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Desumanização

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LUCILLE

Eu detesto ficar de babá, mas parece que vamos ficar nos revezando nessa posição até que o mais novo soldado favoritinho de Aro se encaixe e encontre seu lugar feliz.

Faz quase uma semana que o Cullen está no castelo, ou seja, uma semana que ele não se alimenta — o fizemos esperar até que seus olhos perdessem aquela cor ridícula de mijo. Agora, seus olhos estão escuros e suas olheiras estão começando a aparecer, mas, ainda assim, ele não está nem de perto sentindo a mesma sede que eu. Estou faminta, ansiosa e quase desesperada para a chegada de Heidi com a sua pescada, mas, mesmo assim, tenho que prestar atenção no novato para o caso de ele irritar alguém com fome e acabar sendo morto, o que eu duvido muito que vá acontecer, já que ele mostrou assim que chegou que não é pouca merda.

Me disseram que estou aqui para proteger o Cullen, no entanto, acredito que estou aqui para proteger os outros dele.

Aro adora que eu me exiba, e devo admitir que me sinto poderosa também de ter sido a única capaz de derrubá-lo. O soldado é um bom oponente, não dá para se negar. Se não fosse por sua arrogância, talvez ele até conseguisse me bater, só que perdeu o ritmo e a oportunidade.

Ele virou assunto em todas as horas agora. Estão impressionados com suas cicatrizes e os mais tolos e jovens querem saber de suas histórias de guerra como se ele fosse um modelo a ser seguido. Eu não estou tão curiosa sobre seu passado e nem preciso ficar, porque Alec traz os contos para mim como um passarinho fofoqueiro. O ponto é que não sei dizer se são verdade ou invenção, considerando que ele não abre a boca para conversar com uma única alma penada.

O Cullen é perigoso e gosta de bancar o misterioso,  não é a cara dele sair por aí se gabando de suas vitórias anteriores. Nota-se toda sua energia reservada enquanto ele se mantém encostado em uma parede do outro lado do Salão com os braços cruzados e olhar aguçado, julgando tudo e todos ao seu redor. Estou quase me acostumando com sua cara amarrada, uma vez que ele não esboça nenhuma outra. Ele é o único aqui que se recusa a usar sua capa, então só está com uma camisa branca, calças sociais e sapatos polidos.

É patético. E arrogante.

Ouvimos o rebanho se aproximando pelo corredor, há cliques de câmeras e risadas descontraídas, os turistas nem imaginam o quão perto da morte estão.

Ouvi dizer que o Cullen não se alimenta dignamente de sangue humano há pouco mais de cinquenta anos. Quase tenho pena.

Tem doze vampiros com fome aqui e nenhum disposto a dividir as suas presas, espero que o soldado não seja guloso demais, ou terei que arrancar seus membros.

— Interessada na vista, querida?— senti a aproximação de Demitri do meu ouvido e nenhuma necessidade de olhar em sua direção quando se postou do meu lado sem ser convidado. Continuo encarando o loiro estranho que olha para tudo sem deixar que eu saiba o que está pensando.

— Certamente mais do que estou interessada em você.

— Não precisa ser tão meiga, Lucille.— ele debocha e me controlo para não revirar os olhos.— Ele tem encantado todas as moças, mas, convenhamos, pensei que você tinha padrões mais altos.— mesmo que o novato não tivesse uma audição tão perfeita quanto a nossa, ele poderia ouvir as bobagens que Demitri diz. Ele nunca soube controlar o tom. Isso é outra coisa que me irrita neste caçador.

— Ter passado tempo demais com você prova o contrário.— digo sem deixar passar nenhuma emoção e me afasto, indo em direção do Cullen. Espero que Demitri se dê conta de que nossa brincadeirinha chegou ao seu previsível fim antes que eu perca minha paciência com sua insistência e acabe lhe arrancando a cabeça e a atirando no fogo.

Aro não gostaria muito disso.

O novato olha para mim e fica assim, sem piscar uma vez que seja. Estou acostumada. Paro a um passo de distância dele.

— Por que parou de se alimentar de sangue humano?— pergunto, direta e reta. Não temos muito tempo para essa conversa, suas bolsas de sangue estão a caminho.

— Uau. Você fala.— ele diz inexpressivo e com claro deboche.

— E você deve responder quando eu lhe fizer uma pergunta.

O loiro olhou no fundo dos meus olhos e passou a língua na bochecha, obviamente irritado. Querendo ou não, não sou um outro soldado qualquer que pode simplesmente ignorar. Ele deve me obedecer. Deve responder a mim.

— Sou empata.— ele ergue o queixo— Não era divertido sentir a angústia dos outros à beira da morte sempre que me alimentava. Tem outro meio de viver, mas os animais também sentem medo.

Cerro os olhos pensativa.

— Isso explica porque não fica me assediando pelos corredores como um cãozinho, desesperado pelo seu dom de volta.— concluo.— Então você prefere ficar sem? Sem o seu dom?

O Cullen volta seus olhos escuros para a porta e o Salão transborda de expectativa.

— Não sei ainda.— ele murmura, e o resultado é o mesmo que teria se ele tivesse falado em voz alta.

As grandes portas se abrem. Heidi, aquela linda vampira de pele azeitonada e tranças brancas, guia os carneirinhos com um grande sorriso no rosto. São cheiros tão doces que eu mesma mal consigo me controlar. As nossas presas parecem confusas com a quantidade de seres majestosos que as encaram feito lunáticos.

— E aqui..— Heidi abre os braços e se vira para os pobres humanos girando sobre seus saltos altos, gosta de ser dramática.— É o fim do seu passeio mortal.— ela se curva e Alec entra em cena, paralisando a espécie inferior com seu dom. Os olhos humanos, de tantas tonalidades diferentes, ficaram acizentados e eles cambalearam feito zumbis.

Eles não vão sentir nada.

Nós atacamos. Sou uma das primeiras a me alimentar, tendo que empurrar um colega de trabalho para o lado para conseguir ficar com o maior homem presente. Eu estava faminta e dilacerei a garganta do homem em poucos segundos. Mal pude aproveitar o deleite do calor se espalhando pelo meu corpo quando o dele ficou mole nos meus braços. Ele não emitiu nada além de um gemido, soltando o seu último suspiro. Seu coração não demorou a parar de bater, considerando que o esmaguei ao apertar suas costelas, louca pelo frenesi.

Há muito tempo perdi a humanidade que havia em mim, se é que um dia eu tive alguma, não me lembro. Não sinto mais nada com a morte. Ela não me assusta e eu não a repudio. Eu sou um monstro e isso não me incomoda.

Matei outro homem e deixei seu corpo dissecado despencar aos meus pés como se ele fosse um saco de lixo, seu pescoço quebrado o deixava em uma posição quase cômica. Enchi os meus inúteis pulmões de ar, o doce aroma me fez cócegas enquanto mais corpos caíam ao meu redor e sangue escorria de minha boca. Olhei ao redor passando a língua nos lábios, muitos dos meus estavam curvados sobre suas presas, aproveitando a refeição calmamente. Mas eu não vi o soldado participando.

Quando olhei por cima do ombro, lá estava ele, no lugar onde deixei, de costas para tudo, tenso e com as mãos na parede. Não entendi porque estava se segurando. Vi como ele tremia de desejo e a forma que seus dedos se afundavam na parede de pedra até criarem buracos. Agarrei o braço de uma humana qualquer e a arrastei comigo até ele.

— Vire-se.— falei. Ele não virou, ficou imóvel como uma das esculturas do museu— Vire-se.— ordenei, impaciente.

Jasper tirou as mãos da parede danificada, cerrou os punhos e se virou para mim. Ele não queria sentir o cheiro da mulher nos meus braços, não queria ver o massacre que acontecia nas minhas costas, mas era impossível ignorar.

— Não tem que sentir a angústia deles agora.— empurro a mulher para ele e o loiro a abraça, virando o rosto. Franzo a testa, começando a me irritar com sua falta de atitude.— Vai morrer de fome?

— Só porque estou sem meu dom, não quer dizer que eu não sinto.— ele rosnou entre dentes e largou a mulher cambaleante que caiu no chão. Seus olhos se cravaram nos meus, uma raiva fulminante e encandescente. Ele parecia prestes a me matar.

Uau, que lavagem cerebral o doutor Carlisle é capaz!

— Está pensando demais.— digo.

— E vocês, de menos.— ele retruca rispidamente.— Eles são alguma coisa, são pessoas— ele rosna, mas posso ver seu desejo, a forma como seus olhos o traem, indo com expectativa para a mulher que deixou de lado com tamanha misericórdia. Eu sorrio e me aproximo mais dele. O suficiente para que possa tocá-lo sem esticar os braços, o suficiente para que nossos peitos se roçem.

— E você...— passo a mão delicadamente pelo seu rosto lindo e simétrico. Ele é perfeito por fora. Muito, muito perfeito. Seu olhar é de uma criança perdida, ele precisa que alguém o guie. Seguro seu queixo com força e o obrigo a se inclinar para mais perto de mim— você, meu amor, é um vampiro. Aja como tal.

Ele quer me matar. Ele quer matar a mulher indefesa ao nosso lado. Ele não quer ser o que é.

— Seu papai não vai ter que saber.— sussurro e agarro sua nuca, o beijando. Quero que ele sinta o gosto do sangue na minha boca, quero que ele se solte.

Funciona imediatamente, Jasper me agarra e eu quase me convenço de que é a mim que ele quer com tanto desejo conforme me aperta contra si. Nosso beijo é agressivo, rápido. Ele junta nossos corpos como se eu lhe pertencesse e limpa todo o vestígio de sangue dos meus lábios. Fico um pouco desconcertada.

Só estou provando que ele é um animal, me lembro.

O afasto e tenho de segurá-lo contra a parede. O loiro ficou ofegante como se tivesse corrido uma maratona. Seu olhar está vidrado e voilá!

Ele vai se servir, porque é isso que a gente faz. Nós matamos para saciar nossa sede. Nós somos malditos demônios egoístas.

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