Aracno-FÁ-Bia
P era uma maldita tocadora de piano e músicas estranhas.
Todo dia um dedilhar diferente, agitado, subindo até as estrelas, infiltrando nos meus ouvidos uma irritante calmaria. Se não era apressado, animado demais para o terror que eu escrevia, destruindo a atmosfera pitoresca que criei com janelas fechadas e luzes apagadas, era mórbido, lento e sufocante, triste demais para o cenário universitário que narrava.
S-U-S-P-I-R-O!
Fazia pouco tempo que havia alugado essa nova casa. Localizada perto de uma serra, a casa era cercada apenas por uma floresta obscura, uma estrada deserta e a casa da minha única vizinha, P.
P era louca. Sua casa era como um chafariz no meio de um deserto. Pintada alegremente de azul celeste, a noite era iluminada por pisca-piscas amarelos. Ela tinha uma quantidade assustadora de estátuas de sapos na entrada, suas janelas não tinham cortinas e eu já a vi fazendo todo tipo de coisa sem nenhuma roupa... Não que eu fique espionando.
A área rural nunca foi minha primeira opção de moradia, mas quando meu primeiro livro fez um surpreendente sucesso estrondoso, meus editores pediram o segundo volume e eu percebi que não conseguiria escrever mais 300 páginas em um apartamento abafado na cidade grande.
Na mesma semana fiz as malas, aluguei a casa mais pitoresca que encontrei e me mudei, planejando passar os próximos cinco meses escrevendo. Encontrei na pequena casinha (azul marinho elegante, não azul celeste excêntrico) uma sala de estar confortável para escrever, uma varanda para observar as estrelas e uma cozinha com vista para a floresta, o que me inspiraria a escrever a cena de perseguição perfeita.
Estoquei os armários com conservas, macarrão e diversos pacotes de suco de laranja, pois chá é para britânicos e café é para os fracos.
Assim, no meu primeiro dia oficialmente morando na casa, eu tinha um computador carregado, um copo de suco de laranja e um bloco de notas cheio de ideias que precisavam ser escritas. Abri o documento do Word, tomei um gole de suco e comecei a escrever o capítulo um de "O Mistério BlackBird 2"... Ainda não havíamos pensado em um título melhor.
O segundo livro dava um grande salto no tempo, começando com Analice e Rick ainda amigos, agora na faculdade, as crises e traumas do primeiro livro esquecidos no fundo da memória. Eles estavam bem, até saberem...
Girei a cabeça em várias direções, como quando se ouve um mosquito perto da orelha e você fica tentando localizá-lo. Na verdade, essa foi a primeira vez que ouvi P e seu ridículo piano.
Na primeira vez eu relevei, presumi que o barulho logo pararia e eu poderia voltar a escrever na paz do silêncio. No entanto, quando The Tale of Tsar Saltan tocou pela quarta vez consecutiva, desisti de escrever e resolvi ligar a TV, com meu grande catálogo de três opções de canais, sendo dois deles religiosos.
S-U-S-P-I-R-O!
Para minha crescente irritação os dias se seguiram todos assim. Todo maldito dia, em horários sortidos devo dizer, Srta. P se sentava na frente do seu piano e tocava por horas e horas. Em paralelo, era o som do piano começar para eu empacar no meu livro, mais nenhuma palavra me vinha a mente. Tentar escrever com P tocando música clássica no meu ouvido equivale a ver um filme de ação com música infantil no fundo, quebrava o clima, era tortura.
Estava dizendo a mim mesmo que eu poderia aguentar, não era um problema parar a produção algumas horas por dia para esperar a bonita parar de tocar. Foi apenas quando ela começou a tocar Love is a Bitch, enquanto eu tentava escrever uma cena de assassinato que minha paciência se esgotou.
Caminhei emburrado até a casa de P, socando sua porta o mais forte que pude, esperando que ela conseguisse me ouvir. Ouvi a música parar, então eu também parei de bater na porta, ocupando-me em olhar para qualquer lugar que não fosse as estátuas sinistras de sapos.
P abriu a porta vestindo apenas um robe branco de seda muito transparente. Era uma mulher bonita, de longos cabelos tingidos de vermelho e muitas tatuagens marcando a pele clara.
— David Morais? — ergueu uma sobrancelha escura, fina e bem-feita, um piercing de bolinha decorando a ponta.
Engasguei-me com a pergunta. Lá vamos nós de novo...
— Marco Morais, na verdade — estendi a mão para cumprimentá-la. — David é meu primo viciado em café, é uma confusão comum, nós dois escrevemos, ele escreve ficção juvenil de massa e eu fiquei com o terror, os assuntos realmente ruins do mundo, o púbico dele vem até mim quando cresce, pode-se dizer que somos igualmente talentosos no que fazemos e que de forma alguma me sinto ameaçado pelos muitos sucessos e prêmios dele — posso ser um pouco prolixo... Só um pouco.
— Marco, é? — soltou minha mão depois de um breve aperto. — E o que você está fazendo na minha porta?
— Olha, senhorita... Qual seu nome mesmo?
Ela me encarou de cima a baixo de forma meticulosa, para então levantar a cabeça e começar a cutucar uma rachadura presente na madeira da porta, suas unhas eram curtas e continham restos de esmalte preto nos cantos.
— Algo entre Peg e Poliana — disse devagar, como se tivesse ensaiado a frase antes de falar.
— Isso não diz muita coisa — cocei a cabeça irritado, quase me esquecendo do que vim fazer ali. — De qualquer forma, poderia tocar mais baixo ou apenas parar de tocar por um tempo? Estou tentando escrever meu novo livro e as casas são muito próximas.
Ela pareceu considerar, batendo os dedos na madeira, como se ainda estivesse no piano.
— O que está escrevendo? — sorriu curiosa.
— É uma cena de perseguição sabe, não posso ter sua música de cabaré tocando numa cena que se passa em uma escola.
Seu sorriso se alargou ainda mais.
— Não diga mais nada — falou antes de entrar para dentro de casa, batendo a porta na minha cara.
Fiquei na dúvida se deveria voltar a bater na porta e insistir na ideia de estabelecermos horários convenientes para nós dois, mas quando o silêncio permaneceu e os sapos se tornaram assustadores demais, voltei para casa.
Meu suco havia esquentado e o computador desligou sozinho, fazendo-me perder as últimas 200 palavras que escrevi naquela tarde. Estava prestes a retomar o trabalho quando Halloween Theme do filme de 78 começou a tocar, suspirei pesadamente, decidindo ir tomar meu banho. Não tive forças para ir desencorajar P.
Desde então as músicas começaram a ser mais sombrias, a maioria vindo de filmes de terror clássicos. E apesar de escrever as cenas de tensão ter realmente ficado mais fácil, um bom livro de terror não é feito apenas de sangue, morte e assassinato. Ainda havia o drama, o romance, a ação...
Foi assim que, duas semanas depois, mais uma vez me vi parado na porta da P. Dessa vez quem abriu a porta foi um homem alto, moreno e igualmente cheio de tatuagens.
— Ela já vem — disse entredentes, batendo a porta quando saiu.
The Murder de Psicose foi interrompido. Pouco depois vi P abrir a porta, dessa vez de short, top preto e chinelos de oncinha. Notei melhor as tatuagens em seus braços e ombros, eram pequenas estrelas.
— Escritor! — cumprimentou-me. — São para cada apresentação que já fiz — explicou quando notou meu olhar interessado. — Uma estrela para cada vez que eu brilhei.
Acompanhei seu sorriso gentil, olhando bobamente para seu rosto, P era uma mulher muito bonita afinal.
— A música — balbuciei.
— Ainda está atrapalhando?
— Não... Quer dizer, sim, um pouco talvez, apenas é que estou em uma parte mais dramática do livro, não é muito confortável escrever quando parece que sempre tem um psicopata com uma faca atrás de mim, não que eu ache que você seja uma psicopata, apenas estou um pouco confuso sobre por que você teria tantas estátuas de sapos?
— Eles comem aranhas, os sapos — disse logo após, como se não estivesse surpresa pelo meu fluxo inesperado de palavras. — Entendi o que quis dizer.
Ela bateu a porta e poucos segundos depois Lago dos Cisnes começou a tocar. Suspirei, sabia que não poderia deixar ela fazer isso de novo. Bati à porta mais uma vez, sendo atendido por uma mulher loira, vestida apenas com uma lingerie lilás. A mulher piscou para mim, fechando a porta. Em seguida P voltou a aparecer.
— Não é fã de Tchaikovsky?
Respirei fundo, buscando equilíbrio para dizer o que queria.
— Acho que você não entendeu, pode parar de tocar? — dei ênfase no parar.
— Não — respondeu, começando a fechar a porta, mas parando para completar. — Sinto muito que esteja incomodando, mas não vou parar de tocar, você quem deveria escrever em outra hora.
Fiquei do lado de fora por mais alguns minutos, os punhos cerrados, batendo à porta, tentando ser atendido. E a porta foi aberta por um senhor de cabelos brancos, vestido com uma cueca samba-canção de ursinhos e roupão azul aberto.
— Quantas pessoas tem nessa casa? — indaguei escandalizado, indo embora antes que o senhor pudesse responder.
Pelo menos Lago dos Cisnes era triste o suficiente para minha cena. Difícil foi escrever uma cena de morte sangrenta com a Pequena Serenata Nocturna do Mozart tocando sem parar. Era como se meus personagens estivessem em uma festa no jardim da monarquia britânica em vez de em uma chacina.
Levantei-me da cama emburrado, largando o notebook de lado para espionar a movimentação na casa ao lado. As janelas estavam todas fechadas, as estátuas de sapos posicionadas como a linha de frente de um pequeno exército na frente da varanda.
P não estava lá, havia visto ela saindo de carro na noite anterior e ela ainda não voltará, pois a garagem permanecia vazia. E a menos que houvesse alguém tocando em seu piano, isso só podia significar que ela de alguma forma programou o som para tocar música clássica em algum momento específico do dia só para me irritar. Quantos anos essa moça tem?
S-U-S-P-I-R-O!
Mozart foi repetido durante toda a semana, começando exatamente às 15:49 e indo até as 17:19. P ainda não estava em casa. Pelo lado bom, o som do piano fantasma tinha horários fixos, os quais eu podia regular com o meu tempo de escrita.
Quando P voltou para casa ela estava focada em tocar Liszt. Ela repetiu as mesmas músicas várias e várias vezes, aparentemente ainda aprendendo a tocá-las porque às vezes ela as repetia mesmo sem chegar ao fim da música. Duas semanas depois, já no capítulo 11 do meu livro e com meu estoque de suco de laranja precisando ser reposto, me rendi ao chá e me deixei aproveitar o show.
Imaginava suas mãos, com as unhas com restos de esmalte, dedilhando o piano de um canto ao outro. Um sorriso pacífico em seu rosto, empenhada em tentar ignorar as partituras e tocar de cabeça, fazendo jus as todas as pequenas estrelas que decoram sua pele. P não precisava de todas essas estrelas, porque ela não precisava estar sentada na frente de um piano para brilhar.
Balancei a cabeça, chocado com o rumo dos meus pensamentos. No que eu estava pensando? Apaixonado pela vizinha que eu nem sabia o nome?
Não, não apaixonado, curioso. P era uma figurinha rara, uma pessoa com personalidade, alguém interessante em meio a tantas pessoas sem graça. Eu estava curioso para saber mais de suas tatuagens, decifrar suas expressões e ouvir mais vezes sua risada.
Além disso, minha curiosidade sobre P, não me fazia gostar mais de seu piano. Saímos da semana do Liszt e entramos na semana da Lady GaGa. E acredite, ter a versão lenta do The Fame tocando repetidas vezes enquanto tentava escrever uma explicação plausível para a traição de Analice tornou tudo mais difícil.
Abri a janela da sala irritado, tentando encontrar inspiração na visão do céu ou do azul celeste das paredes de P. Apertei os olhos em direção a sua janela, vendo a mulher dançando lentamente pelo quarto, nua e deslumbrante. Após sua aparente viagem seus longos cabelos foram cortados na altura dos ombros, o corte combinava com ela e seu novo piercing na orelha.
P notou minha presença a encarando, a primeira reação que tive ao ser notado foi desviar o olhar, apenas para engasgar quando ela acenou em minha direção, o braço levantado esticando a tatuagem de uma rosa gravada na coluna. As pétalas vermelhas floresciam em seu seio direito, o caule descia por seu tronco, espinhos salpicados pela barriga.
Fechei minhas próprias cortinas, indignado. Ela sabia o quanto o piano me atrapalhava e agora vinha dar oi.
P tocava todos os dias. Quando os dias estavam quentes demais para se ficar em casa e quando estavam frios demais para se sair da cama. P tocou sem parar e se ela não estava tocando, havia alguém tocando, uma gravação, um convidado, um sapo, que seja. Havia música quando ela estava em casa e quando não estava. O som do piano estava lá quando ela tinha visitas e quando estava sozinha, e até mesmo quando ela não estava em casa a música estava presente.
As notas infiltrando-se no meu texto, influenciando nas minhas escolhas de palavras. O ritmo da história mudou tantas vezes que eu mesmo não reconhecia minha narração.
Estava considerando retornar à cidade. Pelo menos o barulho dos carros e a agitação das pessoas passando pela rua era um incômodo com o qual eu sabia lidar.
O problema era que o aluguel da casa já estava pago e eu me recusava a sair antes de aproveitar todos os 30 dias restantes.
Capítulo 22. O Mistério BlackBear. Mais seis capítulos e o livro estaria terminado, me restavam apenas mais alguns dias ouvindo o som do piano de P. Esse era o plano.
Exceto que, três dias depois, houve uma falha no plano. O piano não tocou! Já era sete da noite e eu ainda não havia ouvido nenhum som de piano vindo da casa de P.
As janelas estavam todas abertas, as luzes do primeiro andar ligadas e eu definitivamente consegui ouvir sons de pessoas lá dentro, o que significava que P estava em casa e que P não estava tocando ou ouvindo nenhuma música. Tem noção da gravidade da situação?
Sai tropeçando entre os móveis quando o dia anoiteceu e ainda nada de piano, largando meu capítulo pela metade e um copo gelado de chá de laranja. Corri até a casa de P, batendo à porta com os pensamentos a mil por hora. Algo estava acontecendo. P estava bem?
Fui atendido segundos depois por P. Dessa vez ela tinha os cabelos bagunçados, vestindo apenas um short doll com estampa de melancias, um robe branco e pantufas azuis. Carregava uma expressão preocupada, que se moldou em um sorriso surpreso quando me viu, P agarrou minha mão e me puxou para dentro da casa sem dizer nada.
Era a primeira vez que entrava na casa e toda a decoração parecia ter saído direto de uma pasta do Pinterest. Um grande tapete azul marinho se estendeu por todo o chão, cobrindo a madeira escura; um sofá branco cheio de almofadas redondas foi posicionado no meio da sala; havia também uma mesa de centro com revistas e duas estantes repletas de livros perto da parede, assim como o piano.
Um grande piano de cauda feito de madeira de mogno estava no canto esquerdo da sala, ao lado de uma janela, acompanhado por uma baqueta do mesmo tom de azul do tapete. Uma pequena pilha de partituras repousava em cima da tampa das cordas, o atril vazio, a sequência de teclas de marfins me lembrando do silêncio em que nos encontrávamos.
— Você pode matar? — P chamou minha atenção, suas unhas apertando meu braço a ponto de deixar marcas de meia lua. — Está no piano, é uma aranha gigante.
Apertei os olhos na direção do instrumento, finalmente a vendo... Bom mais ou menos, eu tenho alguns graus de miopia, mas aquilo ali era bem reconhecível e meu coração começou a disparar na hora.
— Não sei como foi parar lá — P choramingou, dando um gritinho quando a aranha se mexeu um pouquinho.
Eu também gritei, dando vários passos para trás, tentando me distanciar o máximo possível do piano, pois, parada na primeira tecla de fá, estava uma enorme aranha. Era gigante! Suas oitos patas se projetando ameaçadoramente pelas teclas, os olhos piscando em vermelho sanguinário e pedipalpos assassinos se mexendo devagar, monitorando nossos movimentos.
Eu e P gritamos de novo quando a aranha ameaçou se mover, juntos corremos para nos escondermos atrás do sofá. Apertei a mão de P, engolindo em seco quando vi a porta fechada.
— Por que fechou a porta? Como vou correr assim? — gritei em pânico.
— Ela fecha sozinha — olhou para os dois lados como se estivesse sendo observada. — Espere, o que você está fazendo aqui?
— Eu... — hesitei, não querendo parecer um perseguidor. — Estava conseguindo escrever e percebi que era por causa do silêncio, achei estranho, quer dizer, eu escrevo terror, muita coisa se passa pela minha mente quando as pessoas mudam suas rotinas e somem de repente, não que você tenha desaparecido, você apenas não tocou nenhuma música e você sempre toca alguma coisa e eu pensei, o que poderia estar acontecendo?
— Por causa da aranha — P apontou de novo na direção do piano.
Voltei meus olhos para a monstruosidade com patas, abrindo e fechando as mãos em um gesto nervoso, o suor se acumulou na minha testa, a ansiedade disparando.
— Eu sei que é loucura, mas acho que ela quer pegar a gente — P sussurrou, apertando minha mão e me impedindo de continuar meu tique nervoso de abrir e fechar. — O que faremos?
— Precisamos fugir — balbuciei com o fôlego que me restava.
— E deixar ela em cima do meu bebê? Está louco?
— Eu preciso fugir — tentei me levantar, apenas para sentir P agarrar meu braço, fazendo eu voltar a sentar no chão frio. — P! — repreendi.
— Não pode me deixar sozinha com esse monstro a solta.
Me desvencilhei do seu aperto, cruzando os braços em chateação. Agora ela queria minha ajuda?
— Desculpa senhora, por que não começa a tocar como você sempre faz? Talvez o som apavorante das suas músicas espante a aranha.
— Apavorante? — desviou os olhos do piano por um segundo, claramente ofendida. — De qualquer forma, eu não posso tocar com a aranha no teclado, por que você não escreve algo e faz ela dormir com aquele monte de palavras maçantes que você chama de livro?
— Maçantes? Eu venci o Cereja Dourada como melhor livro de horror e ficção — minha defesa foi interrompida quando a aranha se moveu.
P e eu voltamos a dar as mãos, a respiração desregulada e o coração acelerando com a hipótese de que ela pudesse chegar até nós.
— Isso é tão estúpido — P riu desolada. — Somos estúpidos, estamos mesmo nos escondendo por causa de um inseto?
— Aranhas não são insetos — corrigi, mordendo o lábio quando P me lançou um olhar feio. — Se você tem medo de aranhas por que veio morar no meio do mato?
— O corretor disse que não tinha aranhas — sorriu envergonhada.
— É claro que ele estava mentindo, corretores sempre mentem.
Gritamos mais uma vez, abaixando nossas cabeças para ficarmos escondidos.
— Bom, e você? — sussurrou como se tivesse medo de ser ouvida.
— Eu coloco veneno na casa inteira, é por isso que tem uma aranha no seu piano e não no meu computador — falei mais alto do que o necessário. — Desculpa, essa situação é...
Suspirei, me atrevendo a erguer o pescoço para me certificar de que a aranha ainda estava no piano. P sorriu carinhosa, simpatizando-se com a minha dor.
— Sinto muito por arrastá-lo para isso.
— Está tudo bem, sinto muito por ter criticado sua música.
P apertou minha mão em uma oferta de paz, a qual aceitei.
— E sinto muito por tocar enquanto você estava trabalhando, eu deveria ter sido mais paciente — balançou a cabeça desolada, a franja de fios avermelhados cobrindo seu olho direito. — Eu posso ser uma encrenqueira.
— Não, a culpa é minha por não te dizer os horários e apenas pedir para que você parasse de tocar.
P riu fraco, prestes a pedir desculpas por mais alguma coisa, quando seus olhos se arregalaram.
— Ela se mexeu! Se mexeu até a ponta da tecla!
Olhei de soslaio, vendo o quanto a aranha tinha andando. Racionalmente eu sabia que ela estava apenas alguns centímetros mais perto da gente, mas ser racional nunca foi minha qualidade mais forte.
— Ela está se aproximando! — gritei assustado, esquecendo as boas maneiras e correndo para a cozinha. — Vamos morrer, vamos morrer!
— Aposto que ela é venenosa — P segredou, acompanhando-me até a cozinha. — Se ela cair no tapete será o fim, nunca mais a encontraremos.
— E ela vai se esconder em algum lugar úmido e fazer um monte de bebês e então a casa inteira vai estar infestada, você sabe como as aranhas não morrem, como quando você mata uma, mas as patas continuam se mexendo, não vai adiantar, estamos cercados.
Comecei a andar em círculos. P estava parada na porta, os dedos batendo na parede de maneira nervosa.
— Temos que matá-la — declarou, os ombros tensos.
— Precisamos fugir — dei alguns passos para perto da porta da cozinha, encarando a sala que parecia três vezes maior com aquela aranha assustadora lá. — Você pode vir comigo.
— Não posso deixar meu piano — P murmurou, os olhos cerrados enquanto olhava o instrumento. — Droga, mal consigo vê-la daqui.
Ficamos em silêncio por um bom tempo, parados entre a cozinha e a sala, observando atentamente o piano, procurando qualquer pista de que a aranha pudesse atacar. Tentando controlar nossas respirações, enfrentar nossos medos...
Mas arrepios me subiam pela espinha apenas em pensar no bicho, aquelas patinhas caminhando pelo meu corpo, seu veneno circulando no meu sangue e amolecendo meus membros. Isso é uma coisa real, o afilhado do irmão do vizinho da minha falecida tia-avó teve um amigo cuja namorada do primo morreu com uma picada de aranha.
— Vou preparar um suco — ela disse de repente, indo até a geladeira para retirar uma jarra de água. — Obrigada por ficar comigo até agora — P apontou ao olhar para o relógio na parede, já passava das oito.
— No entanto, ainda não pensamos em uma solução — murmurei deslocado.
— Sim, e eu logo vou precisar ir ao banheiro — despejou um pó roxo na água. — Eu ligaria para alguém, mas meu celular ficou no quarto.
— O meu está em casa — olhei sonhador na direção da janela, seria fácil pulá-la, ir até minha casa, pegar o celular e chamar ajudar, mas sabia que não teria coragem, havia muito mato lá fora e estava escuro o suficiente para que eu não enxergasse caso outras aranhas tentassem me atacar. — Podemos tentar pegar o seu.
— E se for uma aranha saltadora? Ela pode muito bem pular em nós quando estivermos subindo as escadas — bateu os dedos na mesa, tentando pensar em algo. — Eu não perguntei, gosta de suco de jabuticaba?
— Adoro — sorri amarelo, sem coragem de dizer que só tomava suco de laranja. — O que sugere que façamos?
P voltou para sua posição na porta, entregando-me um copo cheio do suco de jabuticaba.
— Eu não sei — disse desolada, um tom inseguro na voz, bem diferente da mulher com quem conversei nas últimas semanas. — Não era para ser assim, é tudo culpa de Shawn.
— Que seria? — tomei um longo gole do suco, apreciando seu sabor marcante e doce, até que não era tão ruim.
— Meu ex, ele se dizia um influencer, gostava de pregar peças e um dia colocou uma aranha no meu rosto enquanto eu estava dormindo por views.
Arregalei os olhos, sem conseguir imaginar que tipo de pessoa faria isso com alguém que diz amar.
— Você terminou com ele, certo?
— Terminei! Óbvio que terminei — tomou um longo gole de suco antes de confessar. — Não, ficamos mais um ano juntos, até ele me expulsar de casa, sai apenas com a roupa do corpo, uma lasanha congelada e com fobia de aranhas.
Coloquei a mão em seu ombro, resistindo a vontade de puxá-la para um abraço. Não imaginava P passando por isso.
— E qual é a sua história? — sorriu maliciosa, concentrando seus olhos castanhos em mim.
— O normal, eu acho, nunca gostei de aranhas — encolhi os ombros, esse não era um assunto que costumava compartilhar, sempre sentia que as pessoas debochavam de mim, mas P sabia o que era ter fobia de aranhas e tinha compartilhado a história dela comigo, então era justo eu fazer o mesmo. — Aconteceu um acidente marcante quando eu tinha doze — tomei um gole do suco, os olhos ainda focados no piano. — David e eu sempre estivemos competindo, e um dia, no aniversário da vovó, decidimos colher girassóis para ela, David e eu ficamos competindo para ver quem pegaria os maiores, ele era mais alto e forte, então pegou a maioria dos girassóis, mas deixou um deles para trás porque viu uma aranha-de-jardim em cima dele, mas ele não me disse nada, então quando eu fui pegar... Ela me picou.
— Idiota — P murmurou em simpatia, inclinando-se para colocar seu copo vazio no balcão. — Sempre gostei mais dos seus livros.
— Você leu? — sorri animado, olhando ansioso e surpreso para a mulher.
Ela riu, fitando o chão timidamente.
— Sou uma fã na verdade — confessou um sorriso pequeno.
Estava prestes a exclamar minha felicidade com a notícia quando voltei a me lembrar da aranha e do piano.
— Se é uma fã por que queria atrapalhar o meu trabalho?
— Não foi isso que aconteceu, eu achei que era uma coisa nossa, eu tocava, você se irritava e então vinha falar comigo e conversávamos um pouco.
— Isso não faz sentido nenhum — resmunguei irritado.
— Eu sei — resmungou de volta, virando a cabeça para continuar encarando a aranha. — Já pedi desculpas, ok? Pare de escavar o passado, você não é um arqueólogo.
Entrei em conflito sobre deixar P sozinha para lidar com o pequeno demônio na sala como vingança por tocar piano enquanto escrevia de propósito, no entanto, abandonar alguém indefeso na presença de uma aranha é contra os meus princípios.
— Qual seu personagem preferido? — perguntei na tentativa de quebrar o silêncio. — Dos meus livros.
Vi o rosto de P se iluminar e assim iniciamos uma conversa que duraria a noite inteira. Às nove ainda falávamos empolgados sobre meu novo livro, metade da jarra de suco estava vazia e P e eu quase havíamos esquecido da aranha.
— Eu queria colocar um pianista em algum momento — compartilhei timidamente, fazendo uma pausa para mastigar um pedaço do queijo que P nos serviu. — O problema é que que não sei nada sobre pianos.
— Eu posso ajudar! — ela animou-se, balançando as sobrancelhas em sugestão.
— Quer dizer, se eu digo que ele tocou a nota Fá eu tenho que dizer de qual oitava foi? Estou falando isso certo? — ri sem graça, a menção à clave de fá levando nossa atenção de volta para a sala.
P começou a falar sobre o piano e às dez da noite começamos a conversar sobre sua profissão.
— Eu disse que poderia aprender todas as músicas em uma noite, mas mesmo assim ela procurou uma substituta — apontou para uma pequena estrela tatuada perto do pescoço. — No dia seguinte eu cheguei com olheiras e com todas as partituras decoradas, a cara dela foi no chão.
Onze da noite P me revelou o motivo de não se apresentar mais.
— Tendinite — mostrou as articulações dos dedos, movendo as mãos devagar. — Procurei pelo tratamento no começo do ano.
— Dói? — apertei levemente sua palma, era macia e flexível sob o meu toque.
P assentiu.
— Está quase sarando, estou fazendo os exercícios, tomando os relaxantes musculares, vou ficar bem.
— Continua tocando mesmo sentindo dor? — a vi assentir. — Por quê?
— Você morreria se não pudesse escrever?
— Sim — não hesitei em responder.
Exatamente à meia-noite ouvimos um barulho vindo da sala e voltamos a dar as mãos. Estávamos sentados nas cadeiras, nossos corpos debruçados sobre a mesa e lançando olhares temerosos na direção da porta.
— Acha que foi a aranha? — sussurrou.
Assenti positivamente e ficamos parados por algum tempo, buscando ouvir mais alguma coisa.
— Quem vai ir conferir? — P levantou a questão.
Ninguém se candidatou, o que nos levou a esquecer o assunto em prol de falarmos sobre nossas formas preferidas de colar nas provas do ensino médio.
Quando deu uma da manhã a quantidade exorbitante de insetos voando pela janela começou a me irritar.
— Por que você não usa cortinas? — resmunguei, tentando espantar os bichos da fruteira.
— Por que usaria? — sua voz saiu confusa.
— Para os mosquitos não entrarem.
P encolheu os ombros, um sorriso culpado em seu rosto.
— Achei que os sapos cuidariam disso?
— O quê? As estátuas?
— Sapos comem insetos.
— Sapos de verdade — corrigi, sem conseguir acreditar no que estava ouvindo. — É por isso que tem tantas estátuas na porta?
— Eu pensei que funcionava como os espantalhos — explicou como se estivesse genuinamente ofendida por eu não entender seu raciocínio.
Quando o relógio chegou às duas da manhã perguntei se ela não estava com frio.
— Estou bem — respondeu com um bocejo. — Que bom que estamos no verão.
— Época boa para ir à praia — disse sonhador. — Eu amo o mar.
— Já foi em uma praia de nudismo? — P me encarou de cima a baixo, não disfarçando sua malícia. — Sou adepta e garanto que faz maravilhas para a autoestima.
Engasguei com o suco, sentindo meu rosto esquentar de vergonha.
— Pervertida — murmurei com uma risada nasalada.
Às três da manhã...
— E quando acordei estava no telhado do hotel.
— Você está me contando a história de Se Beber Não Case — P riu, batendo levemente no meu ombro.
— Não, aconteceu de verdade, juro.
Quando o relógio chegou às quatro da manhã, P e eu terminamos o suco de jabuticaba e P fez uma nova jarra, dessa vez de laranja.
— Não pode tomar só suco de laranja para sempre — seus lábios se projetaram em um beicinho inconformado. — Uma vez vi na tv um homem que só tomava suco de cenoura e um dia ele ficou laranja e morreu.
— Como aquela menina da Fábrica de Chocolate?
E P assentiu com tanta seriedade que eu acreditei.
Às quatro começamos a falar sobre relacionamentos.
— Não era meu namorado — negou quando perguntei sobre o homem que me atendeu naquele dia.
— O que ele é seu?
— Nada, nunca mais nos encontramos — riu divertida, enchendo seu copo. — E você? Namorando?
— Solteiro — sorri por trás do meu próprio copo.
Às cinco o sol começava a surgir através da serra, o canto suave dos pássaros trazendo uma atmosfera calma para a manhã abafada.
— Qual seu nome mesmo? — lembrei de perguntar depois de passar a noite chamando-a de P.
P sorriu divertida, contemplando por um minuto a vantagem que tinha por eu não saber seu nome.
— Paola — sussurrou como se fosse um grande segredo.
Sorri encantado, Paola combinava com seu cabelo ruivo e esmalte ruído. Paola, repeti mentalmente. Franzi a testa...
— Mas Paola não está entre Pegg e Poliana — lembrei do que ela me disse na primeira vez que perguntei. — Não faz sentido.
— Isso se referia ao meu sobrenome — defendeu-se, tomando o último copo de suco de laranja.
— O quê? Por que eu perguntaria seu sobrenome antes do primeiro nome? Estamos no Brasil, não nos Estados Unidos.
— Você me chamou de senhorita quando perguntou, achei que queria saber meu sobrenome.
Virei a cara em chateação e P... Paola, bateu os dedos no meu braço, indiferente, traçando uma cicatriz causada pelo cachorro de um amigo, seu toque provocou arrepios no meu corpo e me vi me inclinando na direção das mãos ágeis de Paola.
— E qual é o sobrenome? — perguntei apenas para ver o sorriso de Paola se estender para algo perverso.
— Algo entre Pegg e Poliana.
Às seis, Paola adormeceu no meu ombro, cansada demais para se preocupar com a monstruosidade que deveria estar sapateando em seu piano.
Às sete eu também peguei no sono, um braço passado pelos ombros de Paola de forma protetora e o outro servindo como travesseiro, a frágil mesa de vidro e madeira servindo como cama para nossos corpos cansados.
E às oito acordamos com alguém chamando por Paola. Balancei a mulher que dormia em cima de mim, tentando acostumar meus olhos à claridade exagerada da cozinha sem cortinas.
Os olhos de Paola piscaram confusos quando a acordei, um sorriso se abrindo quando me viu. Também sorri, passando a mão por seu rosto carinhosamente, temendo quebrar o momento e me atrevi a colocar uma mecha de cabelo ruivo atrás da sua orelha. Infelizmente alguém interrompeu por mim.
S-U-S-P-I-R-O!
A porta da frente estava aberta e, quando não atendido, o irmão de Paola entrou na cozinha, pigarreando para anunciar sua presença. Virei-me na direção da porta, vendo um homem de uns 30, 40 anos, vestindo roupas sociais e com um saco de pães na mão.
— Ricardo! — Paola gritou animada, correndo na direção do irmão. — Você precisa fazer alguma coisa! É enorme, enorme.
— O que é enorme? — lançou-me um olhar desconfiado.
— Estava nos observando, em cima do piano — apontou na direção da sala.
Lembrando-me da noite anterior, senti calafrios ao pensar na criatura disposta em cima do instrumento.
Ricardo, pareceu entender tudo pelo desespero da irmã, depositando o saco de pães no balcão e indo na direção da sala. Paola e eu observamos tudo da cozinha, de mãos dadas e corações aflitos. O homem foi até o piano, cutucou algumas teclas, deu uma risadinha e voltou para a cozinha.
— E então? — Paola perguntou com ansiedade.
— Você sabe que era um gafanhoto e não uma aranha, certo? — levantou uma sobrancelha duvidoso. — Já estava morto inclusive, fá-lecido... Entenderam? Por que ele estava na clave de fá...
— Um gafanhoto? — balbuciou sem acreditar, virando-se para me encarar. — Por que não disse que era um grilo? — desferiu um tapa no meu ombro.
— Eu tenho miopia! Acreditei em você quando disse que era uma aranha — dei alguns passos para evitar seu ataque de tapas. — Por que mentiu?
— Não menti, estava longe e todas aquelas patas me confundiram — cruzou os braços, sua postura perdendo força quando correu em direção ao banheiro, deixando apenas eu e seu irmão na cozinha.
Pigarreei e troquei o peso de um pé para o outro, desconfortável com o silêncio que se seguiu sem Paola por perto, lembro de dar alguns passos para trás, ansioso para sair dali e voltar à segurança do meu lar, mas Ricardo tinha outros planos, agarrando-me pela blusa, ele me levou até a mesa e insistiu que eu tomasse o café com ele e Paola. Não pude recusar.
Semanas depois o incidente da aranha foi esquecido. Era nossa última noite nas casas que alugamos, no dia seguinte sairíamos cedo para retornamos as nossas vidas normais na cidade grande. Eu tinha um encontro marcado com a editora durante a tarde do dia seguinte e P retornaria ao seu trabalho de professora de piano na Academia de Canto e Dança da Srta. Cecília.
Estava sendo uma noite abafada, as janelas abertas não suprindo minha necessidade de tomar meu suco de laranja como se fosse água. Olhei para Paola, concentrada no piano, os dedos traçando a melodia suave de Beethoven's Silence, parando de vez em quando para exercitar os músculos das mãos e beber seu suco de jabuticaba. Já eu estava deitado no sofá, o notebook repousando no meu peito enquanto digitava as últimas palavras de BlackBear, segundo livro de uma trilogia de horror.
P era uma maldita, tocadora de piano e músicas estranhas. E eu aprendi que não me importava com as músicas dela, não quando elas se fundiam tão perfeitamente com as minhas palavras. E Paola era gentil o suficiente para tocar em seu piano a trilha sonora certa para a minha cena.
Era nossa última noite nessa casa azul celeste, com um piano de mogno e sucos gelados, por sorte, Paola não hesitou em informar que viria jantar na minha casa na cidade na terça-feira.
— Que bom que essa não é a última vez que você vai tocar enquanto tento escrever — sorri para a mulher, assistindo o movimento do seu cabelo conforme ela se movia no ritmo da música.
— Que bom que sua história não termina aqui — retrucou com um sorriso esperto no rosto, olhando-me por cima do ombro, deixando propositalmente a manga da blusa cair.
S-U-S-P-I-R-O!
Eu estava apaixonado por Paola Entre Pegg e Poliana.
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