3. Hit me with your best shot
Atravessei aquela praça vazia e silenciosa. A cidade toda ainda estava dormindo. Fiquei aliviada em encontrar minha Chevy no mesmo lugar que eu a havia deixado. Ela estava intocável e um pouco do orvalho da manhã fez com que os vidros se embaçassem. É por isso que eu gosto de cidades pequenas! Carros sem alarme, gente simples, estradas longas e sem trânsito, além das estrelas mais aparentes.
Sentei no banco e joguei a arma que eu carregava enfiada em um lado da minha calça no banco do passageiro. Ela estava me incomodando, já que eu havia passado esse tempo todo tentando escondê-la do padre. Até dormi com ela debaixo do travesseiro para que ela não fosse descoberta.
Meu corpo não cheirava tão mal por causa do banho que eu tomara, mas minha blusa estava bem suja. Alcancei a mochila com algumas roupas que eu havia separado e tirei de lá a primeira blusa que achei. Olhei para os lados e não havia ninguém pelas ruas naquela hora. Com as janelas embaçadas dificultando a visualização de dentro do meu carro, eu troquei de blusa ali mesmo, ajeitando um pouco meu sutiã. E como eu odiava essa peça de roupa chamada sutiã que só me sufocava! Só que era necessário, infelizmente eu não era mais a tábua que eu era quando criança. Eu mal sei quando meu corpo começou a mudar e ter curvas, mas eu não gostava. Essas malditas curvas só serviam para que homens nojentos me olhassem com malícia.
Abotoei a nova blusa e usei a suja para desembaçar o pára-brisa antes de dar a partida no carro. Eu não sabia para onde eu iria, mas não fazia questão de saber. Saí de Pikeville e dirigi por uma estradinha sinuosa. Eu estava adentrando ainda mais o Kentucky e era bom conhecer um novo estado, já que eu nunca havia saído do Tennessee. Passei por várias casas, fazendas e fábricas, sem contar com as grandes áreas de plantação. O tempo estava firme, apesar do sol não estar muito forte. Eu olhei para o retrovisor e vi uma caminhonete preta atrás de mim. Eu estava com o braço apoiado na porta, com a janela completamente aberta, deixando o vento bater com força no meu rosto. Às vezes eu beliscava os salgadinhos e todas as porcarias que eu havia comprado naquela loja de conveniência e dava uns goles ali e aqui na garrafa de uísque, por mais que quente. Eu teria que fazer aquela garrafa durar, afinal meu dinheiro era limitado.
Apertei o botão para tirar a fita da gravação das músicas da Loretta Lynn de dentro do toca fitas umas dez vezes seguidas até perceber que ela não ia sair. Estava emperrada lá dentro. Apertei de novo o botão e agora ele e a droga da fita estavam emperrados. Merda. Bati umas vezes no toca fitas até chegar a socá-lo, mas não funcionou. Inclinei-me para ver se eu conseguia colocar meus dedos na abertura e tirá-la de lá. Sem perceber, minha mão que estava ao volante o girou para a esquerda. Ouvi uma buzina alta e forte de caminhão e voltei rapidamente o volante para a posição inicial. O caminhão passou por mim ainda buzinando e eu soltei um suspiro de alívio. Eu havia invadido a pista contrária em um momento de puro deslize. Eu realmente ia ficar com raiva de mim mesma se eu tivesse causado um acidente por uma razão tão banal.
Quando meu coração desacelerou, eu olhei para o retrovisor de novo e vi a mesma caminhonete preta. Aquilo me intrigou e a proximidade que ela estava da minha traseira me deixou um pouco desconfortável.
Diminuí a velocidade tirando o pé do acelerador. A caminhonete continuava colada atrás de mim. Diminuí um pouco mais e ela acompanhou minha velocidade. A pista contrária estava vazia e podia se ver de longe que não vinha nenhum outro automóvel. Por que raios ela não tinha me ultrapassado ainda? Diminuí a velocidade ainda mais, tendo até que diminuir também uma marcha. A maldita não saía de trás de mim. E com isso eu tive a confirmação de que aquela caminhonete estava me seguindo ou quem sabe querendo brincar com a minha paciência. Meu pé pisou fundo no acelerador, recuperando a velocidade, e minha mão passou a marcha rapidamente. Eu excedi os limites de velocidade, mas não havia nenhuma polícia ali para me fiscalizar. A caminhonete também acelerou, acompanhando meu ritmo. Já tinha virado uma questão pessoal.
Eu revezava meu olhar pelos retrovisores, tentando ver quem estava dentro da caminhonete. O vidro estava escuro demais para que eu pudesse enxergar claramente, mas eu havia notado que era um homem. Acelerei mais um pouco, indo para a pista contrária que estava vazia. A caminhonete não acelerou mais para me ultrapassar, ao invés disso esperou eu voltar para a faixa certa. Que raiva. Porém eu havia feito aquilo para ter uma visão da janela lateral, mas ela estava fechada. Droga, eu realmente queria ver a cara do sujeito que estava testando minha paciência. Acelerei mais ainda pela estrada, olhando sempre o retrovisor. Depois de um tempo, a caminhonete sumiu da minha visão. Talvez eu tenha conseguido me afastar o suficiente. Contudo, eu ainda precisava de uma prova de que aquilo não havia sido um mal entendido, alguém que não tinha segurança no volante para ultrapassar ou qualquer coisa assim. Eu diminuí a velocidade assim que avistei um comércio à beira da estrada. Parei bem em frente dele, notando que era um bar bem parecido com o bar do velho Frank, só um pouco menos cuidado. Tirei as chaves da ignição e coloquei-as no meu bolso da calça. Peguei a arma que estava jogada no banco do passageiro e a coloquei entre meu quadril e a barra da calça justa, cobrindo-a com minha blusa. Desci da caminhonete olhando bem para os lados e não vi nenhum sinal de algo suspeito. Entrei pelo bar e o cheiro não agradou muito meu olfato. Cheirava a suor e gasolina. Talvez com um pouco de mofo também para completar o odor. Segurei minha respiração e tentei não fazer cara de nojo. Afinal, uma garota entrando em um bar daqueles e ainda fazendo cara de nojo ia chamar muito a atenção de curiosos.
Por sorte, o bar estava tranquilo. Apenas uns clientes lá e cá. Cheguei ao balcão, encarando o homem barbudo com um palito mastigado entre os dentes.
- Onde fica o banheiro? - perguntei
- O banheiro é só para os clientes, mocinha - o homem disse sem tirar o palito da boca
Meus olhos o fuzilaram por ter me chamado de mocinha.
- Uma dose de rum, por favor.
Ele pareceu se surpreender com o meu pedido.
- Não entendeu o que eu disse? - perguntei após o silêncio cheio de humor de sua parte
- Sua mãe sabe que você está aqui? - ele falou, zombando
- E sua mãe tem um véu preto? Porque seria bem útil caso o filho dela não atenda meu pedido e acabe se encontrando por acaso com o cano da minha arma.
Eu sorri ironicamente.
- Onde fica o banheiro? - eu perguntei mais uma vez
Ele, nada contente, indicou o caminho com a cabeça. Eu fui a passos largos até a porta, observando todos ao meu redor. Havia um homem no balcão, bebendo. Outro sentado em uma mesa distante com um cigarro na boca, embaralhando cartas de baralho. E ainda outro, sentado, analisando cada movimento que eu fazia. Eu estava de olho nesse último e minhas mãos estavam prontas para reagir a cada momento.
Entrei pela porta e tentei não vomitar ao ver a privada. Parecia que aquele lugar não havia visto a cor de um desinfetante há meses. Ainda sim, coloquei a arma sobre a pia, com nojo e abaixei minha calça, agachando-me com dificuldade. Eu não ia encostar nem me pagando naquele vaso, então foi complicado, mas eu consegui aliviar minha vontade de ir ao banheiro. Já disse o quanto é injusto ser mulher e não poder mijar em pé? Não? Então estou dizendo agora. Além de tudo o que a gente tem que sofrer, ainda somos impedidas de fazer xixi em qualquer moita ou parede por aí. Não havia papel higiênico, então, eu, ainda com nojo e sem esconder minha expressão facial, esperei um certo tempo antes de subir a calça novamente. Coloquei a arma de novo entre minha pele e o tecido jeans, lavando a mão. Ao menos a água corrente não era amarelada. Saí do banheiro e encontrei a dose de rum esperando por mim. Bebi tudo de uma vez só. Minha garganta reclamou e meu cérebro pareceu apagar por um breve momento. E como eu gostava daquela breve inconsciência!
Alcancei minhas botas, tirando de lá duas notas de um dólar e jogando-as no balcão. O homem parecia me encarar sem acreditar. Qual é? Tinha perdido alguma coisa na minha cara? Virei-me de costas a ele, encostando meus ombros no balcão. Olhei ao redor do bar e contei quatro clientes e não três como eu notara anteriormente. O que me observava agora estava com a cabeça caída, como se tivesse apagado em cima da mesa. Talvez ele nem estivesse me encarando e sim em algum transe e tinha caído de bêbado. Os outros continuavam na mesma posição. Mas o quarto homem estava sentado em um canto, próximo à parede, usando um chapéu que cobria seu rosto até o começo da boca. Reparei que ele apenas estava sentado ali, não havia nenhuma bebida à sua frente, era como se ele houvesse acabado de chegar. E quem vai para um bar daqueles para ficar sentado encostado à parede daquele jeito sem uma bebida? Discretamente, olhei para a entrada do local, vendo minha a traseira da minha caminhonete estacionada. Só que eu reparei que havia uma sombra que não estava ali antes. Disfarçando, inclinei um pouco minha cabeça e vi um pedaço de outra caminhonete. E o pedaço da lanterna dianteira denunciou a cor da caminhonete parada atrás da minha: preta.
Voltei meu corpo para o balcão e, discretamente, fui ficando cada vez mais perto da porta, até estar do lado de fora. Assim que saí, tirei a chave de dentro do bolso e a arma de dentro da calça. Corri até minha caminhonete e acelerei. Olhei para o retrovisor e vi o quarto homem saindo às pressas do bar e entrando na caminhonete. Acelerei ainda mais, olhando a arma em minhas mãos. Eu dirigia com ela em meus dedos e meu coração batia forte. Troquei as marchas com cuidado, já que meus dedos estavam no gatilho. Meu olho estava grudado ao retrovisor e eu via cada vez mais a caminhonete preta se aproximar. Olhei para frente, vendo um caminhão lento em minha frente. Acelerei tudo o que pude para conseguir ultrapassá-lo antes de outro automóvel passar na pista contrária. Foi arriscado, já que eu não tinha muita visão do que estava à frente, mas invadi a pista contrária, ultrapassando-o, um pouco antes de outro caminhão no outro sentido me encontrar. A adrenalina fez meu coração bater forte. Eu havia ganhado um pouco de tempo já que a caminhonete já não estava mais à minha cola, mas continuei acelerando e peguei uma saída para uma rodovia maior e mais movimentada. Quanto mais carros, melhor para eu desaparecer de sua vista. Eu ficava imaginando por que é que ele estava me seguindo. Será que meu amado pai havia contratado esse homem para me achar? E, se sim, será que era um matador de aluguel só por vingança? Eu não queria pensar sobre isso, mas eu sabia que teria que ter muito mais cuidado daqui pra frente, já que, eu mal sei como, mas já haviam descoberto que eu estava no Kentucky e não mais no Tennessee.
Depois de alguns momentos ainda em alerta, eu finalmente relaxei, jogando a arma que ainda estava na minha mão no banco do passageiro. Eu parecia tê-lo despistado. Meu estômago roncou um pouco forte demais quando já estava perto da uma hora da tarde. Eu olhei para todos os pacotes de comida nada saudável ao meu lado e não quis comer nada daquilo. Eu sentia saudade da comida da minha mãe, mas eu não queria pensar sobre isso. Avistei, na beira da estrada, um lugar que parecia ser um restaurante. Peguei a saída e parei no estacionamento, colocando a arma dessa vez dentro de minha bota. Desci da caminhonete e olhei para todos os lados, me certificando que não havia nenhuma outra caminhonete preta ali. Andei devagar até a porta de entrada, vendo todas as opções que eu tinha. Era um restaurante bem parecido com as famosas, porém poucas, lanchonetes fast-food que existiam em Sweetwater. E aquele restaurante, em específico, eu não conhecia de nome. Entrei no lugar, olhando para o painel em cima do caixa e pensando o que pedir.
- Boa tarde! – eu demorei pra perceber que era comigo
Olhei para frente, tirando meus olhos do painel superior. Do outro lado do balcão do caixa estava um garoto sorrindo.
- Bem vinda ao KFC! – ele falou com uma simpatia que eu estranhei
Eu continuei parada, tentando raciocinar uma resposta.
- Já escolheu? – ele continuava em uma tentativa de conversa que na verdade estava mais para monólogo
Eu me aproximei um pouco do balcão, olhando para o painel superior mais uma vez.
- Aquele balde de frango frito ali é bom? – eu perguntei
- Sim, é a nossa especialidade! – ele falou
Eu olhei mais um pouco. O preço estava um pouco salgado, mas eu estava morrendo de fome e parecia vir bastante.
- Eu quero um então – falei
Ele digitou algo no computador.
- Crocante?
- Esse é o melhor?
- Você nunca veio ao KFC? – me olhou como se eu fosse um alienígena
- Não. Não tem onde eu moro – eu disse um pouco ríspida
- Acho que nunca conheci alguém que nunca houvesse ido ao KFC!
Ele ficou me olhando sorrindo e eu fiquei silenciosamente aguardando ele responder minha pergunta. Qual é? Esse menino tinha algum problema mental?
- Você não me respondeu. O crocante é o melhor?
- Ah, sim, sim. O melhor, na minha opinião, é o extra crocante! – ele pareceu acordar de seu coma
- É esse mesmo que eu quero.
Ele digitou mais alguma coisa no caixa à sua frente.
- São 10 dólares.
Eu enfiei minhas mãos no bolso, tirando de lá notas amassadas e joguei-as no balcão. Ele realmente me olhava como se eu fosse um animal raro em exposição e eu não estava gostando disso. Qual é? Era uma lanchonete de beira de estrada no meio do Kentucky, não é como se pessoas como eu fossem raridade ali. Ele me entregou o troco e eu esperei meu pedido ficar pronto. Eu estava incomodada com o olhar do garoto, mas fingia não me importar muito. Ele finalmente me entregou meu pedido e o cheiro do frango entrou pelo meu nariz e fez meu estômago roncar. Que fome! A lanchonete estava praticamente vazia então eu me sentei perto da janela, pegando alguns guardanapos no caminho. Aquele frango frito só não era melhor do que o que minha mãe fazia, mas isso já era pedir demais. Eu lambuzei os dedos saboreando-o. Estava bem crocante, daqueles que fazem barulho na sua boca tão alto que parece que o mundo inteiro pode ouvir. Olhei para a janela e eu fiquei com saudades de não estar na estrada. Saudades de estar em casa, de tomar café antes que o crápula do homem que eu já chamei de pai chegasse e o pesadelo de todas as noites começasse outra vez. Porém, eu tinha que me vigiar. Eu não podia deixar a saudade falar mais alto. O quão mais longe de Sweetwater ou do Tennessee eu estivesse, melhor. O quão mais longe daquela caminhonete preta me seguindo, ainda melhor.
Eu lambi os dedos e olhei ao redor do restaurante. Acabei encontrando o garoto olhando para mim, com sua cabeça apoiada nos ombros, em cima do balcão. Assim que ele notou que eu havia o visto, seu olhar se desviou e ele disfarçou. Eu soltei uma risada.
Às vezes era estranho pensar que deveria ter a mesma idade dele. Eu já passei por tanta coisa nessa vida que muita gente de 17 anos nem deve nem chegar perto de viver. Algumas vezes eu já imaginei, durante minha insônia rotineira, como seria ser uma adolescente normal. Como seria ter um pai que não batesse na minha mãe ou abusasse dela. Como seria viver na cidade, ouvir a música pop mais tocada na rádio, me preocupar com a minha roupa, meu cabelo, minhas unhas. Ser apaixonada pelo menino mais popular da escola e sofrer dramaticamente porque ele nem olha para mim. Contudo, eu era uma garota de 17 anos que andava por aí com uma calça rasgada, cheirando a suor e com uma arma dentro da bota. Eu era a garota de 17 anos que havia feito sua mãe e seu irmão fugirem, a garota de 17 anos que atirou no homem que a colocou no mundo, a garota de 17 anos que agora vive no asfalto, fugindo, escondendo-se. Aquele menino do caixa devia ter uma vida bem diferente. Talvez ele gostasse da menina mais bonita da sua sala, talvez ele tivesse uma carteira de identidade falsa para poder comprar uma garrafa de cerveja e se achar o maioral, talvez o único problema que ele tenha é um de matemática. E ele estava instantaneamente atraído pela garota errada, suja e estranha de 17 anos. Coitado. Ele não havia visto a quantidade de nós em meu cabelo? Minha roupa suja? Minha cara abatida?
Eu via seu olhar disfarçar e às vezes conferir o que eu estava fazendo. Eu ria comigo mesma. Ele não sabia o que estava querendo. Ninguém, em sã consciência, escolheria se envolver comigo. Eu olhei para a janela, rindo enquanto lambia os dedos, e notei um carro que não estava ali anteriormente. Para meu alívio, não era uma caminhonete preta. Era um outro carro, grande, porém não era uma caminhonete. Eu não conhecia novos modelos de carro, mas diria que parecia com um Maverick, talvez uma nova versão dele. A pessoa dentro do carro parecia estar olhando demais para mim. Não sei se foi só impressão minha, mas parecia. Notando que eu também a encarava, a pessoa saiu do carro. Era um homem já um pouco velho, barbudo e barrigudo. Deve ser só coisa da minha cabeça, pensei comigo mesma. Devo estar com mania de perseguição. O homem contornou o carro e entrou na lanchonete. Parou no balcão e pediu um balde de frango frito também. Eu voltei a olhar à janela. Agora era eu que estava o encarando demais e isso podia pegar mal. O homem não se sentou de primeira, nem voltou para o carro. Ficou parado, no canto. Eu evitava olhar, mas ele estava me encarando. Eu sentia seu olhar em cima de mim. E não era um olhar que nem o do garoto, era um olhar de análise de cada gesto meu. Eu fiquei completamente incomodada. Ele finalmente se sentou e eu, em contra partida, levantei. Senti seu olhar me acompanhar. Seus olhos estavam grudados em cada passo meu. Decidi ir ao banheiro do local lavar minhas mãos e ele virou a cabeça para ver onde eu estava indo. Tudo bem, acho que está provado que não era só coisa da minha cabeça. Apesar de não ser o cara da caminhonete preta, isso eu digo com certeza, pois o outro não tinha essa barba grande e nem essa barriga, ele estava me vigiando e isso era perigoso.
Entrei no banheiro e me enfiei em uma das cabines. Depois de ir realmente ao banheiro e dar descarga, tirei a arma de dentro da minha bota e a coloquei no lugar de sempre: dentro da minha calça, à altura da cintura. Cobri o revólver com a barra da blusa e fui até a pia, encarando o espelho. Abri a torneira, deixando a água correr. Talvez o garoto do caixa tenha pensado que eu sou mais velha, por isso ficou atraído. Geralmente garotos se atraem por meninas mais velhas. Ou quem sabe ele nunca havia visto uma menina na vida? Vai saber. Porque era difícil de acreditar que alguém tinha se encantado com meu cabelo cheio de frizz e sem vida, pelas minhas olheiras ou pela espinha que crescia perto do meu nariz. Lavei o rosto, desviando o olhar do espelho que só revelava meus defeitos. Na hora de enxugar as mãos, achei estranho não ter papel. Encontrei um secador que fazia um barulho horroroso. Eu não entendo essas modernidades um pouco inúteis e eficazes. Contudo, fiquei esperando minhas mãos secarem completamente. Eu também estava dando um tempo para ver se o homem não ia embora, só para assegurar que eu não ia fazer alguma bobagem.
Saí do banheiro e o capturei olhando para trás, ou seja, para mim. Foi a gota d'água. Eu saí do estabelecimento e fiquei ao lado da porta, com minha arma em mãos. Se minha intuição estivesse certa, ele não demoraria a sair dali também. E aconteceu que minhas suspeitas estavam corretas. Ele saiu e eu, com rapidez, passei minhas mãos por seu pescoço, o prendendo por trás, enquanto apontava a arma à sua cabeça. Ele era mais forte que eu e um pouco mais alto, mas ter o cano de um revólver apontado para si não o deixaria reagir. Arrastei-o junto comigo para longe da entrada e consequentemente para longe do alcance de uma câmera de segurança que eu havia reparado existir.
- O que você quer comigo? - eu falei forte
Ele não respondeu. Suas mãos estavam no meu braço que por sua vez estava no seu pescoço.
- Responde ou eu atiro. E eu não sou do tipo que não cumpre o que fala.
Sua mão direita foi a seu bolso da calça e eu apertei mais meu braço em volta de seu pescoço. Se ele estivesse tentando sacar uma arma, era melhor dizer adeus para vida logo. Contudo, ele retirou um papel dobrado e amassado do bolso e o colocou à minha vista. Eu não ia tirar a arma de sua cabeça e muito menos meu braço de seu pescoço apenas para abrir o papel.
- Abra-o - eu ordenei
Ele, com mãos trêmulas, desdobrou o papel e o virou para mim.
A primeira coisa que eu vi foi uma foto minha. Era uma foto que eu havia tirado junto com meu irmão por insistência de minha mãe. Fomos até um estúdio, então era uma daquelas fotos bem cafonas com fundos planos e com cores duvidosas. Porém meu irmão estava cortado da foto.
Em cima de meu retrato estava escrito "desaparecida" em letras garrafais. Em baixo da foto, estava meu nome de batismo, uma suposta data do meu desaparecimento, que, não por mera coincidência, era a mesma data do dia em que atirei em Walter, meu amado pai. Havia alguns contatos do mesmo e uma oferta de recompensa. Aquela oferta de recompensa foi o fim para mim. Algumas mudanças ali e aqui e aquilo poderia muito bem ser um cartaz de "procurado", como os xerifes do velho oeste faziam com criminosos. Meu pai era um canalha e, pelo jeito, estava dando recompensa para quem me capturasse viva para fazer seja lá o que quer fazer comigo depois. Talvez me fazer de saco de pancada já que não tinha mais minha mãe? E qualquer um que entendesse como as coisas funcionam nessa área, sabia muito bem que meu pai não estava desesperado pelo meu desaparecimento. Ele tinha é iniciado uma caça ao tesouro.
Não demorou muito para que eu percebesse que o papel estava rasgado porque fazia parte de uma pagina de jornal. Ele havia anunciado minha sentença de morte para o Tennessee e mais não sei quantos estados próximos verem. Minha avó paterna que eu não cheguei a conhecer que me perdoe, mas que filho da puta.
- Coloque o papel na minha mão – eu ordenei
Ele continuou parado, em pura tensão.
- Não ouviu o que eu disse? – falei forte
Ele esticou seus braços e alcançou a minha mão que não segurava a arma, que estava ao lado de sua cabeça já que meu braço atravessava seu pescoço de maneira rude. Eu agarrei aquele papel entre os dedos e, com cuidado, o livrei de meu braço. Contudo, continuei apontando a arma a ele, que parecia estar planejando reagir.
- Coloca as mãos pro alto – mandei
Eu sabia que ele estava armado e estava prestes a sacar sua arma. Ele jogou seus braços trêmulos à altura dos ombros, atendendo minha ordem.
- Você vai voltar pro seu carro, como se nada estivesse acontecido. Caso você volte para reagir, ou caso você tente me seguir depois, saiba que essa bala está guardada para você. E, bom, você não pode fazer nada comigo já que para ganhar a tal recompensa precisa de mim viva. Então nós dois sabemos quem está em vantagem aqui. Se eu te matar, ninguém vai nem se importar. Mas se você me matar, coitado de você, que além de ter que lidar com a polícia e os defensores dos direitos humanos, afinal eu sou uma pobre menina desaparecida, você ainda vai ter que lidar com o crápula do meu pai, que não admitiria que ninguém além dele se vingasse de mim. Então volta pro seu carro, acelera para longe daqui e nem ouse contar para ninguém que me viu. Anda. Vai.
Eu apontei o caminho com a arma, mandando-o ir. Ele andou a passos lentos, desconfiado de mim. Com as mãos ainda na altura dos ombros, o vi andar com um pouco de pressa até seu carro e sair. Eu estava encostada à parede e ainda com a arma apontada para frente, esperando-o ir embora para nunca mais voltar. Ele só faltava ter corrido! Covarde. Ri comigo mesmo, pensando que uma garota de dezessete anos tinha colocado um homem barrigudo com seus cinquenta anos para correr.
Olhei para baixo, abaixando a arma e me encostando à parede dos fundos da lanchonete. Quando olhei para o lado, levei um susto. O garoto do caixa estava com um saco de lixo na mão, saindo de uma porta dos fundos. Parecia estar ali, parado, há um tempo. Sua mandíbula estava quase alcançando o concreto do chão e seu olhar estava desacreditado. Eu desviei o olhar dele, guardei discretamente a arma na lateral de minha calça e enfiei o papel amassado em um dos bolsos e saí, sem dizer uma palavra. Droga. Peguei as chaves da minha caminhonete e entrei nela, acelerando e saindo do estacionamento o quanto antes. Pensei comigo mesmo se não estava correndo perigo pelo moleque ter presenciado a cena. Todavia, concluí que não. Ele não tinha cara de ser muito esperto. No máximo contaria a seus colegas de escola, que duvidariam dele até o fim. E, também, eu já estava em perigo, não tinha como ficar muito pior.
A verdade é que eu estava cansada de dirigir. Eu gosto de dirigir, não me leve a mal. O problema é que eu estava sendo obrigada a dirigir e isso estava me incomodando. Tudo o que me fazia sentir obrigada me incomodava. Só que eu não tinha outra opção. Tirei o papel amassado de dentro de meu bolso e o joguei ao banco do passageiro, que estava uma tremenda bagunça. Coloquei a garrafa de Jack Daniels em cima do papel para que ele não voasse com o vento que adentrava as janelas. Eu tinha que continuar andando, fugindo, me escondendo, agora ainda mais depois desse novo fato. Um anúncio de desaparecimento no jornal? Foi um tremendo golpe baixo e uma tremenda falta de vergonha na cara. Ah, mas vergonha era tudo o que meu querido pai não tinha! Só quem nunca passou mais de duas horas com minha família acreditaria que ele estava realmente querendo me encontrar. Sabe lá qual a razão ele havia inventado para acobertar o sumiço também de minha mãe e meu irmão, mas ele estava querendo a mim. Disso eu não posso me queixar: ele estava seguindo o que eu havia lhe falado. Ele havia procurado a mim para vingar-se e não a eles dois. E eu esperava mesmo que ele não estivesse procurando o resto da família porque eu não pensaria duas vezes antes de atirar de novo em seu corpo.
A fita com gravações de musicas da Loretta Lynn continuava emperrada e não tocava mais. Decidi dar uma chance às estações de rádio, mas não havia uma que prestasse. A música hoje em dia parece tão robotizada. Esses efeitos de som me doem os ouvidos. Eu gostava mesmo é das musicas dos anos cinquenta e confesso que Elvis dá de dez em qualquer um desses ídolos pops de atualmente. Finalmente achei uma rádio razoavelmente boa. Uma radio country, para falar a verdade. Eu não conhecia a maioria das músicas, mas eram boas, falavam de coisas reais, coisas às quais eu conseguia me relacionar. O campo, as estrelas, o pequeno riacho escondido que só eu sabia onde se encontrava, o vento batendo em meu rosto quando eu decidia passear com Pelúcia, cavalgando sem rumo. O cheiro de terra molhada quando chovia. Tudo isso, todos os sentimentos que esses momentos me traziam, cabiam naquele ritmo simples. Eu suspirei. Eu gostava daquela vida e gostava do Tennessee. E, apesar de estar sentindo um pouquinho de diferença, estava gostando de conhecer o Kentucky, principalmente suas cidadezinhas. E foi em uma dessas cidadezinhas que decidi entrar quando a paciência para dirigir acabou. Prestonburg foi a escolhida. Não devia ter nem três mil habitantes, mas era bonita e bem cuidada.
Estacionei minha Chevy em uma de suas ruas e fiquei olhando o movimento. Tudo bem, quase não tinha movimento, mas às vezes algum carro ou alguma criança de bicicleta passava pela rua. Olhei para o banco ao meu lado, vendo o papel rasgado. Eu tinha que ter muito cuidado daqui pra frente, já que meu rosto havia sido estampado publicamente, dando inicio a uma caçada cuja presa era eu. Debrucei-me contra o volante. Minhas pernas doíam. Minha coluna também. Esfreguei meus olhos e olhei ao redor mais uma vez. Foi quando um letreiro simples me chamou a atenção. "Farmácia". Olhei para a folha rasgada ao meu lado novamente. É isso. Eu tinha acabado de ter uma ideia que poderia me ajudar a ganhar um pouco de tempo contra os caçadores.
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Música do Capítulo 3: Hit Me With Your Best Shot - Pat Benetar
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