4. There's a wild, wild whisper blowing in the wind
Eu estava parada há pelo menos uns dois minutos na frente de uma prateleira cheia de caixas. A indecisão só me acompanhava quando se tratava de assuntos banais. Então ela estava ao meu lado, me fazendo pegar uma caixa, pensar novamente e voltá-la ao seu lugar de origem. E isto aconteceu com pelo menos mais umas cinco caixas.
- Precisa de ajuda?
Olhei o senhor ao meu lado, com um sorriso no rosto. Típico de cidade pequena. Essa simpatia, esse nível de preocupação com o outro e com o que o outro está pensando ou sentindo, mesmo que esse outro seja um completo estranho. Meu problema era: eu havia nascido em uma cidade pequena também, mas eu falhava nessas qualidades. Eu me esforçava para ser simpática, acolhedora, sorridente, mas quem disse que conseguia? Minha mãe sempre disse que eu era "um bicho do mato". Crescendo em uma casa afastada, cercada de natureza e animais e convivendo com o animal do meu pai por dezessete anos, eu bem que era "um bicho do mato" mesmo. Porém o farmacêutico, e não um vendedor comum pois seu jaleco branco o denunciava, continuava esperando uma resposta à sua pergunta prestativa.
- Não, imagina. Só estava em dúvida, mas já decidi.
Peguei uma caixa que me chamou mais a atenção. Era difícil escolher com tantas opções. Por que simplesmente não fazem quatro tipos? Tintura preta, vermelha, loira e morena! Pronto! Problema de indecisão resolvido.
- Se me permite dizer, acho que vai combinar com você - o senhor foi simpático mais uma vez
Ele sorriu e se dirigiu ao caixa. Eu o acompanhei, vendo-o passar o produto pelo código de barras.
Paguei e saí da farmácia, analisando a cidade em volta. Havia uma praça, como já era de se imaginar. Praças centrais são obrigatórias em cidades pequenas. Nessa mesma praça, se concentrava a prefeitura de Prestonburg, uma lanchonete, a delegacia e um posto de combustível. E, nesse último, eu vi uma oportunidade. Andei até a lateral do posto, onde eu já havia notado existir uma porta com sinalização de banheiro. Com precaução para que ninguém me notasse, adentrei à porta, fechando-a em seguida. Acendi a luz e encarei o pequeno espelho sobre a pia. Peguei a tintura que eu havia comprado e li de novo minha escolha. "Vermelho alaranjado". Nunca imaginei ser ruiva um dia, mas era uma boa precaução. Estariam procurando por uma menina como a foto, com os cabelos arrumados para a pose forçada, a roupa passada corretamente, a pele com um pouco de pó-de-arroz. Exigência de minha mãe, obviamente. Não estariam procurando de cara por uma menina toda desmazelada, com cabelos volumosos, despenteados e com as pontas queimadas devido ao sol excessivo. E, agora, prestes a ficarem "vermelhos alaranjados", ou seja lá que cor isso resulte em.
Abri a caixa, tentando ler as instruções. Minha leitura era um pouco debilitada, confesso. Ter largado a escola na quarta série me impediu de evoluir um pouco mais nesse quesito, mas eu ainda conseguia ler e entender o que eu estava lendo e era isso que contava, não é? Eu não precisava saber ler Shakespeare, Hemingway ou, quem sabe, Marx e Foucault. Eles não me eram úteis antes, continuam não sendo agora. Segui as instruções conforme ia tentando desvendá-las. Coloquei as luvas plásticas e dei inicio àquela tortura de passar a tinta pela raiz e por mechas. O vermelho era forte, pelo menos parecia ser naquela luz amarela. Quando acabei, li que precisava esperar uns vinte minutos. Sentei-me sobre a tampa do vaso sanitário, pensando em nada e em tudo ao mesmo tempo.
A maçaneta do cubículo que era chamado de banheiro se mexeu. Alguém tentara abrir a porta. Eu esperei mais algum movimento. A maçaneta se mexeu de novo e a porta foi empurrada em vão.
- Está ocupado! - eu falei, alto, com a voz talvez um pouco grossa demais
Quem quer que fosse, desistiu de usar o banheiro e foi embora. Suspirei. Eu não aguentava mais ficar ali presa, esperando o tempo passar. Levantei-me e olhei meu reflexo no pequeno espelho. Quer saber? Cansei. Já devem ter se passado minutos suficientes. Enfiei minha cabeça com dificuldade na pia, abrindo a torneira e ajudando a lavá-lo com as mãos. Não vou dizer que foi uma tarefa fácil, pois não foi. Eu tentava desembaraçar meus fios com os dedos enquanto a pouca água da torneira o molhava parcialmente. Foi um bom tempo ali, curvada, de mal jeito, até que eu resolvesse que já estava razoavelmente enxaguado. Minha coluna agradeceu quando eu voltei a ficar em uma posição reta. Olhei no espelho, meus cabelos pingavam. Eu não sabia se tinha surtido efeito, talvez porque os fios estavam encharcados, talvez porque a iluminação era péssima. Recorri à mochila que trouxera comigo do carro e agarrei minha blusa do dia anterior, suja. Sequei meu cabelo com ela, apesar de não ter sido muito eficaz. Minha testa e pescoço estavam manchados de tintura vermelha, mas era o de menos. Foi quando lembrei que deveria haver um canivete dentro daquela mochila. Eu lembrava vagamente que havia o posto ali durante a correria da noite em que minha mãe e Kev fugiram. Procurei até que o achei.
Usei novamente meus dedos para tentar desembaraçar os nós e dividir o cabelo ao meio. Com o canivete, cortei as pontas e depois usei-o como navalha. Eu não sabia no que ia resultar. Na verdade, a única esperança que eu tinha era de que eu ficasse bem diferente daquela foto impressa no jornal. Não aparei muito meu cabelo, que era grande, mas senti a diferença logo de cara. Ainda dava para fazer uma trança se eu quisesse, uma trança não muito longa já que ele estava batendo ao meu ombro, todo repicado erroneamente. Satisfeita com meu novo visual, tentei limpar um pouco a pia manchada. Finalmente saí do banheiro e, por sorte, parece que não havia ninguém ali. Não me importei com minha testa nem meus pescoços manchados nem com a falta de pente em meu cabelo. Eu me perguntava quanto tempo eu havia ficado dentro do banheiro, já que o dia virara noite durante esse intervalo. Não havia muito movimento na rua, então fui à minha caminhonete e a fiz de refúgio.
Comi o resto das bobagens que eu havia comprado na loja de conveniência enquanto escutava uma rádio qualquer. Eu me enganava que estava comendo algo que realmente matava minha fome, assim como me enganava que o uísque saciava minha sede. E, nessa enganação, enganei-me que as gotas de água formadas no pára-brisas por causa do sereno da noite eram minhas tão amadas estrelas na janela. Acendi um cigarro, o tédio fez daquele ato um pouco mais interessante do que era. A fumaça que saía de minha boca formava curvas que me entretinham. Dormi sem saber que horas eram e sem me preocupar em estar estacionada no meio da rua. Apenas estiquei-me sobre o banco, que, por sorte ou talvez por minha caminhonete ser antiga, era unificado. Ou seja: banco de motorista e passageiro sem divisórias. Eu não cabia inteiramente esticada na largura do banco, mas encolhi minhas pernas e fiz minha noite de sono valer a pena, até que a luz do dia me acordou.
Esfreguei meus olhos incessantemente. Era até uma sensação boa, coisa rara nos últimos dias. Meu cabelo ainda estava meio úmido. Levantei e me olhei no espelho retrovisor. Eu parecia um espantalho. Meu cabelo tinha ficado realmente vermelho alaranjado, mas um pouco escuro já que não o descolori. Havia pontas duplas para todos os lados. Minha testa ainda tinha um tom alaranjado assim como meu pescoço. Tirando o desastre que isso possa soar, eu até que gostei do resultado. Eu parecia um pouco... Selvagem. Como ele estava bastante volumoso, fiz uma trança partindo de cima e incluindo mechas até o final, como havia aprendido quando criança, nos primeiros anos de escola. Procurei por um elástico de dinheiro pedido no porta luvas até encontrá-lo e arrematei meu penteado. Pensei comigo mesma como faria para acabar com as manchas mais aparentes e a solução que encontrei foi derramar um pouco de Jack Daniels em minha mão e tentar disfarçá-las. Foi uma dor no coração desperdiçar minha bebida e eu teria me arrependido mais se não houvesse amenizado o tom laranja de minha pele. Analisei o resultado pelo retrovisor, até que gostando. Foi aí que meus olhos, que até então estavam desatentos, notaram o carro parado atrás de mim. Ou, pior: a caminhonete de cor preta parada atrás de mim. A cidade ainda não tinha acordado, apesar do Sol já ter nascido. A rua estava deserta e o único movimento que eu vi foi um garoto de bicicleta arremessando jornais. O vidro da caminhonete preta era bem escuro, o que me deu ainda mais certeza de que era a mesma caminhonete que me seguira. Eu peguei minha arma, que estava guardada na mochila, com cuidado para não mostrá-la pelo vidro. Coloquei-a entre meus dedos. Eu tentava analisar qualquer movimento dentro da caminhonete pelo retrovisor, mas eu não conseguia. Além de escuros, os vidros estavam embaçados. Eu não sabia se realmente havia alguém ali dentro ou não, muito menos sabia se havia mais de uma pessoa ali. Todavia, decidi arriscar. Soltei de minha caminhonete, escondendo ao máximo minha arma atrás de meu corpo e entre o tecido da minha blusa. Com naturalidade, andei pela rua fingindo não notar a caminhonete. Passei pelo automóvel com precaução, mas disfarçando estar me importando. Continuei andando pela rua, até que meus ouvidos, atentos a tudo, notaram um abrir de porta. A pessoa pulou de dentro da caminhonete para a calçada. Eu não tive escolha: virei-me depressa, apontando a arma para quem quer que fosse.
A pessoa soltou um tom de surpresa. Sua reação foi levantar as mãos à altura da cabeça. Era um homem, não muito velho. Não sei dizer quantos anos tinha, não sou boa com essas coisas, mas, se fosse para chutar, chutaria no máximo uns 25 anos, quem sabe. A barba mal feita cobria suas bochechas e se juntava entre o nariz e a boca, assim como no queixo. Usava um chapéu, o mesmo que eu vira naquele bar. Foi a confirmação final. Eu estava lidando com o mesmo sujeito que havia me seguido antes.
Vi sua mão tentar se abaixar, quem sabe para sacar uma arma, porém o proibi.
- Qualquer movimento brusco e eu atiro - ameacei, dando passos aos poucos em sua direção
- Tudo bem, não vou fazer nada - ele disse
Estava calmo demais para o meu gosto. Como se esperasse aquilo. O tom de sua voz me confundiu. Sua serenidade me confundiu. Porém, sua voz me confirmou que ele era jovem. Concluí que estava talvez planejando fazer alguma coisa que eu desconhecia. Cheguei mais perto, tendo cuidado e pronta para atirar se sentisse qualquer perigo.
- Por que está me seguindo? - perguntei firme
- Eu não estou te seguindo. De onde tirou essa ideia?
Seu tom tinha um certo humor que me irritou profundamente.
- Talvez eu tirei essa ideia do fato de você ter me perseguido na estrada, ter parado no bar que eu parei e depois ter saído correndo atrás de mim para outra perseguição e depois por estar estacionado atrás de mim? - falei ironicamente
- É tudo uma grande coincidência. Talvez você tenha mania de perseguição?
Eu o fuzilei com meus olhos. Eu atiraria, mas não havia motivo muito forte a não ser o fato dele estar se divertindo com a minha cara. Ele soltou um meio sorriso de lado, formando uma pequena covinha em sua bochecha direita. Aquela provocação estava queimando meu peito. Afastei-me um pouco de seu corpo, vendo que não tinha ninguém na rua. Era uma rua mais comercial e todas as lojas ainda estavam com as portas fechadas. Fiquei na linha de seu pneu traseiro. Ele continuava a me olhar com humor, sustentando as mãos à cabeça. Em um movimento rápido, o cano de minha arma mudou de direção. Atirei em seu pneu, furando-o. Eu confiava na minha pontaria, ela nunca havia me desapontado. Antes que ele reagisse, a arma estava de novo apontada a ele. Sua boca se abriu em protesto e seus braços se abaixaram um pouco.
- Ops. Seu pneu estava bem na linha da minha arma. Que trágica coincidência - usei meu sarcasmo
Sua mão fez menção de tentar alcançar sua calça, provavelmente alcançar uma arma. Eu o proibi, mandando-o levantar as mãos de novo. Fui até ele, chegando perto de seu corpo. Ele usava um perfume forte demais para meus pulmões. Com a arma apontada a ele na minha mão direita, procurei a arma em sua cintura usando a mão esquerda. Até que achei-a. Afastei-me de seu corpo, agradecendo por um pouco de ar puro longe daquele perfume. Agora eu apontava as duas armas para ele, uma em cada mão. Fiz com que trocássemos de lado, fazendo um círculo, ainda ameaçando-o, para que assim eu pudesse ficar do lado certo para ir até minha caminhonete. Andei para trás, sem desviar meu olho de seu corpo. Ele parecia estático, com as mãos para cima, e, pelo menos, o toque de gozação em sua fronte tinha acabado. Não é muito engraçado ter duas armas apontadas para si e nenhuma em sua cintura.
- Que sirva de lição para que essas coincidências não aconteçam de novo.
Continuei andando para trás até alcançar a porta da minha caminhonete. Não tirei os olhos dele. Retirei as balas de sua arma e as peguei para mim. Com a minha arma ainda apontada para ele, eu joguei a sua vazia pelo chão em sua direção. Rapidamente, entrei em minha Chevy e acelerei, jogando minha nova munição no banco de passageiro, em cima de tudo o que tinha ali, até que as balas caíram pelo chão. Não me importei, eu teria tempo para recolhê-las depois. Meu único objetivo agora era ganhar tempo. Tudo bem que, com um pneu furado, ia ser difícil ele me alcançar. Eu poderia ter ficado com sua arma, mas isso resultaria em três armas em minha posse. A minha, a dele, e a arma antiga que eu havia pegado de casa. E andar com uma arma por esses lados é normal, mas com três é um pouco suspeito. Então simplesmente aproveitei que tínhamos o mesmo calibre. Eu poderia também tê-lo matado, mas, apesar de tudo, para mim morte era só em último caso. Ou seja: quando eu tivesse certeza de que é a única saída, quando fosse a minha vida contra a vida de quem me ameaça. E ele parecia não querer me matar e sim me irritar com sua ironia e humor estúpido. Como aquilo havia me irritado. Quase mereceu um tiro no pé também, mas acho que o tiro no pneu compensou. Agora eu só pensava em como ele era irritante e eu, por total orgulho, não deixaria um sujeito daqueles me capturar. Seria mais digno até o velho da Maverick de ontem me arrematar para meu querido pai do que esse sujeito.
Como eu estava cansada de dirigir e o combustível estava sendo gasto muito rápido, saí das vias principais, entrando na primeira estradinha que encontrei. Era uma estrada de terra. Que saudades eu estava daquele barro vermelho! Apesar de adorar andar em alta velocidade por ele, me contive. Eu tinha que economizar. Dirigi calmamente pela estrada, vendo o milharal à minha volta. Alguns pássaros passavam pelo céu e eu me senti em casa, por mais que longe dela. Passei as mãos pelo meu novo cabelo, soltando-o da trança e estranhando o novo comprimento. Eu haveria de acostumar, uma hora ou outra.
Freei bruscamente ao notar que havia um riacho à minha frente. Meus olhos brilharam e eu fiquei feliz por encontrar água nascente e limpa. Não havia muita coisa ao meu redor. Só um grande milharal e uma estradinha mal feita. Havua um grande silêncio, tudo o que eu ouvia era o barulho da água correndo e indo para um lugar desconhecido, talvez um rio. Desci da caminhonete e fui até a beira do riacho, vendo meu reflexo mal feito nele. Meu cabelo estava mais laranja do que nunca no sol. Formei uma concha com minhas mãos e lavei meu rosto e depois tomei um pouco da água. Uísque nem sempre mata a sede, só deixa a garganta ardendo mais. Olhei para os dois lados, me certificando que estava sozinha. Desci o zíper de minha calça e tirei as botas que estavam já apertando meus dedos. Não demorou muito para que eu estivesse despida, nadando pelo riacho raso e transparente. A água limpou meu cabelo por completo, tirando um pouco da tintura que ainda estava impregnada nele. Estava tanto calor que a água gelada foi correndo pelo meu corpo foi como um grande gole d'água quando se está no deserto. Eu fechei meus olhos, sentindo o sol bater em meu rosto e o barulho da água estava me acalmando, lavando minhas preocupações. Fiquei dentro d'água até meus dedos se enrugarem, observando as nuvens, vendo suas formas e fingindo que eu tinha outra realidade. Quando me cansei, levantei no riacho, procurando minhas roupas. Foi quando ouvi um barulho naquele silêncio. O milharal à minha volta havia se mexido, como se alguém estivesse corrido entre eles. Fiquei estática por um momento, prestando atenção em tudo à minha volta e pronta para qualquer outro barulho, porém o silêncio de antes continuou. Sem muita demora, peguei minhas roupas e as vesti com pressa, secando meu cabelo com minhas mãos, tirando o excesso de água doce. Tomei mais um pouco daquela água límpida e voltei à minha caminhonete, dirigindo à beira do rio, até encontrar alguma passagem. E encontrei. Era uma ponte rústica, mas era firme. Então atravessei o rio, encontrando mais milharais.
Eu estava com fome, o barulho vindo de meu estômago não me deixava negar. Tudo o que eu via à frente e em todos os lados era verde e mais verde. Nenhuma árvore frutífera, absolutamente nada. Dirigi por mais ou menos uma hora dentro daquela plantação e o caminho parecia se estreitar mais e mais. Eu avistei de longe uma outra caminhonete vindo em minha direção e virei o volante bruscamente, acabei entrando e atropelando os vários pés de milho ainda baixos e tentando ao máximo me esconder nos que já haviam crescido. Esperei o automóvel passar com o coração na boca. E se fosse o cara da caminhonete preta? Porém, não consegui enxergar a cor do carro que passou levantando a terra vermelha do chão. Esperei um tempo antes de dar ré e voltar ao caminho só por segurança. Acabei continuando pela mesma direção, mas um pouco mais rápido, abusando do acelerador. Quando eu já estava entediada da paisagem, finalmente algo novo surgiu no horizonte. Era um sítio. Na verdade, uma casa simples, com um portão de madeira baixo e um curral do lado. Algumas galinhas ciscavam no chão. Não parecia ter movimento. As janelas estavam todas fechadas e não havia nenhum carro perto. Pensei que talvez fosse propriedade de quem quer que tenha passado de carro pelo caminho pelo qual eu viera. Estacionei minha Chevy de novo no milharal, camuflando-a um pouco. Andei até o portão de madeira com caução, olhando para todos os lados. Abri o portão com cuidado, sem fazer barulho e prestes a correr caso alguém aparecesse. Ou quem sabe fingir alguma doença para que ficassem com pena de mim e não me acusassem de invadir propriedade alheia. Todavia, abri o portão sem que ninguém aparecesse. Realmente a casa estava vazia.
Passei pelo curral, vendo os cavalos. Eu sentia saudade de Pelúcia. Acariciei os cavalos ali, já velhos e não muito bem cuidados. Eles estranharam meu toque, como se ninguém realmente fizesse carinho neles. Acho que os usavam apenas como transporte ou quem sabe animais para carregar carga. Havia um trator estacionado do lado do curral, então presumi que aquela casa era de alguém que era dono daquelas plantações ou quem sabe de algum funcionário que cuidava dos milharais. Arrisquei mais um pouco, dando a volta pela casa. Não encontrei um sinal de vida. Decidi então tentar abrir a porta de trás, mas estava fechada, como já havia esperado.
Foi quando levei um baita de um susto. Um latido bem perto de mim soou forte. Vi um cachorro a menos de um metro de mim, latindo raivoso. Eu, que estava em estado de alerta, acabei dando um grito. Depois me culpei. E se houvesse alguém dentro da casa? E se esse alguém tivesse ouvido meu grito? Com o cachorro eu não me preocupei muito, afinal, se ele fosse realmente perigoso, já havia de ter me atacado. Ele estava na defensiva, latindo, com os pêlos do dorso arrepiados. Estava com medo de mim. Estalei meus dedos, chamando-o. Ele demorou um pouco para parar de latir. Estava confuso. Afinei minha voz, chamando-o para perto, assobiando. Era um cachorro manso, afinal de contas. Estava apenas me estranhando. Um pouco suspeito, ele chegou perto de mim e eu, com cuidado, acariciei seu pêlo. Não demorou muito para que ele deitasse no chão e pedisse por mais carinho. Os animais daquele lugar pareciam bem carentes aos meus olhos. Depois de ter conquistado o cachorro, eu tinha que achar um jeito de entrar na casa. Não me leve a mal, eu estava com fome. Eu só iria assaltar a geladeira, mais nada.
Rodei a casa mais uma vez, analisando as possibilidades. Acabei achando uma brecha em uma das janelas e, com esforço, coloquei meus dedos entre ela. Foi um pouco doloroso para meus dedos conseguirem abrir a janela de madeira. Era bem desajeitada e irregular, mas com a tranca interna frouxa. Assim que consegui abri-la, visualizei o quarto ao qual ela dava abertura. Debrucei-me contra o batente e escalei-a, entrando no quarto com cautela. Reparei no porta-retrato em cima do criado mudo. Era a foto de um casal jovem. Uma foto um pouco velha, um pouco posada demais e com as cores gastas. O penteado e as roupas pareciam ser dos anos 50. E essa foto estava perto do abajur, em cima do criado mudo, porém, ao lado do criado mudo, havia uma cama de solteiro mal arrumada. Despertei-me da análise da foto, perguntei a mim mesma por que estava perdendo tempo com essa inutilidade. O dono da casa poderia chegar a qualquer momento e eu não tinha tempo a perder. Com cuidado, procurei pela cozinha. Passei por uma pequena sala e a encontrei. Fui direto à geladeira. Para meu infortúnio, ela não estava muito cheia. Rapidamente, peguei um pedaço de queijo e bebi um pouco do suco que havia dentro de uma garrafa sem encostar minha boca. Eu não queria pegar um copo para sujá-lo e ter que lavar depois, mas também quem quer que fosse não merecia alguém bebendo algo seu direto, no gargalo. Peguei um pedaço de um bolo que estava em cima da mesa e depois comi uma mão cheia dos biscoitos de nata que estavam em um pote no armário. Fiz tudo com pressa, mas consegui saciar minha fome. Nos momentos de distração, eu me pegava imaginando quem morava ali, tão isoladamente do mundo. Talvez fosse o casal da foto, ou quem sabe o filho deles, pois só vi uma cama de solteiro. Quando caí em mim e achei que era melhor ir embora logo antes de ser presa, voltei ao quarto. Pulei a janela e tentei fechá-la por fora. Consegui depois de certo esforço. Quando me dirigia ao portão, ouvi um barulho de motor. Uma caminhonete se aproximava. Eu não tinha como ir até minha própria Chevy sem ser pega em flagra, então corri para os fundos da casa, me enfiando em um espaço embaixo do tanque. Escondi meu corpo atrás de toras de lenha e uns baldes de tinta. Com um pano de chão que estava ali embaixo, cobri o que achei que estava sendo exposto de meu corpo. Prendi a respiração por um tempo. A poeira estava irritando meu nariz e eu fazia de tudo para não espirrar.
Tudo que eu ouvia eram passos. A caminhonete já havia sido estacionada. Era um tremendo silêncio, mas o chão de madeira denunciava que havia alguém andando dentro da casa. O cachorro vinha vez ou outra ao meu encontro, cheirando o ser estranho que havia invadido seu território. Eu continuava calada, segurando um espirro. De repente, a porta dos fundos se abriu ao meu lado. Eu gelei. Com o canto dos olhos, espiei um senhor, com a barba grisalha e quase nenhum cabelo sob o chapéu. Ele sentou-se à mesa exterior e rezou antes de começar a comer sua janta. O cheiro de frango ensopado chegou ao meu nariz como um furacão. Eu não estava com tanta fome, mas agora estava com desejo de uma janta daquelas. O cachorro continuava tentando me cheirar, tentando se enfiar entre as latas de tinta. Eu torcia para que ele não me encontrasse.
- Popeye! - o senhor exclamou
O cachorro foi ao seu encontro, abanando o rabo. O senhor lhe deu um osso do frango e o animal, todo feliz, começou a roê-lo e, felizmente, se esqueceu de mim. Naquele silêncio, eu fiquei imaginando historias dentro de minha cabeça. Por que aquele homem era tão sozinho? Sua expressão denunciava nostalgia, sofrimento, saudade. Eu não tinha mais nada pra fazer ali além de esperar uma oportunidade para fugir. Minha boca estava fechada e eu tentava controlar minha respiração para não espirrar com a poeira. Todavia, minha mente estava tagarelando. Inventei histórias. Aquele homem deveria ter perdido sua mulher e até se desfez da cama de casal para não se torturar. Talvez não tiveram a oportunidade de ter um filho, ou o filho não quis ficar naquele fim-de-mundo e ajudar o pai com a plantação e se mudou pra cidade grande. Ou quem sabe a mulher o deixou, fugiu com outro. Mas, se ela tivesse fugido, por que ele mantinha aquele porta-retrato no quarto? Porque, por mais que mais velho, eu reconheci aquele homem na foto. Era a mesma pessoa, só que com expressões completamente opostas. O homem no porta-retrato era feliz. O homem à minha frente, jantando, estava longe de ser.
Fiquei pensando se eu seria assim também quando envelhecesse. Infeliz, amargurada. Eu não teria ninguém para pensar em, ninguém para me fazer lembrar que um dia fui feliz. Perdida em pensamentos, tomei um susto quando o homem se levantou e passou pela porta ao meu lado, levando o prato. Ouvi barulho de água. Ele estava lavando a louça. Continuei estática, esperando o momento certo. Já havia escurecido e a luz dos fundos se acendeu. Ouvi uma música começar a tocar, uma música de gaita. Não era uma gravação, aquele homem estava depositando todo seu sofrimento naquele instrumento. A cada nota que ele soprava na gaita, meu coração doía. Era uma melodia triste.
A música acabou. A luz apagou. A porta ao meu lado se fechou. As pessoas que moram no campo dormem cedo.
Esperei mais um pouco, só por segurança. Quando não ouvi mais nenhum barulho, concluí que ele havia se retirado para dormir. Tirei o pano de chão de cima de mim e levantei-me devagar. O cachorro veio até mim e eu torci para que ele não latisse. A passos lentos, passei pela lateral da casa. Estava um silêncio infernal. Apenas ouviam-se alguns grilos cantando. Pulei a cerca de arame farpado, já que achei que seria complicado abrir o portão de madeira sem ser notada. Corri até minha caminhonete e fiquei pensando como eu iria dar partida. Meu motor não era lá dos mais silenciosos, afinal, era uma caminhonete de 1965. E eu teria que sair rápido do meio do milharal.
Abri a porta com cuidado e me sentei ao volante. Enquanto pensava, meu nariz não aguentou mais toda a irritação e eu espirrei forte. Espirrei pelo menos três vezes seguidas. O som ecoou pelo silêncio. Eu cobri minha boca com a mão em arrependimento. Merda. Agora eu não tinha outra escolha. Bati a porta da caminhonete, engatei a ré e dei partida. Acelerei, fazendo a manobra rapidamente. A luz da casa se acendeu atrás de mim. Achei o caminho estreito pelo meio da plantação e acelerei o máximo que pude. Pelo retrovisor, vi o homem sair de casa correndo. Estava vestindo um pijama e tinha um rifle nas mãos. Porém, ele não conseguiu me alcançar. Soltou um tiro ao vento que não me atingiu.
Eu estava acelerando por entre aquele caminho, com os faróis altos. Alguns insetos batiam nos meus pára-brisas, sujando-o. Achei a ponte estreita do riacho e acelerei sobre ela. Eu parecia estar em um labirinto. Eu simplesmente precisava achar o caminho para fora dali. A luz do tanque de reserva acendeu no painel. Droga. Eu precisava abastecer logo.
Acabei dirigindo no escuro, procurando uma saída. Vi algumas luzes distantes e presumi que fosse a estrada pela qual eu viera. Dirigi até elas e achei a rodovia, suspirando em alívio. Agora eu precisava achar um posto de combustível, e rápido.
Dirigi por mais uns 10 minutos. Eu já estava ficando irritada. Parte por causa dos faróis altos dos caminhões, parte porque todos os postos que eu avistava ficavam do outro lado da rodovia. A luz no painel indicando que estava no tanque reserva estava me deixando desesperada. Tirei o pé do acelerador, torcendo para que um posto surgisse do lado certo. Quase não percebi o posto de combustível mal iluminado à minha frente, por isso tive que virar o volante rapidamente, arrancando buzinas dos caminhões atrás de mim. Eu não liguei, pelo menos eu havia achado um posto a tempo, só esperava que ele estivesse funcionando.
Era mal iluminado, mas estava funcionando. Parei a caminhonete do lado de uma das bombas e contei o resto do dinheiro que eu tinha. Minhas notas estavam acabando e eu precisava arranjar um jeito de ganhar mais dinheiro. Roubar nunca foi algo que eu concordei com, mas, a esse ponto, eu estava considerando essa possibilidade. Afinal, eu precisava sobreviver e continuar fugindo para que isso fosse possível. Separei metade das notas e as coloquei em minhas botas. O resto delas eu usei para pagar pelo diesel. Não deu pra completar o tanque, mas pelo menos a luz de reserva desaparecera.
Não muito distante do posto, eu avistei luzes neons. Era um letreiro e o lugar parecia estar um pouco movimentado. Estacionei a minha Chevy de lado, quase à frente do local. O letreiro neon, em cores azuis e vermelhas, dizia "Cherry Bar". E outro letreiro menor na porta dizia que estava aberto ao público. Decidi entrar. Haveria de ter alguma coisa lá dentro que eu poderia aproveitar para ganhar dinheiro, seja essa coisa lícita ou não. Eu não ligava. Eu tinha coragem e disposição de sobra para ganhar alguns trocados ou algumas bebidas de graça.
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Música do Capítulo 4: American Honey - Lady Antebellum
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