Delírios
Créditos:
Co-autor: DAgustTwoProjetc
Avaliação: autoraacucarmascavo
Capistas: @lili_jun
Beta: yeonjunrockeiro
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A chuva do lado de fora varria os ladrilhos da casa velha. Do lado de dentro, era possível escutar os vidros da janela vibrarem com a ventania externa, a pouca iluminação, vinda apenas da lareira acesa, deixava o rosto do ômega iluminado e destacado, e as chamas vivas estalavam à medida em que o fogo consumia a madeira.
Min Yoongi estava quieto e em seus lábios repousava um cigarro de filtro branco, mau costume que pegou após tornar-se sozinho. A guerra havia o levado à beira da solidão, seu casamento havia sido cancelado assim que o final do conflito foi declarado.
Mas claro, isso não era culpa sua, e sim do maldito destino. A perda de seu marido o levou a ter costumes detestáveis, como passar noites em claro, não sair nem sequer na varanda para tomar sol ou limpar a própria casa. O destino havia levado tudo, desde seu sorriso gengival, até mesmo sua vontade de viver.
Em seus dias triviais, Min Yoongi passava sua vida pintando quadros ou fazendo esculturas para se manter a maior parte do tempo ocupado. Suas idas ao médico diminuíram bastante e o consumo de álcool também, levando-o a substituí-lo por remédios por conta de sua insônia.
Ele mal se mantinha em pé naquela noite de pouca lua. Mas poucos dias antes, Yoongi ganhou uma companhia, um felino chamado “Refúgio”, e o bichano era um dos fiéis aliados do Min.
— Hoje teremos sardinha — disse, olhando para o gato, que se limpava com a língua áspera.
O nome “Refúgio” foi dado ao pequeno quando o dono se encontrava escondido dentro do guarda-roupa velho do quarto, ele estava caindo aos pedaços, enquanto abraçava fortemente o tecido do uniforme de seu marido. O cheiro leve que havia sobrado era fortemente fungado para que pudesse fixar a memória do outro.
E foi então que o felino empurrou a porta do móvel para abri-lo e ficou entre as pernas do ômega, tentando chamar sua atenção com miados finos e insistentes. Yoongi abraçou o animal, enquanto tentava parar de chorar, e aquela foi a última vez em que conseguiu deixar o aperto transbordar de seu coração.
Após colocar em uma tigela no chão um pouco de sardinha para o gatinho, o ômega acendeu algumas velas, espalhando-as pelo cômodo onde era seu "ateliê", antes de tentar esculpir em um mármore que conseguiu comprar com a indenização do governo pela sua perda.
Min Yoongi iria se casar duas semanas após a guerra, foi uma promessa feita a Jung Hoseok, este que morreu sem poder cumpri-la. Por conta dessa fatalidade, Yoongi não ganhou o sobrenome do alfa, nem mesmo conseguiu ter filhos antes de deixá-lo ir lutar pelo país. Ele não tinha nada além da lembrança.
Colocando-se na frente do mármore com suas ferramentas de escultor, ele pegou a garrafa de vinho, servindo-se diretamente do gargalo em goles exagerados, antes de limpar os lábios com as costas da mão e então deixar o recipiente em um banquinho por perto.
Agora segurava os instrumentos para iniciar a arte.
Seus olhos tornaram-se concentrados naquele mármore branco e apesar das poucas habilidades, Yoongi se atreveu ao máximo e deixou que suas emoções se transferissem para aquela pedra gélida. À medida que conseguia tirar uma lasca, ele mordiscava os lábios, era uma tarefa difícil e sua mente estava cheia, assim como a calha da casa velha, que transbordava. Os lumes marejados e sem brilho encaravam o objeto com carinho. Recusando-se a chorar, piscou diversas vezes para que suas lágrimas retornassem ao canal lacrimal.
Aos poucos a escultura tomava forma e ainda que sendo um trabalho considerado delicado, o Min desferiu toda a sua angústia com o martelo, que batia sem parar, ferindo o bloco, deixando ressoar os sentimentos ali postos e o coração que bombeava sangue, enquanto o queixo se retraía tentando segurar toda a dor. Mordeu fortemente o lábio, logo o gosto metálico invadiu o paladar, mas não era a primeira vez que se machucava sem querer assim. Respirando fundo e sorrindo falho, a garrafa de vinho foi pega novamente e mais goles foram dados, e rapidamente um caminho de vinho riscava o canto da boca, descendo pelo queixo e seguindo até pingar no assoalho.
Após esvaziar o recipiente, ele voou em direção a parede, partindo-se em vários pedaços. Yoongi limpou os lábios, dessa vez, sentiu uma raiva enorme dentro de si. A culpa por não conseguir formar uma família e por não conseguir impedir que seu marido morresse o consumiu. Seus olhos transbordaram em lágrimas e naquele instante não poderia fazer nada além de continuar esculpindo insistentemente, martelando e retirando pedaços para criar formas.
Enquanto Yoongi insistia nesse trabalho, Refúgio encarava o tutor, seus mirantes amarelos vidrados nas costas dele e apesar de estar ali, o gatinho também encarava outra coisa presente, fitava uma figura translúcida em pé ao lado do outro. Ela era maior que o ômega, mas não parecia fazer mal ao mais baixo. O espírito ficava olhando o Min com um amor incondicional, porém seu plano astral não lhe permitia fazer muita coisa, já que tudo que tocava passava por si.
— Eu deveria ter insistido mais. — A voz embargada e embriagada o fazia suspirar em meio as pancadas desferidas na pedra. — Esse maldito destino. — Arfou, olhando para cima.
As velas espalhadas eram pequenas, a iluminação era pouca e a chuva incessante do lado de fora fazia o cômodo ficar gélido. Min Yoongi trabalhava duro na escultura, cada palavra que saía de seus lábios era sucedida por um suspiro. Ele queria se recompor e parar de chorar, mas mal conseguia se manter sóbrio.
Aos poucos as ceras iam se apagando uma por uma ao redor do escultor, restando, assim, apenas a lareira que queimava gradativamente a madeira. O Min sentiu seu pulso doer, pois era óbvio que seu corpo pedia por descanso, já que não conseguia nem mais segurar o martelo.
Assim que se deu conta, a estátua estava pronta; o rosto que era tão familiar estava ali, demonstrando o melhor sorriso possível, porém, os pequenos olhos não tinham vida, em contrapartida, a expressão facial parecia tão real quanto poderia imaginar.
Talvez por conta do álcool em seu corpo, Yoongi não se conteve em abraçar a obra que tinha braços e mãos bem detalhadas, até mesmo as veias saltadas dos punhos eram visíveis, tudo parecia tão real quanto um ser vivo.
— Querido — disse, sorrindo enquanto abraçava o pescoço do objeto.
A temperatura gelada fez Min Yoongi correr até o guarda-roupa e tirar de lá um sobretudo, retornando para o cômodo pisando em cacos, porém isso não o fez parar. Cobriu o corpo da obra, que era maior que si caso tivesse sido retratada em pé. Ele era grande e as costas largas lhe eram familiares. Ele havia retratado seu marido naquele mármore. O sorriso, os lumes pequenos, as bochechas grandinhas, até mesmo a textura do cabelo eram idênticos. O artista havia feito sua saudade se transformar em uma arte, sem vida e sem sentimentos.
— Meu querido alfa… — disse, ajeitando o sobretudo no corpo gélido. — Você está como da primeira vez em que o vi, e pensar que eu o pintei em uma tela semi-nu — falou, com as bochechas rosadas. — Foi nosso primeiro encontro e foi quando nos apaixonamos perdidamente.
As lembranças eram fortes e o trabalhador podia escutar a risada baixa do alfa, a respiração quente que batia em seu rosto, era tudo tão real quanto o barulho dos pingos de chuva.
— Você está tão lindo — elogiou, acariciando a face de mármore. — Dessa vez não te deixarei ir — avisou, olhando-o sério. — Não iremos nos separar nunca mais — afirmava mais para si do que para o mármore.
Mesmo com a visão turva, Yoongi sorria, seus lábios estavam trêmulos, seus olhos gotejavam à medida que ele abria sua boca para falar algo. Enquanto isso, Refúgio o encarava, o felino estava pronto para intervir naquele coração que insistia em se afogar em lágrimas. O miado que se aproximou ainda mais do ômega fez a atenção dele ser voltada ao gatinho que passava entre suas pernas procurando por mais contato.
— Calma, Refúgio, esse é o seu dono também, ele se chama Jung Hoseok — disse, pegando-o no colo e mostrando a face feita de mármore, porém o escultor não conseguia ver uma estátua, tudo o que enxergava era seu marido, que o encarava calado, com a expressão travada em um sorriso.
O trovoar que ecoou por longas distâncias fez com que o bichano se arrepiasse, era tão assustador que dava para ouvir o coração batendo mais rápido.
— Marido, veja, nosso gatinho está assustado — disse, acariciando o animal, enquanto se sentava no banquinho que antes apoiava a garrafa de vinho. — Ainda bem que estamos protegidos do lado de dentro — comentou, sorrindo.
O animalzinho estava quieto, queria ajudar Yoongi, mas não sabia como fazer isso, já que a insistência em conversar com um pedaço de mármore parecia impossível de se impedir. Enquanto a voz do homem era escutada pela estátua gélida, ele deixava seu coração falar e à medida que colocava mais palavras para fora, um conforto enorme tomava conta de si.
— Será que podemos nos casar, marido? — perguntou, fechando os lábios. A iluminação estava pouca e antes que pudesse falar algo mais, o rosto de mármore a sua frente passou a derramar lágrimas sem parar, como se chorasse.
Yoongi colocou o gato no chão, pronto para enxugar os olhos molhados de Hoseok, entretanto, parecia impossível impedir que as gotas rolassem pela face, mesmo as enxugando com o pano fino de sua camiseta.
— Por favor, não chore — pediu com a voz embargada. — Eu estou aqui — dizia. — Não está sozinho — falou, rodeando os braços pelos ombros alheios em um abraço forte que confortasse ambos.
Naquele momento, os olhos de Yoongi ficaram fixos no fogo pequeno da lareira e antes que pudesse falar mais alguma coisa, um pingo caiu no topo de sua cabeça, o fazendo piscar diversas vezes. O abraço de antes foi separado, agora encarava a estátua e apesar da semelhança, ele notou que tudo não havia passado de um blefe. Talvez o excesso de álcool em seu corpo havia o feito delirar ao ponto de conversar com Jung Hoseok.
— Tsc… — Com um sorriso mínimo, Yoongi passou a mão no rosto antes de respirar fundo. — Obrigado— agradeceu em uma reverência para a estátua. — Eu sei o meu lugar agora — disse, ainda curvado. — Obrigado, Jung Hoseok, por me mostrar o caminho. — Seus olhos não choravam mais, e o gatinho olhava para o ômega sem entender o que se passava ali, entretanto, ainda enxergava a sombra abraçando Yoongi.
Aproximou-se e encarou seu dono, o animal foi pego no colo e nas pontas dos pés feridos foram para o lado de fora da casa. A chuva havia cessado, o cheiro forte de terra molhada trazia uma enorme vontade de rir alto para o ômega. Respirando fundo e admirando o nascer do sol, o Min estava pronto para que suas lembranças partissem, seu coração não estava tão pesado quanto antes e bem, ele não estava tão sozinho quanto pensava, afinal, Refúgio era seu amparo.
O destino é como um trem na contramão, não tem tempo e nem parada certa, e tudo o que podemos dizer é que Min Yoongi estava pronto para reviver, mesmo que seu coração chorasse novamente outro dia. O ômega acreditava que seu marido estava torcendo por si e ele não estava enganado, Jung Hoseok estava em um plano astral diferente dele, mas nunca parou de cuidar de seu amor, mesmo que para isso tivesse que achar um confidente felino para o trabalho…
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