6. I hit the bottle, you hit the gas
A noite passou lenta. Eu encarava a parede, pensando no que tinha acontecido, pensando no possível risco que eu estava tomando. Eu ouvia a respiração do homem na cama ao lado de leve. O que eu ainda estava fazendo deitada ali? E se ele estivesse apenas me enganando para me levar ao meu pai? Mas o homem continuava dormindo, com seu sono pesado. Como eu invejava quem conseguia dormir. A insônia me perseguia todas as noites. Com os olhos abertos, encarando a escuridão, eu pensei repetidamente em absolutamente tudo. Era um hábito no mínimo torturante.
O sono veio tarde e foi embora cedo, como uma visita mal agradecida. Eu levantei, andando a passos largos e encostando somente a ponta de meus pés ao chão, silenciosamente. Fui até a minha mochila e a carreguei até o banheiro, fechando a porta com cuidado. Fiz tudo o que tinha para fazer ali e na hora de lavar o rosto, percebi o quão acabada eu estava. Por causa da minha insônia, minhas olheiras sempre existiram, mas elas pareciam dez vezes maiores naquela manhã. Eu estava pálida, com cabelo quebradiço. Acho que as pessoas me acham mais velha por causa dessa aparência desgastada que eu tenho. Passei os dedos entre os fios do meu cabelo, tentando arrumá-lo um pouco. Não funcionou. Quando busquei pelo elástico de dinheiro para prendê-lo dentro da mochila, achei o perfume que Regina me dera. Eu nunca usei nada do tipo, mas algo me fez espirrá-lo no meu pescoço. Eu tossi com a fragrância, era forte demais. Depois esfreguei meu pescoço, mas o cheiro já havia se impregnado. Droga. Então você é patética ao ponto de passar perfume só porque tem um babaca atraente dormindo no quarto ao lado? Estou realmente decepcionada com você, Freedom. Ou Priscilla? Quem é você mesmo?
Lavei meu rosto mais uma vez, tentando parar de me torturar mentalmente e saí do banheiro. Assim que abri a porta, encontrei o homem em pé, ainda sem camisa, ajeitando a calça, com as luzes do quarto acesas.
- Bom dia! - ele falou alegremente
Fiquei pensando se foi ironia ou não.
- O que você faz em pé e movendo esse braço? Volta para a cama - eu ordenei
- Quem é você? Minha mãe? - ele riu
Abaixou-se com dificuldade, tentando ajeitar as botas no pé. Gemeu de dor quando tentou.
- Você quer parar de teimosia? Se você quer se recuperar logo, não mexe a merda do braço! - eu reclamei, mas depois percebi que era estúpido, o ombro era dele, se ele quisesse que cicatrizasse ou não era problema dele
Sentei no chão e calcei também minhas botas. Depois me levantei, colocando a mochila nas costas, suspensa em apenas um ombro e fiz menção de ir à porta.
- Você vai embora? - ele perguntou
Eu dei meia volta e o encarei.
- Por acaso eu tenho a obrigação de te esperar?
- Eu pensei que a gente podia - eu o interrompi
- Qualquer coisa que você tenha pensado, por favor, des-pense. Eu ando sozinha, nunca precisei de ninguém ao meu lado e não é agora que eu vou precisar.
- Calma, eu só ia falar para a gente tomar café da manhã juntos. Panquecas, quem sabe.
- E por quê?
- Porque você me ajudou na noite passada! Eu estaria morto sem você. Acho que poderia te recompensar.
- Com panquecas? Pensei que já tínhamos ficados quites quando eu salvei sua vida porque você salvou a minha.
- Vai dizer que seu estômago não está roncando? Vai dizer que sua boca não encheu de água só de pensar em panquecas?
Eu bufei.
- Ok, você venceu. Eu estarei na minha Chevy. Saio em cinco minutos, você estando lá fora ou não.
Dei meia volta de novo e saí do quarto, andando pelo corredor. Não encontrei a mulher dona da pousada acordada, mas deixei 150 dólares na mesa principal. Eram 140 dólares, mas eu não tinha trocado. E o dinheiro era do homem do clube de strip, então para mim não fazia diferença. Entrei na caminhonete, ainda irritada com o perfume em minha pele. Eu me perguntava por que é que eu estava deixando-o se aproximar. Eu nunca deixava ninguém se aproximar. Ainda mais agora que sou fugitiva. Ou, corrigindo, desaparecida. Mas que mal um café da manhã pode fazer? São só panquecas. Depois cada um segue seu caminho. E eu realmente estava ansiosa e faminta pelas panquecas.
Ele saiu da pousada ainda sem camisa, segurando o ombro ferido. Eu desviei o olhar de seu abdômen, não era muito confortável de se encarar, eu não sabia o porquê. Foi até a sua caminhonete e acelerou, voltando à estrada. Eu o segui. Uns cinco minutos depois, ele ligou a seta para pegar uma saída à direita. Eu fiz o mesmo. Logo avistei uma casa de panquecas bem à minha frente. Só a lembrança do cheiro de panquecas encheu minha boca de água. Estacionamos bem à frente, porém ele demorou mais para sair de seu automóvel. Para meu alívio, quando saiu dele, estava vestindo uma camisa.
Sem dizer uma só palavra, adentramos o estabelecimento, que estava vazio. Era cedo, no máximo umas 7:30 da manhã, então pensei que talvez aparecessem mais clientes mais tarde. Sentamos-nos e logo apareceu uma garçonete.
- Bom dia! Bem-vindos à Casa das Panquecas de Charleston! O que desejam? - ela falou com uma caneta e um bloco de papel na mão
- Qual a especialidade da casa? - ele perguntou
- Nossas panquecas tradicionais ao maple.
- Eu quero essa - ele disse
- Eu também - falei - E um café bem forte.
- Dois cafés - ele completou
- Anotado, volto já com os pedidos!
Eu olhei pela janela, tentando não encará-lo. Olhei para a placa do lugar. "Casa de Panquecas de Charleston".
- Espera - eu comentei - Charleston? Estamos na Virgínia Ocidental?
- Exatamente. Você já saiu do Kentucky há muito tempo, desde a noite passada. Não viu nenhuma placa?
Não respondi, mas não, eu não havia reparado em nenhuma placa pelo caminho. Eu mal acreditava que eu já estava nessa vida de estrada apenas há quatro dias. Eu queria voltar para casa, para Sweetwater, mas eu sabia que eu não tinha mais casa lá.
A garçonete chegou rápido com as panquecas, cortando o silêncio. Ela entregou o café junto e pediu para que nós provássemos para ver se ia precisar de açúcar. Eu assoprei o copo um pouco e dei um gole pequeno. Estava amargo. Mesmo assim, disse a ela que estava ótimo. O homem a minha frente pediu açúcar e ela logo o trouxe.
- Bom apetite! - a garçonete disse, deixando a mesa enquanto eu sorria falsamente
Assim que ela deu as costas, lancei minha mão à minha mochila, pegando a garrafa de uísque e jogando um pouco da bebida em meu café.
Experimentei e decidi que naquele momento sim estava adoçado do jeito que eu queria. Encontrei o homem um pouco espantado à minha frente. Ele riu, quase sem acreditar.
- Você sabe que você está dirigindo, certo? - ele comentou
- Eu apostaria com você que bebo uma garrafa inteira e ainda consigo fazer um quatro perfeito com as pernas, mas seria muita maldade te fazer perder dinheiro assim tão fácil. Agradeça pois estou de bom coração no momento.
Ele riu, chacoalhando a cabeça. Não disse mais nada depois disso. Eu dei um gole no meu café com uísque e comecei a comer as panquecas. Não sei se eram realmente tão boas ou minha fome estava fazendo com que elas ficassem esplêndidas. Enquanto eu saboreava meu prato, reparei que a minha companhia estava enfrentando problemas. Ele tentava cortar as panquecas com a faca na mão esquerda, mas estava fracassando por causa do ombro ferido. Depois tentou usar só o garfo para cortá-las, mas o maple estava escorregadio e dificultava o corte.
Eu, vencida pelo meu incômodo em vê-lo naquela situação, trouxe seu prato mais para o lado de minha mesa e cortei as panquecas para ele rapidamente. Voltei o prato para seu lado da mesa, à frente dele e ele me agradeceu. Eu não respondi.
Comemos e bebemos em silêncio. Ele com seu ombro esquerdo imóvel, eu com meus olhos na estrada. Devia estar tocando alguma musica country no restaurante, mas estava muito baixo para eu identificar qual era.
Assim que terminei meu café da manhã, vi que ainda faltava um pouco para ele terminar. Lancei minhas mãos à mochila, tirando de lá meu maço de cigarro. Pus um entre meus lábios e o homem me repreendeu. Apontou para uma placa na parede do estabelecimento. "Proibido fumar". Aquilo era novidade pra mim, e um pouco de frescura também. Você podia fumar tranquilamente em todos os restaurantes e bares se Sweetwater. Além do mais, aquele lugar estava vazio! Ninguém se incomodaria. Eu rolei os olhos e me levantei contra minha vontade, indo até a porta e finalmente acendendo o cigarro e tragando-o. Confesso que me relaxou, apesar de que acho que a tranquilidade veio mais do fato de estar finalmente sozinha. Eu não era muito de companhias. Enquanto fumava, olhava a estrada. O asfalto é sempre o mesmo em todos os estados?
- Está um belo dia! - o homem chegou ao meu lado e me tirou a paz
Como eu odeio papo furado, ainda mais sobre o tempo ou a beleza do dia.
- Eu vou pagar - eu disse, me preparando para jogar a bituca no chão
- Não precisa. Eu já paguei.
Eu levantei uma de minhas sobrancelhas. Ele não devia ter feito isso, não quero ficar devendo favores a ninguém.
- Eu vi que você pagou pela pousada. Estamos quites agora? Apesar de quê ainda faltam uns cinquenta dólares para os setenta que você pagou por mim, espera que irei te pagar a diferença agora mesmo - ele falou, sacando sua carteira do bolso apenas com a mão direita
- Tanto faz. O dinheiro não era meu.
Ele não comentou o fato de eu ter praticamente confessado que havia roubado o dinheiro. Ah, mas eu venci a aposta na sinuca. No final das contas o dinheiro era meu mesmo.
- Espera, já sei como te pagar!
Ele saiu de perto de mim, entrando na casa de panquecas mais uma vez. Já estava me cansando e o cigarro já estava no fim. Era melhor ele ser rápido. E até que ele foi. Saiu pela porta, trazendo em sua mão uma garrafa cheia de Jack Daniels.
- Percebi que a sua estava abaixo da metade.
Tanta gentileza havia me deixado mais desconfiada ainda. Contava para ele ou não que ele estava comprando bebida alcoólica para uma menor de idade? Ah, deixa pra lá. Aceitei a garrafa e ele mantinha um sorriso na boca. Basta! Já deu.
- Olha aqui, Zach, não é? Eu não sou sua amiguinha, nós não somos íntimos e não temos nenhum tipo de relação. Você me ajudou porque quis. Eu te ajudei porque quis. Agora cada um segue seu caminho, entendido?
- Entendido - seu sorriso se fechou - Mas eu estava no mesmo caminho que você.
- Porque você estava me seguindo, não tente me enganar, não pense que esqueci. Agora chega de palhaçada. Eu vou seguir meu caminho sozinha, você siga o seu. Nem mesmo pense em me seguir de novo.
O sorriso irônico estava de volta aos seus lábios. Era algum tipo de provocação?
Eu rolei os olhos, já com raiva, e andei até minha caminhonete, carregando a garrafa. Ele continuou no mesmo lugar, com o sorriso fixo.
- Acho melhor você dar o fora logo - comentei antes de sentar no banco de motorista
- Por quê?
- Você acabou de comprar bebida alcoólica para uma menor de idade - eu sorri, entrando na Chevy e acelerando
Ele ficou dividido entre duas reações: ficou surpreso, provavelmente pensara que eu era mais velha, e ao mesmo tempo achou a minha fala hilária, já que soltou uma gargalhada. Mas o que importava para mim agora era a estrada, a garrafa cheia de uísque ao meu lado e o dinheiro muito bem ganho dentro do meu bolso. Eu sorri sem razão, quase sem acreditar nas últimas horas. O quão aleatório foi isso tudo? Chegava a me assustar o fato de ter dado tudo certo, apesar de que agora eu tenha que tomar cuidado redobrado. São mais pessoas atrás de mim. Com o passar do tempo, mais caçadores de recompensa verão o anúncio do meu suposto desaparecimento e vão tentar me achar.
Eu olhei para meu retrovisor esquerdo enquanto dirigia e vi uma caminhonete conhecida. Ele realmente não sabia o perigo que estava correndo tentando me seguir, ao mesmo tempo eu era quem desconhecia o perigo de tê-lo logo atrás de mim, tomando nota de cada passo que eu dava. Resolvi encostar um pouco no acostamento e não demorou muito para a caminhonete preta parar logo atrás de mim. Abri a porta, pulando para fora de minha Chevy, sentindo a arma carregada em minha cintura. Joguei o cigarro que eu levava na boca ao chão e pisei em cima dele, esmagando as cinzas, enquanto o homem descia de sua caminhonete.
- Eu estou começando a pensar que talvez você seja surdo. Ou será que não ouviu o que eu disse sobre seguirmos cada um para um lado?
Eu não estava olhando para ele e sim para a estrada, mas eu apostaria minha nova garrafa de uísque no fato dele estar rindo naquele momento. Eu conseguia ouvir o ar de deboche ou seja lá o que fosse passando por seus dentes.
- Agora eu não posso seguir o caminho que eu quero só porque é o caminho que você também está seguindo?
- A história de comprar minha Chevy não me convenceu. E, se for verdade, eu digo de novo: ela não está à venda.
Ele se calou, mas não foi daquele jeito bom de se ouvir. Sabe aquele jeito de se calar por medo ou por perder as palavras? Não foi assim. Ele se calou porque estava segurando a risada. Eu queria é saber o que tinha de tão engraçado nessa história toda. Pra mim, aquela foi a última gota. Tirei a arma da minha cintura, rapidamente, e a apontei a ele. Sua expressão mudou na hora. Levou suas mãos acima da cabeça, mostrando um pouco de surpresa, mas nem um pingo de medo. Acho que a maior expressão que ele soltou na hora foi um gemido de dor por ter levantado o braço com o ombro ainda ferido.
O fato dele não ter medo em seus olhos me deixava com raiva, era como se ele tivesse total segurança de que eu não iria puxar o gatilho.
- O que você vai fazer? Atirar? Me matar? Ter mais um motivo para estar fugindo, seja lá qual for o motivo que te colocou na estrada em primeiro lugar?
Eu não mudei minha expressão. A minha arma continuava apontada a ele. Meu dedo continuava no gatilho.
- A não ser que você esteja fugindo porque matou alguém... Daí eu realmente deveria me preocupar, porque mais uma morte na sua ficha não ia fazer muita diferença. Mas, então, o que você vai fazer? Atirar em mim ou furar meu pneu de novo? Eu sei trocar pneus caso você esteja pensando na última opção.
- Fica quieto - foi tudo o que eu disse, desistindo da minha arma e virando meu corpo para longe da posição de ataque
- Por essa eu realmente não esperava - ele murmurou para si mesmo
- Você fala demais - eu disse, já farta - E, apesar disso, ainda não me falou o mais importante: por que você está querendo se meter comigo?
- A história da Chevy foi verdade...
- Poupe-me - eu o cortei
- Mas - ele continuou - Depois eu percebi que algo em você me instigava, me perturbava. E eu não vou desistir fácil até saber o que é, até saber por que você está fugindo, por que você está sempre em posição de ataque.
- Então isso tudo é porque você é curioso? - eu tive que rir
Ele também riu, mas não do mesmo jeito irônico que eu.
- Você não vai se arrepender se me deixar acompanhar você. Pensa bem, já salvei sua vida.
- É, e acabou com o ombro baleado.
- Já parou para pensar aonde você estaria agora se eu não tivesse aparecido?
Eu estava prestes a ser rude. O que ele queria? Eu já tinha agradecido, eu já tinha tirado aquela merda de bala de dentro da sua ferida com meus próprios dedos! O que ele queria? Que eu ajoelhasse aos seus pés para agradecer? Mas, em um segundo, analisei o quão mal seria deixá-lo me acompanhar. Foi um desses pensamentos rápidos, esses que te fazem mudar de opinião em menos de um segundo. Analisei os prós e contras e havia mais prós.
Os contras eram: primeiro, eu não sabia ao certo por que raios ele estava atrás de mim e talvez ele soubesse da história da recompensa e estivesse se fazendo de sonso e, segundo, eu odiaria ter uma pessoa no meu pé o tempo todo já que eu gostava de ficar sozinha. Os prós eram: primeiro, eu não estaria sozinha. Por mais que eu odeie admitir, não estar sozinha era um belo pró, já que, caso ocorresse alguma coisa, eu poderia fugir enquanto ele lidaria com o que quer que fosse. Segundo, ele parecia ter dinheiro e eu precisaria de mais quando o dinheiro no meu bolso acabasse. Terceiro, ele tinha uma caminhonete caso acontecesse algo com minha Chevy. E, em quarto lugar, as pessoas desconfiariam menos caso eu não estivesse sozinha; quem estava procurando por mim não iria esperar que eu estivesse acompanhada.
Depois que essa análise se concluiu rapidamente dentro de minha mente, eu virei meu rosto a ele e o encarei. Eu estava decidida a deixá-lo me acompanhar, mas não mudaria de opinião tão fácil, eu tinha orgulho demais pra isso. Eu decidi que ia testá-lo.
- Ok, se você quer tanto assim seguir junto comigo, vai ter que mostrar o que sabe fazer.
Ele ficou sem entender por um momento. Eu andei até seu encontro. Eu sabia que minha expressão tinha mudado e até o jeito com o qual eu falava mudara. Era tudo para confundi-lo. E parecia que eu finalmente havia conseguido assustá-lo... Justo quando eu não tinha a intenção de amedrontá-lo.
- Se você quiser mesmo me acompanhar, precisa estar na mesma velocidade que eu - falei bem próximo de seus lábios
Eu não sabia de ele estava assustado porque eu estava tentando talvez seduzí-lo ou se era meu hálito cheirando a uísque e cigarro. Acho que talvez os dois. Eu me afastei, andando para trás, sem tirar o olho dele. E, quando eu vi o maldito sorriso voltar à sua boca, fiquei com raiva. Eu gostei mais dele assustado, sem saber o que fazer ou falar.
Pulei para dentro da minha Chevy rapidamente e dei a partida. Vi pelo retrovisor que ele tinha entendido meu recado e já estava ao volante também. Não demorei muito e acelerei, voltando à estrada e entrando na frente de um caminhão, que buzinou. Ele tinha ficado para trás e eu sorri. Eu realmente estava gostando desse jogo. Acelerei mais um pouco, cortando os poucos carros que estavam à minha frente e o vi se aproximar da minha traseira. Eu não ia deixá-lo passar ou meu nome não é Freedom. Tudo bem, meu nome não é realmente Freedom, mas a expressão é assim, o que eu posso fazer? Ele tentou me cortar pelo lado esquerdo e eu o fechei, assim como fiz quando ele tentou me cortar pela direita. Estávamos fazendo zig zag no meio de uma estrada razoavelmente movimentada e alguns caminhões buzinavam. Ele acelerava, fazendo menção de atingir minha traseira em cheio, mas eram só ameaças. Meu pé estava firme no acelerador, pisando fundo até seu limite. A estrada começou a ficar mais vazia, mais deserta, o asfalto começou a piorar e eu comecei a adorar o que estava por vir. Eu continuava em alta velocidade, vendo-o tentar passar por mim agora sem outros automóveis à nossa volta. Eu me dei ao luxo de ligar o rádio e, de primeira, uma música instrumental com muito banjo começara a tocar em uma rádio qualquer. Acho que era meu dia de sorte.
O amortecedor estava tendo trabalho com a situação da estrada e eu pulava no banco, quase batendo a cabeça no teto. Afastei-me para a esquerda e ele aceitou o espaço que eu concedera no lado direito. Nossas caminhonetes se alinharam na estrada, com a mesma velocidade, agitando-se com os buracos ali e lá. Olhei pela janela sorrindo e esperei encontrá-lo com raiva por ter ficado para trás, mas ele também estava sorrindo, o que fez com que fosse eu quem ficasse com raiva. Ele fez um sinal com a cabeça e acelerou mais, como se estivesse esse tempo todo somente usando metade da potência de sua caminhonete. Eu não tinha mais o que acelerar, ainda mais tendo que desviar de buracos que podiam muito bem quebrar minha Chevy inteira. Eu acabara de perder num jogo que eu mesma criara? Isso não estava certo.
Ele sumiu à frente, depois de uma curva, e eu fiquei sozinha desviando dos buracos. Eu o xingava enquanto batia no volante. Eu odiava perder. Avistei-o já um pouco à frente, estacionado no acostamento, encostado na porta da caminhonete, esperando por mim acompanhado por aquele maldito sorriso. Quis arrancar cada dente de sua boca naquela hora. Encostei minha Chevy à frente da dele e desci tentando esconder minha raiva, mas o jeito que eu fechei a porta - com a delicadeza de um furacão - me denunciou. Eu sempre odiei perder, mas nunca fui uma mal perdedora, pelo menos não na frente do vencedor.
- Então... Passei no teste? - ele perguntou já sabendo a resposta
- Tenho três condições: eu vou sempre na frente, eu decido onde e quando vou parar e eu não vou ficar esperando por você.
- Acho que é mais fácil eu ficar esperando você... - ele sussurrou, mas eu ouvi
Ainda bem que eu já estava decidida a deixá-lo me seguir, senão aquela ia ser a gota d'água.
- O que você disse? - perguntei de modo agressivo
- Nada.
Ele parecia se divertir. Eu voltei à minha Chevy e, antes que eu entrasse, ele perguntou:
- Então quer dizer que eu passei no teste?
E riu.
Eu somente acelerei e me perguntei se iria aguentar esse idiota no meu pé por mais de dois dias. Eu aguentei meu pai por 17 anos, mas esse tal de Zach me dava uma raiva instantânea a cada brincadeirinha.
Após duas horas de estrada sem rumo por Virgínia, que foram duas horas também ignorando a caminhonete preta no meu retrovisor, eu vi que precisava abastecer. Parei no primeiro posto que avistei, sem prestar atenção ou ao menos me esforçar para avisá-lo que ia parar. Era ele quem estava me seguindo, então ele que se virasse. Mas ele seguiu e parou bem atrás de mim no posto, infelizmente. Desci da Chevy segurando meu cigarro aceso nos lábios, tirei a pistola de combustível e comecei a abastecer quase automaticamente. Quando dei por mim, ele estava do meu lado, olhando para mim de um modo ruim, como se estivesse desaprovando meus atos.
- O que foi? - eu murmurei sem largar a pistola ou o cigarro
- Nada. Só estou vendo você abastecer com um cigarro aceso na boca.
Eu sabia! Eu sabia que ele estava desaprovando algo! E, sinceramente, eu odiava isso.
- Que tal você entrar na loja de conveniência e comprar alguma coisa antes que eu aponte essa pistola para você e depois jogue meu cigarro aceso no seu corpo cheio de diesel? - eu falei num sorriso irônico
- Acho melhor mesmo não ficar muito perto. Vai que você explode o posto inteiro?
Faltou pouco para eu realmente jogar combustível naquela cara dele e colocar fogo em seu maldito sorriso, foi bom ele realmente ter se retirado para a loja de conveniência. Calma, Freedom. Calma. Pensa nas vantagens que ter um mala no seu pé pode trazer.
Depois de abastecer, entrei na loja de conveniência para pagar, mas antes me enfiei no pequeno corredor das bebidas. Eu havia decidido que somente uma garrafa de uísque não ia ser suficiente para aguentá-lo no meu pé. Eu precisaria de mais. Eu não ia conseguir me manter sóbria perto dele. Achei uma garrafa de rum e peguei alguns salgadinhos e doces. Tentei ao máximo ignorar sua presença tanto no corredor vizinho como no caixa esperando por mim. Quando fui concluir a compra e pagar pelo combustível, colocando a pequena garrafa de rum no balcão e pedindo um outro maço de cigarros, o velho do outro lado do caixa me encarou.
- Identidade? - ele me olhou como se já soubesse que eu não tinha mais de 21 anos
Antes que eu respondesse qualquer coisa, Zach se manifestou.
- Na verdade isso é pra mim - ele disse, já com a sua carteira de motorista em mãos e apresentado-a ao velho
Eu não disse nenhuma palavra. O velho também não, mas disse o preço. Zach pagou enquanto eu fiquei ali, parada, me sentido a pessoa mais vulnerável da face da Terra, o que não me agradou nem um pouco.
Quando saímos, ele me entregou a sacola e eu esbocei um "obrigada" bem fraco.
- Me espanta você não ter uma identidade falsa - ele comentou
Eu continuei andando até minha Chevy.
- E você deveria parar de beber e fumar tanto, não faz bem.
- E você poderia parar de falar tanto, também não me faz bem - eu disse antes de fechar a porta com força
Ele riu. Eu realmente deveria ter incendiado seu corpo quando tive a oportunidade, pelo menos assim ele pararia de rir de tudo o que eu falo.
Começou a escurecer e eu procurei algum lugar para estacionar. Eu estava ficando com dor de cabeça de tanto dirigir – e de tanta raiva do sujeitinho atrás de mim também. Decidi que entraria na primeira cidade que avistasse, e essa cidade foi Lewisburg. Assustei-me um pouco quando li "Pensilvânia" na placa de bem-vindo à cidade. Já era o quarto estado no qual eu houvera passado em quatro dias! Eu me perguntava até quando ia fugir. Eu já estava muito ao leste pro meu gosto. As pessoas já não falavam como no Tennessee, as pessoas já não se vestiam como no Tennessee, a comida não era igual a do Tennessee. Eu, que sempre me achei uma estranha junto às outras pessoas, também agora me achava estranha junto à paisagem e ao chão no qual eu pisava.
Ao entrar pela cidade, pensei em dar meia volta e sair. Tudo estava deserto demais. Eu dirigia devagar, tentando enxergar algo, mas o farol forte atrás de mim não estava ajudando. De repente, ouvi um barulho e freei. Três carros cruzaram minha frente buzinando. No terceiro carro, uma caminhonete, pude ver alguns jovens em pé atrás, com garrafas na mão e uma bandeira. Também vi o verde berrante da camisa de futebol americano de um deles. Sem pensar muito, girei o volante para a esquerda e os segui; eles deviam estar dirigindo a um lugar mais movimentado. A caminhonete atrás de mim continuou me seguindo enquanto eu seguia, em alta velocidade, o grupo de jovens. E não é que eu estava certa? Logo à minha frente, a cidade ficou mais iluminada e movimentada até que encontrei a razão de tanta animação: um estádio de futebol americano lotado.
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Música do Capítulo 6: Fastest Girl in Town - Miranda Lambert
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