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- Marie – a voz chamou de fora do quarto, provavelmente do andar de baixo.
Mary se levantou da cama e calçou o sapato, pouco se importando em trocar o pijama. O pai não estaria em casa, como sempre, e a mãe dificilmente a veria de qualquer maneira, já que a única interação que elas têm é quando a mulher a chama para tomar o café da manhã e depois sai para trabalhar.
Descendo as escadas vagarosamente, ela se sentou sobre a mesa, empurrando as louças para ter espaço para esticar as pernas.
Pensou brevemente no que poderia aprontar durante a tarde caso o tédio batesse, mas resolveu que hoje seria dia de ir para a escola. O motorista devia estar esperando para leva-la, como sempre, mas hoje ela apareceria com a mochila e o uniforme, e não o suborno diário para ele não delatá-la para os patrões.
- Bom dia, senhorita – o senhor barbado a cumprimentou, sorrindo. – Hoje saímos ou ficamos? – brincou. O homem já tinha há muito desistido de tentar convencê-la a levar a escola à sério e como estava com muitas dificuldades em casa, acabou aceitando o dinheiro, mesmo que se sentisse culpado por saber que provavelmente a grana provinha do furto dos próprios patrões.
- Hoje saímos – respondeu enquanto abria a porta do carro e se jogava lá dentro, a atenção completamente voltada para o penteado que tentava fazer no cabelo.
O homem acenou e se posicionou atrás do volante, saindo com o carro em seguida, sem dizer mais palavra.
A verdade era que, para ela, não compensava ser a criança rebelde. E também não compensava ser a filha modelo. Seus pais não prestavam atenção fosse qual fosse suas atitudes.
A garota se sentia sozinha a maior parte do tempo. E se sentia desolada por sua única companhia diária ser a do motorista.
Não negava que havia se afeiçoado ao senhor, ainda mais por ele sempre trata-la com gentileza e afeto, coisa que seus pais sequer sabiam o significado.
O homem perguntava sobre o seu dia, lhe dava os parabéns e até presentes de aniversário – que por mais que fossem simples e em nada se comparassem com as coisas caras e extravagantes que recebia, quando recebia, dos pais - ainda sim, eram seus presentes favoritos. Conversava e contava sobre sua vida quando ela queria ouvir e ouvia suas reclamações ou tristezas quando ela queria falar. Para todos os efeitos, o velho motorista era a figura paterna que lhe faltava diariamente em casa.
Na hora da saída da escola, a garota esperou ao lado do portão, junto do segurança e porteiro do local, mas o motorista não apareceu.
Mary suspeitou de seu atraso, visto que o homem sempre chegava pelo menos com trinta minutos de antecedência; ficando ainda mais intrigada quando quem apareceu para busca-la foi o pai – o homem que sequer sabia, até a semana anterior, a instituição na qual ela estava matriculada.
O homem não lhe sorriu quando a garota se sentou no banco do carona, e ela sequer fez questão de olhar uma segunda vez para ele. Os dois não tinham intimidade e mesmo que ela sinta falta de uma interação com os pais, ela também entende que não é querida e não é amada por nenhum dos dois.
- O que aconteceu com o senhor Heitor? – indagou por fim, quando chegaram à mansão.
- Ele sofreu um acidente de carro. Um caminhoneiro adormeceu no volante e acertou em cheio o lado do motorista – respondeu, sem meias palavras. – Ele deve estar em cirurgia agora, mas a chance de sobreviver é tão ridícula que não vale a pena o esforço – deu de ombros com desdém.
Mary mordeu o lábio com força e saiu do carro correndo, enquanto tentava segurar as lágrimas. Não era justo que a única pessoa que minimamente se importasse com ela morreria. O pior: morreria pelo erro de outra pessoa!
Bateu a porta do quarto com força e se sentou em frente à madeira maciça. Sua revolta era maior do que sua dor. E seu ódio pelo progenitor anulava completamente sua vontade de derramar mais qualquer lágrima sequer.
Sua maior tristeza no momento era não poder fazer nada para ajudar o velho motorista e nem poder aplacar a raiva contra o homem que deveria significar o mundo para ela.
Suspirou tristonha e se ergueu, sabe-se lá quanto tempo mais tarde. O jeito era tomar banho e aceitar. Como sempre. Sua limitação pra qualquer curso de ação é gritante. Nada tinha a fazer a não ser voltar a ser a filha rebelde, que corre pela mansão dos pais quebrando tudo o que conseguia. Essa era sua única forma de vingança: prejuízo financeiro. Embora, é claro, Mary saiba que meia dúzia de livros rasgados, pratos estilhaçados e vasos arremessados pelos cantos não seja sequer uma preocupação para qualquer um dos mais velhos.
Nem mesmo quando ela conseguiu – depois de muito tempo, é claro – arrasar com os pneus de todos os carros na garagem e quebrar o painel do único carro que não era a prova de balas ela foi chamada a atenção.
Era mais fácil mandar comprar outro ou delegar a tarefa de mandar para o conserto para uma terceira parte do que se dar ao trabalho de sequer tentar educar a filha.
Mary era status. Servia para sair em fotos da família perfeita e feliz na mídia. E só. Em casa era descartável e desnecessária. Os pais não a amam e a garota sabe disso.
Desceu as escadas para a parte baixa da residência, onde costuma ficar o quarto dos empregados que dormem na mansão.
O antigo escritório do pai ficava ali. Era de praxe dela visitar o lugar e ler as anotações e pesquisas dele. Mesmo que não gostasse de frequentar a escola, era inegável sua sede por conhecimento. E também era nítido a capacidade herdada dos pais.
Os malditos gênios da atualidade – pensara com desgosto.
Olhou os títulos dos livros na estante há muito abandonada, escolhendo algum de seu interesse para a leitura diária. Escolheu um de capa azul escuro, sem título na lombada, seu lado infantil a atraindo simplesmente pela cor da camurça da capa.
Sentou-se com as perninhas abertas, no chão, o livro depositado entre elas. As letras garrafais eram quase ilegíveis de tão apagadas. Tudo o que ela conseguiu identificar foi a palavra "GETTY" e logo embaixo o que parecia ser um grande número 2. Não que fizesse diferença.
Abriu o livro com cuidado, deparando-se com algo semelhante a um livro de anatomia animal.
Nunca tinha reparado no livro e nunca se interessara no tema até esse momento. Gostara das explicações e do que lia. Das figuras que seus olhinhos curiosos descobriam a cada página. Era um mundo novo e ela estava fascinada.
Levantou-se e pegou o livro, decidida a continuar a leitura no conforto de sua cama, mas parou quando, por um descuido, o livro escapou de suas mãos ao tentar puxar a maçaneta.
O objeto não chegou a cair, conseguiu agarrá-lo pela capa antes que acontecesse. Mas algo caíra do meio das suas páginas. Pegou o papel do chão, curiosa. Nada mais do que uma receita médica, provavelmente para o cachorro da família que morrera há algumas semanas atropelado pelo pai.
Seus olhos percorreram os garranchos no papel, tentando entender, até seu cérebro apreender o que aquilo queria dizer.
Saiu do local pensando aonde poderia encontrar o que precisaria. Tinha que confirmar algo antes também, para ter certeza de que daria certo...
Andou calmamente até a suíte dos pais, adentrando o banheiro em seguida, subindo na pia para poder alcançar o armário de remédios.
Ao abrir a portinha, correu os olhos pelos rótulos. Lembrava brevemente de sua mãe comentar sobre a insuficiência renal do marido devido, claro, sua grande incapacidade de parar por alguns segundos para beber água.
Pegou um dos frascos, como se fosse algo muito, muito valioso e frágil, lendo a descrição do remédio manipulado. Confirmou com a cabeça e o colocou no lugar. Milimetricamente no lugar.
Desceu da pia e voltou a correr pela casa, procurando o remédio prescrito para o cachorro poucos dias antes de sua morte... E com um pouco sorte – a sorte que o animal não teve -, o medicamento ainda não teria sido jogado fora.
Falou com o encarregado do canil e adestrador dos animais da residência, recebendo a resposta positiva de que ainda estava em posse das drágeas.
Não foi difícil obter os medicamentos. Tudo o que precisou foi mentir dizendo que os pais estavam lhe ensinando sobre responsabilidade e sobre como fazer as coisas por si mesma, e o homem lhe entregou tudo sem perguntar outra vez.
Correu novamente pela casa, com o frasco dos remédios do cachorro em mãos, retornando para o banheiro da suíte dos pais. Refez o processo: adentrar o banheiro, subir na pia, abrir a portinha, gravar como o frasco estava posicionado e exatamente quantas drágeas existiam dentro do mesmo.
Sentada à pia, tomando todo o tempo do mundo – que ela sabia que tinha -, tirou mais ou menos 2/3 das drágeas e as trocou pelo remédio do cachorro. Após isso fechou o frasco e o recolocou de onde o tirara.
Com os remédios usurpados do frasco do pai em sua posse, andou até a cozinha e preparou uma vitamina espessa de morango e framboesa – a favorita dos seus progenitores – e abriu o resto do conteúdo dos remédios do cachorro ali.
Colocou o copo do eletrodoméstico na geladeira, coisa normal que a empregada fazia quando eles solicitavam a tal vitamina, e retornou para o quarto, afinal, ainda precisava descobrir o que exatamente fazer com o resto do medicamento em sua posse.
Decidiu-se, por fim, em guardar em um frasco qualquer, no baú da sua cama box, caso precisasse reutilizá-los em algum momento futuro, afinal, nunca se sabe...
O resto do dia passou pela casa, lendo, explorando, ou se divertindo quebrando algo, retornando ao seu passa tempo de dar prejuízo para os pais, ansiosa para o regresso dos mesmos, coisa essa que não aconteceu aquele dia.
Marie esperou pacientemente o prazo de quase dezenove dias para finalmente ver o pai reaparecer em casa.
Obviamente nesse meio tempo a vitamina já tinha sido trocada por outra que, por sorte, fora feita no mesmo dia em que ele resolveu aparecer, se utilizando do outro frasco de remédios do cachorro – este encontrado por puro acaso.
Primeiro o pai entraria em casa e se trancaria no seu escritório, ficando lá por aproximadamente duas horas – isso sendo parte do seu ritual de retorno, há muito decorado pela menina -. Após isso, subiria para a cozinha, beberia sua vitamina enquanto subia para a suíte, para poder tomar banho. Após o banho, tomaria três dos remédios no armário, fazendo uma mistura perigosa que já tinha sido há muito alertado pelo médico, mas que persistia em continuar de qualquer maneira.
O primeiro sinal de que algo estaria acontecendo foi o arquejo sôfrego que o patriarca deixou escapar ao consumir rapidamente, enquanto andava pela casa, a bebida. Sua careta também entregou de que ele se sentia estranho. Entretanto ele pareceu não se abalar muito e pareceu relativamente melhor depois de ingerir um copo de água.
Olhou para a filha que o fitava em expectativa e, com uma careta de desagrado, deu-lhe dois tapinhas na cabeça, o máximo de afetividade que conseguia transmitir para o pequeno fardo que lhe dividia o DNA.
Voltou para seu ritual de onde parou: subir para o quarto, tomar banho, tomar os remédios – e Mary esperava: morrer... de preferência sentindo muita dor e desconforto.
A criança aguardava, ansiosa, atenta a cada mínimo barulho que acontecia pela casa, observando de longe, até enfim ouvir o baque de algo grande se chocando contra uma superfície. Andou até a porta do quarto dos pais só para ver o progenitor estirado no chão, ao lado da cama.
Se aproximou, hesitante, temendo que algum dos empregados a visse, o que certamente geraria suspeitas pelo seu olhar frio e seu sorriso de conquista.
Com cuidado puxou a peça íntima do pai, que sequer teve tempo de terminar de se vestir antes do infarto fulminante causado pelo medicamento o atingir e depois, sabe-se lá com que força, o colocou sobre os lençóis, fazendo com que sua morte parecesse algo natural e calmo, e não que ele sofreu com dor e enjoos, como ela sabia que tinha de fato acontecido.
Alguns fatos:
1 - O medicamento utilizado se chama CLORETO DE POTÁSSIO e é absolutamente perigoso, sendo seu uso muito conhecido para fazer Eutanásia em animais;
2 - Também é uma das três injeções aplicadas para executar penas de morte nos países em que isso ainda existe (e não, não são três possíveis opções de injeção, são realmente três que são aplicadas no processo de assassinato);
3 - É um medicamento que tem MUITA contraindicação para quem possui problemas nos rins e/ou toma medicamento para qualquer problema renal;
4 - Getty é um livro de anatomia veterinária - um dos mais falados e recomendados na faculdade, mesmo sendo super antigo;
5 - Se você tem amor à sua vidinha, nunca tome esse medicamento sem ter sido prescrito por um médico de extrema confiança. Obrigada, de nada.
Agradecimentos:
Vou deixar aqui meu sincero obrigada para a queridíssima Kai que fez uma capinha perfecta pra mim *-* e o coiso ali em cima que eu acabei de esquecer o nome asduhaud - sorry
e pra Sara, que deu a ideia geral pro cap 3 rolar.
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