A Farsa do Leite
Não há nada mais belo do que a reunião de indivíduos completamente diferentes com o mesmo propósito. A união faz a força, as pessoas gostam de dizer, e para mim não há frase mais verdadeira. O trabalho de pessoas com origens, vidas, pensamentos e experiências diferentes, unidos com um mesmo objetivo, trabalhando juntos, apesar de todos os obstáculos, para construírem algo maior do que eles mesmos.
Se me permitem, devo apresentar a vocês, Beth, Sky, Tatty, sr. Bonner, Frank e Poe. Pessoas diferentes, é verdade, mas que todas as noites de segunda-feira se reúnem com um objetivo em comum, uma paixão proibida. Não é para sentarem em uma cafeteria e tomarem um copo de leite depois de um dia cansativo como suas famílias pensam, o que esses indivíduos fazem na verdade, é escrever.
Escondidos em uma cafeteria, eles têm uma hora por semana para escreverem. Uma hora de liberdade para sonharem, para viverem com a cabeça nas nuvens, verdadeiros nefelibatas, temendo serem descobertos pela esposa ou pelos pais ou pelos filhos ou pelo marido...
Ser escritor é uma profissão difícil. Provavelmente não como difícil ser um médico ou um bombeiro, ou qualquer outra profissão por aí. Ser escritor é difícil porque escritores são subestimados. Ser escritor é difícil porque, enquanto um médico válida seu trabalho através de operações e diagnósticos bem-sucedidos, um escritor não tem qualquer comprovação de que está fazendo um bom trabalho. Subestimados porque as pessoas pegam seu trabalho, olham para aquele monte de palavras e dizem: Eu também posso fazer isso, qualquer um pode fazer isso.
Ser escritor é difícil, porque antes de ser um Rob Gordon ou um Fábio M. Barreto, as pessoas vão olhar seu trabalho e mandar que faça algo útil com seu tempo. É difícil porque palavras não pagam as contas, frases não oferecem plano de saúde e parágrafos não podem nos alimentar.
O que um escritor pode oferecer ao mundo não é uma descoberta fantástica, a cura de alguma doença ou uma invenção revolucionária. Um escritor parte e deixa palavras, palavras que ficam marcadas em algum momento do tempo, mas facilmente podem se perder na história.
Beth é uma escritora. Suas narrações contêm frases longas e descrições detalhadas dos lugares, Beth gosta de escrever mistérios que levem seu leitor a um mundo que ele jamais pensou que exploraria e a descobrir entre seus anagramas pouco discretos e pistas deixadas ao longo da história, o verdadeiro culpado por um mal que acompanha os personagens muito antes da primeira página. Antes de ser escritora, Beth é uma estudante de medicina com apenas 19 anos, filha de uma família com um impecável histórico de pessoas bem-sucedidas na vida profissional e no meio acadêmico. Ser escritora é impossível para Beth, porque ser escritora é difícil e seus pais acham que a escrita pode tirar da família todo prestígio que adquiriram ao longo de 60 anos. As ideias de Beth são rabiscadas em um pequeno bloco de notas de folhas pardas, com caneta preta e às vezes vermelha, um pequeno bloco que tem a capa branca cheia de espirais azuis turquesas, um bloco que Beth guarda na última gaveta de seu guarda-roupa, entre meias macias e suéteres de Natal, tudo feito de lã, protegendo seu pequeno pedaço de liberdade. Ser escritora não vai render um diploma, uma vida financeira estável ou orgulho a sua família, mas só a entidade suprema que nos observa do céu, sabe o que Beth não daria para largar tudo e apenas viver da escrita.
Sky é um escritor. Com apenas 20 anos tem seus romances lidos por outros grandes escritores, ou seja, seus pais. Sua narração é curta. Direta. Seca. Não restam incertezas, os pais de Sky odeiam seus livros. Sky escreve. Escreve comédia e tragédia. Seu vocabulário é vasto, contudo, aquilo que ele coloca em uma tela de Word é comedido. Ele esconde seus textos dos olhares alheios. Seus pais são intrépidos ao afirmarem que o primogênito não tem qualquer aptidão para escrever. Sky sente-se mascavado e suas palavras só voltam a ser escritas quando se vê pertencente a um grupo de escrivães inortodoxos, que veem sua obra com exalçamento.
Tatty é uma escritora. Apaixonada por romances, acredita que todos podem encontrar sua cara-metade um dia. Deu a louca quando percebeu a sinuca de bico em que se meteu, seu atual marido não é a tampa da sua panela. Se casou aos 29 pensando que tudo seria um mar de rosas, hoje, com 37, se mancou que o marido não passa de um pé no saco, que não quer que ela escreva temendo que supere sua carreira. Tatty guardou suas expressões populares e ideias de romances eróticos para se tornar uma dona de casa, cuidando do marido que está cagando e andando pra ela. As únicas coisas que escreve são pequenas notas que deixa nas lancheiras dos filhos, de vez em quando rabisca em um guardanapo começos de livros que nunca serão escritos, guardados em uma lata de achocolatado no fundo do armário ou no fundo do baú da sua mente. Existe um único lugar onde Tatty pode escrever, onde ela arrebenta a boca do balão, abotoa o paletó e trabalha que nem gente grande, é na cafeteria dos sonhos, o clube dos nefelibatas.
Sr. Bonner é um escritor
Sua paixão sempre foi a poesia
Que falasse sobre o amor
E curasse sua melancolia
Bonner tem apenas 42 anos
Aposentou o velho teclado
Para se dedicar a sua família
Trabalhando como advogado
A esposa é muito brava
Nunca gostou de poema
Ordenou o fim da poesia
E Bonner se viu em um dilema
Trabalhando noite e dia
Não tem tempo para escrita
Os filhos pedem companhia
E a esposa só lhe irrita
O único momento onde é livre
Para criar e contar suas poesias
São as segundas na cafeteria
Onde todos vivem de fantasias
Frank é um escritor. Sua filha é paranoica e um dia leu Dom Quixote, depois disso nunca mais deixou o pai ler ou escrever, temendo que ele enlouquecesse e também saísse pelo mundo em busca de ser um cavaleiro. Frank é um velho senhor de 55 anos, sempre gostou de comédia e contos infantis. Diabético e muito teimoso, vive com a filha para prevenir que se envenene. Para Frank escrever é um dos maiores prazeres da vida, tão bom quanto uma torta de cereja com açúcar derretida por cima. Agora que sua filha lhe tomou as canetas e os livros, Frank forma na sopa de letrinhas títulos de obras que ele nunca chegou a terminar. Sua filha é uma ditadorazinha, roubando os lápis que ele roubou das crianças, Frank arquiteta toda semana um novo plano para continuar a escrever, nenhum deles dá certo. Nenhum exceto o da Farsa do Leite. Toda segunda-feira Frank diz a sua filha que vai passar na cafeteria para tomar um copo de leite, mas o que ele faz de verdade é sentar e escrever, contar suas histórias ao mundo, é isso que faz a vida de Frank ser tão doce quanto bolo de aniversário coberto com chantilly.
Poe se lembra de gostar de ouvir histórias quando era pequeno, mas antes que pudesse aprender a ler para escrever suas próprias histórias a vida aconteceu. Poe pode escrever, mas não sabe como. Aos 60 anos de idade, tudo o que Poe pode fazer é abrir as portas de sua humilde cafeteria para que escritores adentrem as paredes pintadas de azul e criem, trabalhem, sejam livres do que foi estabelecido pela vida. Poe tem muitas ideias e muita vontade, só não sabe como juntar tantas letras para que formem palavras, e palavras que formem frases, e frases que formem livros. Poe não é um escritor, mas ele conta histórias tão bem quanto um.
É nessa cafeteria que vidas se encontram e a história é feita, enquanto copos de leite são esquecidos e seus devidos familiares os esperam em casa, pessoas tão diferentes escrevem. Pessoas que encontraram algo em comum, algo que podem fazer juntas e conversarem sobre, é quente, é amizade, é amor. Um lugar onde não podem ser subestimados, julgados ou intimidados, corações se encontram para colocarem em palavras o que precisa ser contado. Um sopro de liberdade, um lugar de magia e criação, um refúgio para todos aqueles proibidos de exercitarem suas paixões. Um lugar onde a vida ainda não as alcançou, onde ser escritor é fácil e ser leitor é a lei, um lugar onde escrever é libertador.
O único problema é que o leite sempre esfria e o tempo passa.
Até a próxima segunda!
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