A Resposta Para Tudo | Capítulo Vinte E Dois
— O que é isso? — perguntou, adentrando o escritório de Elisa. A primeira coisa em que reparou foi o quadro apoiado na estante, uma pintura estranha com uma tonalidade vermelha escura. A tinta era diferente, estava rachada e mais grossa do que o normal.
Depois de alguns segundos, percebeu que era sangue. Aquilo lhe alarmou.
— Bethany pintou. Sara ficou preocupada e me chamou, achou que pudesse ter algo a mais no quadro — explicou Elisa, sem se levantar da cadeira. Tinha os cabelos ruivos presos, o maxilar tensionado ao observar a tela perturbadoramente manchada de vermelho.
Clarissa abaixou-se perto da tela, ajoelhando-se no tapete cinzento que forrava chão do escritório.
— De fato. Consigo sentir a energia da Mamon daqui — murmurou, esticando o braço para tocar a pintura macabra. Franziu as sobrancelhas, sentindo uma corrente fria subir pela ponta dos dedos e fazendo seu corpo estremecer. — É como se não estivesse lapidada — constatou, o que deixou Elisa confusa.
— O que quer dizer? — Não a respondeu, esticou a mão sobre o quadro em vez disso. Fechou os olhos por alguns segundos e deixou que a mistura de quente e frio tomasse o ar ao seu redor como uma redoma de vidro. Sentiu a troca de energia. Sentiu sua mão espalhando as chamas pelo quadro.
Quando abriu os olhos, as bordas do quadro estavam cercadas de chamas azuis cintilantes, elas crepitaram e passaram a se estender por toda a extensão da pintura, sem queimá-la. Era como se as chamas estivessem derretendo e moldado o sangue do desenho, queimando-o enquanto deixava a tela em branco.
As duas observaram em total silêncio enquanto as chamas faziam seu trabalho, o sangue queimava e se espalhava, mudava de lugar como se movido por um ímã. Ao final, havia ficado apenas um pequeno símbolo bem desenhado, um emaranhado de linhas vermelhas bem distintas e geométricas.
— Isso é... — Elisa tinha as sobrancelhas levantadas, surpresa ao reconhecer o desenho. Clarissa também estava perplexa, olhando para o quadro com os olhos brilhando em um azul gélido, os punhos fechados de uma maneira tensa.
— A resposta para tudo, eu acho — completou. Sua voz soou furiosa, assim como os olhos arroxeados estavam mais chamativos e intensos do que o normal.
« ♡ »
Havia uma lâmina específica que era capaz de cortar tão profundamente que liquefazia a energia, que era capaz de fazer um ser celestial sangrar. Clarissa não soube por que ficou surpresa com isso, já devia estar acostumada.
Segurava a faca fina e tentava tomar coragem para aquilo. Não drenaria seus poderes, Elisa garantira, mas machucaria, e agora ela lhe encarava com atenção. Lena, Kenan e Azazel estavam ao seu redor também, silenciosamente esperando que desse o próximo passo.
Ao redor da mesa redonda de madeira, no centro de um salão iluminado e incrustado de ametistas, sentia a garganta apertada com tanta luz, com tanta energia. Sentia raiva. Mágoa. Decepção. Tudo aquilo era um lembrete constante de como chegara ali.
Levou a faca afiada até mão, observando o material prateado refletir seus cachos loiros. Colocou a lâmina lisa sobre a palma da mão e deslizou, apertando-a com força contra a pele.
Não esperava sentir dor, mas doeu. Era como fogo se espalhando, depois tudo congelava. Essa era a parte fácil, sentir aquela substância estranha escorrendo do corte foi difícil. Era como se pudesse sentir uma linha dentro de si se desfazendo, seus pensamentos embaralhados sendo apagados.
Fez uma careta de dor, curvando-se para frente e fechando a mão, sentindo o líquido escorrer entre os dedos, deixando-os grudentos. Elisa também parecia desconfortável, os lábios tensionados com força demais.
— Lisa? Tudo bem? — perguntou, quando a dor passou a ser mais suportável. Elisa esticou a mão sem dizer nada, Clarissa sentiu-se zonza e espantada quando viu que também havia um corte ali. Não sabia que a conexão era tão profunda, que estavam interligadas a esse ponto.
Foi quase automático quando olhou para Lena, mas ela desviou o olhar e evitou lhe encarar. Foi como um soco no estômago, principalmente quando viu o quanto ela parecia incomodada e desconfortável, quase decepcionada.
Focou no que precisava fazer e deixou o sangue pingar no vasilhame de metal. Tinha uma consistência e cor estranhas. Era escuro, quase como sangue humano, mas tinha um reflexo arroxeado e metálico hipnotizante.
Observou aquilo pingar e pingar, só enrolou a mão na toalha quando a quantidade pareceu razoável. Limpou a faca, estendendo-a para Azazel.
— Vou testar com seu sangue também — disse para a loira, oferecendo a lâmina. Azazel pareceu desconfiada, mas Clarissa não recuou.
— Por quê? — perguntou ela. Clarissa fechou a mão com mais força, sentindo o corte latejar e o tecido que usava como curativo ficar ainda mais encharcado.
O brilho das ametistas contornava Azazel, ela pegou a faca, o aço cintilou na luz ofuscante e esbranquiçada do salão.
— Quanto mais poderes misturados, melhor. Não sei dizer quanta energia demoníaca é necessária para abrir a caixa — justificou. Azazel concordou silenciosamente e fez o mesmo procedimento, cortando a palma da mão com a faca.
Ela não hesitou ou fez qualquer careta de dor, qualquer gesto de desconforto, apenas esticou a mão e deixou o próprio sangue pingar no vasilhame limpo ao lado do de Clarissa. As gotas foram se acumulando até uma quantidade razoável, só então Azazel se afastou.
Sobre o olhar atento de Kenan, o olhar indiferente e quase entediado de Azazel, e as expressões de nervosismo de Lena e Elisa, Clarissa pegou o pincel que havia deixado ali e puxou a caixa de madeira para mais perto, deslizando-a pela mesa. Mergulhou as cerdas do pincel nos dois vasilhames, misturando um pouco de seu sangue ao de Azazel, e então começou a pintar.
Pressionou o pincel com cuidado, o sangue deixava seus rastros na madeira e logo escurecia, absorvido pela caixa. Foi pintando cuidadosamente, garantido que cada parte do desenho estava no lugar certo, que a proporcionalidade estava correta.
Ao mesmo tempo, imaginou sua energia correndo pelas linhas como um rio, imaginou aquele símbolo se iluminando e queimando toda a proteção que envolvia a caixa, toda a energia demoníaca responsável por lacrá-la.
Quando terminou, deixou o pincel de lado e colocou a mão sobre o símbolo, fechando os olhos. Assim como havia deixado sua energia escorrer como sangue no vasilhame de metal, agora deixava-a escorrer por entre os dedos, pulsar para o símbolo. Focou nisso, usou toda a intensidade que pôde para energizar aquele desenho.
Abriu os olhos e viu o símbolo brilhar e queimar a madeira, como se fosse composto por chamas. Esperou por alguns segundos, ignorando os olhares chocados dos outros e, quando o sangue parecia seco na madeira, absorvido por ela, arriscou a tocar na caixa.
Um leve choque tomou seus dedos e se espalhou por seu braço, o que quase fez Clarissa recuar. Com cuidado, puxou a tampa do baú para cima, arregalando os olhos quando ela se abriu com um rangido baixo e revelou, dentro da caixa, um livro envelhecido com capa de couro e folhas amareladas.
— Era simples assim — constatou Azazel, surpresa. Clarissa assentiu e, quando a loira avançou para pegar o livro de dentro do baú, puxou uma espada escondida em um suporte debaixo da mesa de madeira, oculta até então.
Todos ali pareceram surpresos com o gesto, menos Elisa. Apertou a mão em volta do cabo de aço, evitando olhar para os outros e encarando Azazel, a pele queimando em fúria e mágoa. A espada estava apontada para a loira agora, chamas arroxeadas escaparam da ponta de seus dedos e começaram a percorrer a lâmina lentamente.
Em questão de segundos, Clarissa segurava uma espada prateada e flamejante, parada a poucos centímetros de Azazel. Azazel recuou, afastando-se do livro.
— Você deve querer muito esse livro, não é? — Levantou uma sobrancelha, encarando-a com os olhos obscurecidos e o tom quase cuspido. Lena e Kenan se encaravam de forma alarmada, Elisa olhava atentamente para Azazel, como se estivesse pronta para uma batalha também. — Se esteve disposta a me deixar morrer para recuperá-lo, deve ser valioso. Ou talvez você simplesmente não importasse comigo e fosse indiferente em relação à minha vida. — complementou. Lena e Kenan estavam estranhamente parados, tentando entender o que estava acontecendo ali.
— Clarissa... — Azazel começou, Clarissa balançou a cabeça e ergueu a lâmina, calando-a.
— Era o plano perfeito, não era? Você deixou as proteções falharem por um minuto, logo depois de perceber que eu não conseguiria abrir a caixa sem meus poderes de querubim. Leviatã me encontrou, fez o trabalho sujo, e depois você alegou inocência, sabendo que eu acreditaria — relatou. Elisa estava tensa, todos ao seu redor permaneciam congelados ao observar a espada flamejante, a ira nos olhos de Clarissa enquanto encarava Azazel. Seus dedos tremiam, todo o salão de ametista parecia estranhamente pequeno e desaparecia ao seu redor. Só via Azazel. — O mais triste é que eu estive disposta a acreditar em você, eu cheguei a confiar em você, mesmo sabendo que não devia. Demorei um pouco para ligar os pontos, mas percebi que havia algo errado pouco depois de chegar aqui e descobri toda a farsa. Insisti com o Conclave para que você ficasse, que seria importante ter você por perto se eu quisesse abrir o baú, mesmo sabendo o que você fez e o que estava disposta a fazer. Você me deixou morrer, você fingiu que estava me ajudando e me deixou engasgar no meu próprio sangue porque precisava dos meus poderes para recuperar o maldito livro — acusou, a voz mais exaltada e mais alta. Os olhos arderam e brilharam em lágrimas, piscou para afastá-las. Não derramaria nenhuma lágrima na frente de Azazel, não lhe daria essa satisfação.
— Não tive escolha — disse ela, com simplicidade. Clarissa quase riu, quase engasgou-se na própria raiva e incredulidade.
— Como você consegue ser tão cínica? Como consegue me olhar nos olhos e dizer que não teve escolha a não ser me tratar como a porra de um objeto? — Não conseguiu controlar o tom de voz, suas palavras repercutiam e ecoavam pelo salão como fantasmas sussurrando. Azazel não se mexia, a espada flamejava e crepitava de forma ameaçadora, apontada para a garganta da loira. — Eu escolhi acreditar em você até o último minuto! Pode me dizer, pelo menos, que há uma explicação para tudo isso? — desafiou-a, olhou-a nos olhos. Esperou que ela se justificasse, que ela provasse que estava tremendamente enganada e que não havia sido traída dessa maneira.
Ainda esperava que ela fosse a pessoa em quem confiara, em quem depositara as esperanças de voltar para uma vida normal.
— Eu precisava do livro, Mamon tem algo importante para mim e quero de volta — respondeu, e Clarissa tremeu, a mão apertando ainda mais a espada. Não sabia que conseguia sentir tanta raiva e mágoa, havia permanecido quieta e fria todo esse tempo e finalmente os sentimentos vieram à tona.
— Pena para você, o livro fica comigo — murmurou, e os olhos se iluminaram subitamente, os cachos loiros flutuaram sem brisa alguma. Ela parecia alheia aos outros no salão, as pupilas estavam dilatadas quando um fio arroxeado surgiu no ar e começou a se dobrar, formando um desenho abstrato.
Logo o símbolo estava terminado e o ar foi tomado por uma tonalidade roxa que envolveu Azazel por completo. A silhueta se destacou no meio da luminosidade por um momento, então sumiu em questão de segundos, desfazendo-se no ar.
Clarissa largou a espada de uma vez só, a lâmina caiu com um barulho oco que repercutiu no silêncio do salão. As chamas se apagaram subitamente, ninguém ousou dizer uma palavra, a energia que Clarissa usara para expulsar Azazel da dimensão ainda flutuava no ar como um perfume mórbido.
Elisa parecia preocupada, Kenan e Lena tinham os olhos surpresos e espantados, sem saber o que dizer ou como reagir.
— Agora vocês sabem — disse Clarissa, inclinando-se e pegando o livro de dentro do baú de madeira, tocando-o com cuidado. — Ela não vai mais voltar — complementou, se virando. Ninguém falou mais nada quando ela saiu do salão, o barulho das portas batendo repercutiu pelo cômodo inteiro.
« ♡ »
Clarissa não sabia o que pensar enquanto observava o céu noturno do planetário, sabendo que deixaria todas as lágrimas caírem quando se movesse.
Havia sentido tanto ódio e mágoa que não achara ser possível, eram como um incêndio dentro de si. Um incêndio que mandava cada centímetro de seu corpo enfiar a maldita espada em Azazel, acabar com aquilo assim que pudesse.
O que lhe salvara fora a mãe de Elisa. Seu conselho quando descobrira os poderes demoníacos.
E tudo o que há dentro de si vai se iluminar.
O que seria de si se cedesse tão facilmente ao ódio? O que seria de seus poderes se os usasse para destruir? Uma parte de si ainda se arrependia de não ter usado aquela espada, ainda se lembrava das mãos tremendo de vontade de fazer Azazel passar pelo mesmo que havia passado.
Mas isso não mudaria nada. Havia acordado em um necrotério e voltado para ele. Todo esse ódio não teria um fim se decidisse fazer dele seu combustível.
Passos lhe fizeram se virar, Lena tinha uma expressão de seriedade que raramente aparecia em seu rosto. Sua silhueta era contornada pela lua cheia, as grandes janelas arqueadas engoliam seu corpo pequeno e delicado, se abrindo para um céu infinito e lotado de estrelas que formavam uma bela pintura.
Clarissa balançou o livro que tinha em mãos, o livro de couro que havia tirado da caixa de madeira lacrada.
— O livro... Não tem nada. Um monte de páginas em branco — disse, irritada e frustrada. Jogou o livro contra a parede, ele bateu com força e ricocheteou, caindo no chão com um baque alto que fez Lena se encolher, espantada. — Ou Azazel me enganou, ou Mamon enganou nós duas — murmurou, rouca. Lena não respondeu de imediato, atravessou o salão com os cabelos castanhos curtos cintilando à luz da lua, a pele pálida brilhando em dourado.
Quando ela lhe abraçou, sentiu que podia respirar, que podia deixar escorrer toda a raiva.
— Faz sentindo. Elisa me contou sobre o quadro, não acho que ele daria a resposta e o acesso ao livro tão facilmente — disse, e Clarissa estremeceu, encolhendo-se nos braços de Lena e fechando os olhos.
Aquele quadro lhe entregava a chave, lhe entregava o método que ele havia usado. Estava tudo no sangue, tudo nos traços certos. Sabia que não era essa a mensagem principal, pois ver aquele símbolo de conexão pintado em sangue foi como um soco no estômago.
Pintado em sangue. Um símbolo de conexão pintado em sangue. O símbolo que Azazel tinha pintado no colar. Sangue.
Como se a traição não fosse suficiente, ela ainda conseguira tirar o sangue de Elisa das mãos de Mamon e fazer a ligação. Fazia sentido. Era ela quem estava no necrotério quando havia acordado, seria fácil tirar um pouco de seu sangue quando humana.
Não era Mamon quem havia realizado a ligação. Era Azazel.
— Por que você não aproveita essa trégua com Mamon para descansar? Você e a Liz parecem exaustas, tentem relaxar agora que temos o sangue — falou Lena, suavemente. Clarissa não lhe encarou, continuou com o rosto enterrado em seu ombro, escondendo-se do mundo entre os cabelos curtos com cheiro de incenso.
— Não faço ideia de como quebrar o elo, não sem deixar sequelas — confessou em um sussurro, sentindo-se sem voz.
— Um passo de cada vez, Cass — disse Lena, colocando a mão em seu queixo e sorrindo de leve, os olhos iluminados. Clarissa puxou-a para si, querendo que o universo se resumisse àquilo: Lena, as estrelas, o carinho na voz dela. — Já foi corajosa o suficiente por hoje — completou, beijando seus lábios de leve. A abraçou novamente, sentindo aquele toque familiar. Fechou os olhos quando sentiu as lágrimas vindo, afogando-se no perfume e no corpo familiar dela.
— Faz tanto tempo, mas... — Deixou a voz morrer lentamente, sentiu as mãos de Lena em seus cabelos, acariciando-lhe com cuidado e calma, fazendo-lhe se perder no toque gentil.
— Você sente saudades de casa? — adivinhou ela, Clarissa concordou com a cabeça e suspirou suavemente, sentindo a garganta pesar. Lena parecia tão bem naquela dimensão que era como se tivesse nascido para aquilo.
Algumas vezes invejava isso, desejava essa tranquilidade.
— Às vezes eu só não quero estar aqui — confessou, sem conseguir se expressar melhor. Tudo era tão sufocante, aqueles grandes salões lhe engoliam tão rápido que só queria fugir, correr até ter certeza de que nunca mais veria uma escadaria de mármore, uma sala lapidada em cristais ou qualquer outra proeza arquitetônica que tinham ali.
— Tudo bem, eu entendo — sussurrou Lena, acariciando mais uma vez seus cabelos encaracolados. Escondeu a face no ombro dela, sentindo o cheiro doce de incenso, uma mistura de hortelã e canela.
Ficou ali, apoiada nela, em seu cheiro, seu aroma. O silêncio era uma das coisas que mais gostava ali, aquela paz tão perfeita e inabalável que lhe rodeava por onde fosse.
Foi no silêncio que ouviu os saltos ecoarem. Os reconheceria em qualquer lugar, identificou com facilidade o ritmo rápido e forte dos passos. Se virou quando Elisa adentrou a sala, e ela parecia um tanto preocupada e exasperada, a urgência escorrendo pelas palavras e gestos.
— Preciso de vocês. Acho que expulsar Azazel foi um erro — disse. Em questão de segundos as duas estavam de pé sem questionar.
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