Perguntando Demais | Capítulo Dois
Lena se encolheu no sofá, os olhos vazios. Kenan havia dobrado o tapete, escondendo o vômito, mas isso não lhe fazia se sentir melhor. Sabia que logo estaria limpo, assim como tudo naquela dimensão que se regenerava uma hora ou outra.
Ele falava alguma coisa, mas Lena continuava encarando Elisa com a mesma face sem expressão, paralisada em um estado catatônico. A ruiva parecia mais pálida e pequena, tão sem cor quanto os lençóis brancos em que estava deitada de bruços.
Não conseguia tirar os olhos dos machucados em suas costas, dos cortes profundos que nunca se cicatrizavam. Continuavam escuros e expostos, cruéis contra a delicadeza de Elisa, que parecia mais uma princesa enquanto estava ali, inconsciente na cama de dossel, com seus cabelos ruivos se espalhando pelo branco dos lençóis.
— Aparentemente, ela não deixou de ser querubim — disse Kenan, com um ar preocupado. — É uma boa notícia, acho.
— E se tudo isso for maior do que achamos ser? — murmurou Lena, rouca. É claro que ele se virou e percebeu as lágrimas em suas bochechas, o olhar magoado fixado no chão, sem querer encarar Elisa.
— Lena... — Ele tentou falar, mas o interrompeu antes.
— Estavam manipulando Lynn como um maldito fantoche e não fomos capazes de perceber, não fomos capazes de salvá-la. Não fazemos a mínima ideia de onde Clarissa está, não fazíamos a mínima ideia de que planejavam aquilo para seus poderes... E Elisa... — Um soluço cortou a frase, encolheu as pernas e colocou a face quase entre os joelhos. — Eu não sei. Me sinto inútil e ainda nem descobrimos o que eles queriam com nossos poderes — confessou, estremecendo.
Se sentia impotente e amedrontada, queria que Elisa estivesse acordada, que ela recuperasse suas memórias. Ela certamente tentaria alguma coisa, não lhe deixaria entrar em pânico. Era o que ela sempre fazia. Tomava iniciativa, não deixava nada desmoronar.
— Você precisa descansar — disse Kenan, preocupado. — Descansar e tentar tirar sua mente disso. Se quiser ajudar Lisa e Cass, precisa estar bem. — Lena queria protestar, dizer que não precisava descansar, precisava de soluções, mas não conseguiu argumentar. Passava a maioria do tempo entre livros, cristais e velas no quarto de Elisa, enquanto Kenan e Lucas procuravam por Clarissa e qualquer pista que pudesse ter deixado.
Sentia-se exausta, mal se lembrava da última vez que tinha realmente descansado e tentado relaxar um pouco. Talvez aquilo ajudasse a clarear sua mente, a pensar em novos caminhos. Sentia que não conseguiria afastar o incômodo enquanto não resolvessem aquilo.
Como Kenan insistiu, resolveu variar um pouco e voltar à estufa para conversar com Kayla sobre a situação.
— Ela vomitou? — perguntou, espantada. Lena assentiu, sentindo-se um pouco melhor e mais acolhida no meio de todas as plantas. Havia mais flores naquele dia, ela reluziam em uma espiral de cor que subia pelas paredes transparentes da estufa em um degradê lilás, vermelho e branco, se destacando como pequenas lâmpadas fluorescentes no verde-escuro. — Posso tentar uma pomada, demora um pouquinho mais para ficar pronta, mas deve agir no local direto nos machucados — sugeriu. Lena assentiu, com um suspiro cansado.
« ♡ »
Clarissa mal reconhecia a menina que lhe encarava no espelho.
Estava magra demais, esquelética. As juntas estavam arroxeadas e pareciam que iam se partir ao meio, a pele estava tão pálida depois de tanto tempo sem sol que ainda tinha hematomas das agulhas e cânulas espalhadas pelos braços e abdômen. Seus cabelos eram uma tempestade loira e comprida, cheia de nós. Tudo aquilo parecia familiar, mesmo que diferente.
O que lhe chocara mesmo foram os olhos. Eles tinham uma linda coloração brilhante, um azul-violeta bem definido que se destacava na pele pálida. Suspirou, desviando o olhar e prendendo os cabelos. Pelo menos aquilo melhorava sua aparência cadavérica.
Havia descoberto uma pequena cozinha e um banheiro no corredor de pedra, então estava tentando voltar lentamente à vida humana, se acostumar com as necessidades biológicas que havia deixado para trás.
Colocou roupas novas que encontrara ali, conseguira comer pouco e agora sentia o estômago revirado, como se pudesse vomitar a qualquer momento. Precisaria se habituar novamente à comida, imaginou. Tinha sorte de ter sua energia lhe curando e ajudando nos movimentos.
Se assustou quando adentrou o salão principal e percebeu que Azazel estava ali, sentada em uma das poltronas e com as pernas cruzadas. Ela usava saltos pretos e saia de couro desta vez, se deu conta. Sempre usava roupas e sapatos que lhe davam um ar feminino e cheio de poder, era impossível não notá-la.
Clarissa mal conseguia imaginar aquilo. Parecia muito desconfortável.
Heathcliff miou, esfregando-se em suas pernas e quase lhe fazendo tropeçar.
— Meu Deus, você deveria usar um sino ou algo assim — reclamou, levando a mão até o peito quando a encarou. Seu coração estava disparado e ainda achava estranha aquela sensação.
— Achei que os saltos fizessem esse trabalho — comentou ela, com um sorriso sarcástico. Clarissa revirou os olhos e adentrou de vez o salão.
— Qual é a sua fissura com eles? — indagou, levantando as sobrancelhas.
— Sou a única mulher entre outros seis demônios machistas e neandertais — justificou, dando de ombros. — Eles são um símbolo de poder contra a estupidez masculina. — Clarissa teve de conter a risada. Jamais imaginara uma mulher entre os outros príncipes infernais, Azazel parecia muito diferente dos outros.
Clarissa sentia-se aliviada quando pensava que eram só quatro deles unidos. Asmodeus estava com os querubins, Azazel parecia não ligar para o que os quatro faziam e Lúcifer estava afastado daquilo tudo. Não conseguia imaginar enfrentar sete deles de uma só vez.
Elisa costumava a se referir a seis deles, tirando Lúcifer da conta, pois ele não estava envolvido. Mas poderiam tirar Asmodeus e Azazel também, aparentemente.
— E então? O que decidiu? — indagou ela, lhe encarando com um olhar avaliativo.
— Há algum modo de acessar a dimensão dos querubins? Posso me comunicar com eles? — questionou Clarissa. Sentia-se tensa desde o momento em que havia acordado, pensando em Lena, Elisa e os outros. Além da preocupação, sentia falta da biblioteca e de seu quarto, sentia falta das reuniões improvisadas nas salas de leituras, com todos jogados nas poltronas e sofás.
— Se você morrer — disse, e Clarissa sentiu um golpe com sua sinceridade. Queria estar viva, mas também queria estar lá. A ideia de nunca mais voltar a vê-los sem precisar morrer antes era assustadora. O que faria, afinal? Abriria mão de sua vida? Algo que almejara tanto quando estava lá e nunca mais poderia recuperar se perdesse? — Se eles souberem que você está comigo, os outros quatro saberão. Nada de comunicação — complementou Azazel. Aquilo lhe preocupou. Significava que eles não sabiam onde estava, nem que estava com Azazel. Ela poderia fazer o que bem entendesse e eles não saberiam.
Mais uma vez sua confiança nela era colocada à prova.
— O que, exatamente, é o livro que você quer? Como ele nos ajudaria? Quais seus planos? — perguntou de uma só vez, um tsunami de dúvidas que não manifestara na última em que Azazel estivera ali. A loira levantou as sobrancelhas enquanto Clarissa atravessava o quarto e se sentava na cama, de frente para ela.
O gato pulou em seu colo e encarou Azazel atentamente, as orelhinhas atentas e se movendo.
— Já te falaram que você parece uma criança? Daquelas bem irritantes que perguntam sobre tudo? — Heathcliff chiou inquieto em seu colo, Clarissa deu de ombros e o segurou.
— Você me sequestra e eu ainda sou obrigada a ser agradável? — retrucou, e Azazel revirou os olhos com impaciência.
— Você quer um contrato? Preciso preencher um formulário?
— Se quiser que eu te ajude, então comece a falar — disse Clarissa, inabalável. A outra suspirou, mas então começou a explicar.
— Há muito tempo, Mamon selou um livro poderoso em uma caixa. É um livro sobre a junção de poderes, híbridos como você — explicou calmamente, como se realmente estivesse falando com uma criança. Clarissa quase protestou, mas não iria interrompê-la agora que havia a convencido a falar. — Mamon sempre foi interessado em experiências, sempre falhou quanto tentou criar alguém exatamente como você, com energia celestial corrompida. Nenhum outro ascendente ou querubim sobreviveria, mas sua energia era instável e se adaptou, absorveu a dos outros enquanto sugavam a sua. — Clarissa encolheu os braços em volta do corpo, desconfortável. Energia celestial corrompida. Aquilo não parecia nada bom, ainda mais quando ela disse que nenhum outro ascendente sobreviveria àquilo. — O livro seria importante para mim porque Mamon é uma espécie de híbrido, absorvendo diferentes poderes ao longo do tempo. Se eu conseguir acessar o livro, posso encontrar uma forma de acabar com ele — concluiu, como se fosse uma simples receita para criar o caos. Tinha de admitir que gostava da ideia de ajudar Azazel, de imaginar ela derrotando Mamon. Não tivera contato com ele, mas ficava imaginando se, com ele derrotado, Elisa recuperaria suas memórias.
Mais uma vez, sentiu-se desconfortável ao pensar em como ela estava tão inacessível, assim como a dimensão dos querubins.
— E por que você quereria isso? — Clarissa estranhou. Aquilo parecia grande, a ideia de estar no meio da briga entre dois líderes infernais lhe deixava tensa. Pelo menos Azazel dera a entender que eles não sabiam que estavam trabalhando juntas.
— Está perguntando demais — respondeu ela, e a loira soube que não deveria questionar mais.
Baixou o olhar, em silêncio. Heathcliff, em seu colo, lhe encarava com aqueles enormes olhos felinos, lhe pressionando a tomar uma decisão.
Quais seriam as consequências de se aliar com Azazel? Não era como se tivesse muita escolha, não podia pedir a opinião de Kenan sobre o que fazer ou em quem confiar. Qualquer decisão poderia provocar grandes mudanças, boas ou não.
— Sim, eu vou te ajudar — disse Clarissa, levantando os olhos para Azazel e tentando passar firmeza. — Ainda não sei o que vou fazer depois, se vou voltar à dimensão humana ou não, mas certamente precisarei da sua ajuda também — confessou. Precisaria dela para voltar à dimensão humana de forma segura, precisaria dela caso quisesse contatar Onyx depois que resolvessem o problema do livro. Azazel sorriu de modo satisfeito. — E então? Por onde começo? — questionou.
A outra loira se levantou da poltrona, os saltos ecoaram no piso quando ela atravessou o pequeno salão em direção à escrivaninha. Ela afastou a cadeira e empurrou a pequena mesa, até que um pequeno alçapão fosse visível no chão de porcelana.
Azazel se abaixou e o abriu, então puxou uma caixa de madeira dali. Clarissa ofegou. Era uma caixa esculpida e pesada, cheia de símbolos que não reconhecia, que não eram linguagem dos querubins. De alguma forma, sentiu o frio e a repulsão emanando daquelas marcas, um desejo crescente de se afastar crescendo no peito.
O gato miou e pulou de seu colo, se escondendo debaixo da cama.
Clarissa se levantou quando Azazel colocou a caixa em cima da escrivaninha, se aproximando aos poucos e sentindo o pulsar daquelas marcas. Precisaria de um tempo para interpretá-las, para se conectar com os símbolos, mas elas pareciam fazer emergir a energia demoníaca dentro de si, fazendo-a vibrar e se revirar.
— Por favor, diga que posso confiar em você — murmurou para Azazel, com um suspiro pesado. Precisava que ela estivesse falando a verdade, precisava saber que podia confiar nela, ou estaria cometendo um erro gigantesco.
Azazel riu, a risada retumbou no peito de Clarissa.
— Seus pais nunca te ensinaram a não confiar em estranhos? — questionou ela, e a menina sentiu um aperto dentro de si. Esticou a mão e tocou a madeira áspera, deslizando a ponta dos dedos pelos símbolos e sem se importar com as farpas.
— Tudo bem, já vi que vamos ter trabalho — admitiu Clarissa. Só pela energia pesada que aquilo irradiava, pelos símbolos que cobriam a madeira, era perceptível que não poderiam abrir aquilo de qualquer jeito.
Azazel sorriu, Clarissa afastou a mão da caixa.
— Mais do que imagina.
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