tentava não pensar naquilo. Ficava muito feliz quando se imaginava voltando para sua vida humana, sabendo que tinha a chance de voltar a ver seus pais, de viver, de continuar com sua vida calma e pacata do modo como gostava. Mas então pensava em Lena. Em Elisa. Em Onyx. Em tudo o que aprendera lá e tudo o que ainda poderia explorar.
Se voltasse para a dimensão dos querubins, teria de encarar todo o drama amoroso com Lena e com a versão desmemoriada de Elisa. Queria evitar aquilo a qualquer custo.
— Ainda não sei, tenho prós e contas dos dois lados — confessou, baixando o olhar.
— Você não pode simplesmente se livrar de seus poderes agora, Clarissa. Eu aproveitaria os últimos anos como humana antes de correr de volta para os querubins — comentou. Aquilo lhe fez imaginar se Azazel abriria mão de todo o poder, se trocaria tudo aquilo por uma vida normal. — Ou há algum garoto envolvido amorosamente que vai te fazer vacilar, como em qualquer clichê?
— Na verdade, duas garotas — confessou, e a loira levantou as sobrancelhas com um riso surpreso. — Mas talvez você tenha razão. Vou ter tempo de lidar com meus poderes e reencontrá-las depois, mas não terei tempo aqui se voltar para lá. — Se voltasse para Onyx, então teria de dar adeus aos seus pais, às pessoas que conhecia ali, teria de se despedir de vez daquilo. Adiar sua volta para a dimensão dos querubins e continuar ali, ao lado de tudo o que conhecia e considerava normal, lhe parecia o melhor a se fazer.
Lhe partia o coração pensar em tudo o que deixaria para trás se fosse para a dimensão dos querubins definitivamente, tudo o que perderia e nunca mais teria a chance de reaver. A quem queria enganar? Daria tudo de si por um tempo a mais como humana, mesmo que sentisse falta da dimensão angelical.
— Por outro lado, vai ser ainda mais difícil de se despedir depois, você já está longe da dimensão humana há algum tempo — comentou a loira, e Clarissa mais uma vez mastigou a pizza para ganhar tempo.
Lembrava-se de Elisa dizendo que os primeiros momentos seriam difíceis, mas então tudo se tranquilizaria. Lembrava-se de todas as vezes em que chorara, abraçada a ela. E então as coisas foram acontecendo, estava tão envolvida no drama que não pensava em tudo o que havia perdido.
Mas podia se lembrar vividamente de como estava perdida nos primeiros dias, em como se adaptar estava sendo uma tarefa árdua.
— Precisarei lidar com isso de uma forma ou de outra — disse, dando de ombros com um suspiro melancólico. — Vamos logo com isso. — E então afastou a caixa de pizza para o canto da escrivaninha, fechando-a quando viu que Heathcliff olhava para a comida e mexia as orelhinhas, interessado.
Finalmente havia tirado a tipoia, então não teve dificuldades para puxar a misteriosa caixa de madeira. Clarissa tinha esperanças de que a marca funcionasse, mas Azazel não parecia tão animada assim.
Havia argumentado que precisaria ir testando as hipóteses, era mais fácil ir por tentativa e erro. Azazel achava perigoso, não sabia se poderia desencadear alguma reação ou não, então exigira que Clarissa só tentasse abrir a caixa quando estivesse ali.
Folheou as páginas do caderno em cima da mesa. Estava quase todo preenchido com desenhos que havia feito, anagramas, palavras rabiscadas e sílabas soltas. Achava que era mais fácil desenhar os símbolos com o alfabeto fonético, as palavras se encaixavam melhor e depois formavam um só som, então podia ter uma melhor noção do que estava fazendo.
Finalmente encontrou a página onde havia desenhado o símbolo definitivo.
Inspirou fundo e encarou o desenho, finalmente pronto depois de tantas versões. Só ficara satisfeita quando tivera certeza de que as linhas eram o suficiente para comportar tanta energia, quando soube que seus ângulos estavam em posições alinhadas.
Pegou um pincel fino e a tinta preta que Azazel havia trazido, abrindo o pequeno vidro com cuidado e mergulhando as cerdas do pincel ali. Clarissa inspirou fundo antes de encostar a tinta na madeira, com os olhos semicerrados e fixos no desenho.
Aos poucos, foi movendo com cuidado as cerdas, formando o símbolo escuro na madeira clara e lixada. Era um trabalho minucioso, queria se certificar de que cada traço estivesse correto, que as proporções estivessem certas.
Quando terminou, ficou satisfeita com o trabalho e sorriu levemente, esperando a tinta secar e ser absorvida pela madeira. Logo depois, colocou a mão em cima e fechou os olhos, deixando seus poderes escorrerem pelos dedos como uma enchente.
Fazia tempo que não os usava, a sensação era libertadora.
Sentiu a pele formigar e se aquecer, o coração disparar com todo aquele fluxo contínuo que escapava de suas mãos. Era como levar um choque, sentia a eletricidade dançando sobre sua pele como chuva caindo.
Depois de alguns segundos, começou a ficar desconfortável. Queimava, mas não de um jeito bom. O calor espalhava dor, como se estivesse cercada de chamas reais e assustadoras, o que fazia seu coração disparar a ponto de lhe tirar o ar, conseguia sentir sua pulsação até na ponta dos dedos.
As chamas não se apagavam, o coração lhe espancava as costelas e os pulmões queimavam dolorosamente, mas não conseguia conter tudo aquilo, não conseguia simplesmente parar. Era como impedir um rio de desaguar no mar, uma cachoeira de cair.
Alguém lhe chamava, gritava seu nome, mas sua mão continuava firme na madeira, o símbolo lhe puxando como um ímã e sugando seus poderes. Quando uma mão agarrou seu pulso e tirou seu braço do baú de madeira, foi como rasgar uma parte de si, algo doloroso que lhe fez gemer, inclinando-se para frente.
Sua visão estava repleta de pontos escuros, dobrou os braços sobre o estômago quando achou que fosse vomitar. Seu coração estava tão acelerado que abafava a audição, só ouvia o sangue pulsando e as batidas irregulares que lhe sufocavam.
— Clarissa? — Levou um tempo para encarar Azazel, ela lhe olhava atenciosamente, os lábios crispados em preocupação. — Mesmo sendo híbrida, usar os poderes dos querubins em corpo humano vai acabar te matando. Não tente de novo tão cedo — complementou ela, e Clarissa sentiu-se frustrada. Olhou para o baú e percebeu que ele permanecia intacto. A tinta que havia usado para pintar a marca havia mudado de preta para dourada, cintilando contra a madeira.
Olhou para as próprias mãos e percebeu que estavam queimadas. O nó na garganta e a pressão no estômago expressaram toda sua frustração.
Azazel lhe deixou sozinha logo depois, nenhuma das duas tinha ânimo para discutir o que fariam em seguida. Não poder usar seu poder em corpo humano, ou poder usar só uma quantidade limitada, mudava tudo. Precisavam de seu poder. Ele não era angelical e nem demoníaco, era o único capaz de abrir aquilo.
Cansada demais para continuar pensando sobre aquilo, foi para a cama. Heathcliff deitou-se ao seu lado, esfregando a cabeça em seu braço para lhe consolar, Clarissa o abraçou e acabou adormecendo no meio de pesadelos turbulentos.
Eram mais uma vez sobre Elisa. Sobre asas pegando fogo. Gritos e muita dor.
Estava suada quando acordou horas depois, com os músculos doendo e a sensação de que algo pesava dentro do peito, lágrimas brotando nos olhos. Passou a mão pelo colchão para procurar por Heathcliff, já que as luzes estavam apagadas e não via nada, mas o ouviu chiar antes de encontrá-lo.
Ele estava na ponta da cama, olhando para uma silhueta escura que se movimentava do outro lado do salão. Clarissa franziu as sobrancelhas, olhando para o relógio digital com visor iluminado na mesinha de cabeceira.
Quatro da manhã.
— Azazel? — Ainda confusa pelo sono, viu a silhueta se aproximar e o gato correr para seu colo, com os pelos arrepiados e os dentes arreganhados.
Sentiu tudo congelar por um segundo. Heathcliff não odiava tanto assim Azazel, e ela geralmente usava saltos, aquela silhueta era silenciosa enquanto se movimentava.
Tentou manter as esperanças, só se permitiu se afogar no desespero quando percebeu que a silhueta era grande e encorpada demais para ser feminina. Aquele sorriso sádico lhe fez querer vomitar.
Leviatã lhe encarava com os olhos frios de réptil e o sorriso ardido e demoníaco.
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