2. With lovin' on your mind
O Sol já havia nascido e tudo indicava que ia ser um dia quente, típico de início de verão. Eu tentava não pensar em minha mãe ou em Kevin. Eu tinha que me desligar deles ou só causaria mais problemas.
Eu havia saído da estrada de terra e entrado no asfalto. O quente, plano e monótono asfalto que fazia com que eu diminuísse a velocidade que dirigia. Eu me sentia uma lesma dirigindo sobre ele, por mais que o velocímetro marcasse o máximo permitido. Para quem acabou de dar três tiros em alguém, manter-se dentro da velocidade permitida parecia bobagem, mas eu não queria ir parar na polícia para pagar uma multa qualquer e ser descoberta.
Falando nisso, gastei três balas com o desgraçado. Eu chamaria de desperdício, mas não foi. Foram balas muito bem usadas e localizadas. A primeira em sua garrafa, apenas para mostrar que eu não estava brincando. A segunda em seu pé, para que ele caísse no chão. A terceira e última em seu abdômen, para que assim ele não tivesse força o suficiente para se levantar. Fora tudo minuciosamente planejado esses anos todos dentro de minha mente e eu mal acreditava que tinha finalmente posto em prática. Se isto faz de mim uma psicopata? Não sei. Mas eu não me arrependo desse meu crime nem por um segundo. Na verdade, já havia se passado 15 minutos desde que eu saíra daquela casa e eu aposto mil dólares que o socorro ainda não chegou até ele. Imaginei-o caído no chão, agoniando de dor, e soltei uma risada. Talvez eu seja mesmo um pouco psicótica.
Avistei o bar do velho Frank Harold e encostei minha Chevy à frente dele. Foi quando uma ambulância passou por mim em alta velocidade. Eu sorri sem ninguém perceber. Desci do automóvel e entrei no bar a passos largos. Por sorte, ainda estava vazio já que acabara de abrir.
- O que faz aqui tão cedo, menina? - ele disse, sem desviar os olhos do seu caderno de contabilidade
- Eu só preciso de uma garrafa do meu amigo Jack ali - me referi ao uísque
- E sua mãe sabe que você está gastando dinheiro com isso? Sabe, senhorita, a lei está ficando mais rígida. Eu posso ir para cadeia por vender bebida para uma menina de 17 anos.
- Primeiro, eu posso ter 17 anos, mas não sou menina há muito tempo. Segundo, minha mãe está bem longe dessa cidade. Terceiro, você pode mesmo ser preso se demorar muito para me dar aquela garrafa ali e me encontrarem aqui com você.
Ele ficou sem entender. Da porta lateral, Regina Harold saiu, encarando-me nada contente.
- Eu quero ter uma palavrinha com você, garota. Venha aqui. Seu uísque pode esperar - falou como se fosse minha mãe
Eu rolei os olhos, já impaciente, e passei pelo balcão, indo até a parte lateral do bar.
- Priscilla - ela começou
- Freedom - eu a corrigi
- Que seja - sua fala encheu-se de desdém - O que você quis dizer falando que sua mãe está longe? O que você fez? Deixou aquele traste de seu pai levá-la para outro lugar e a abandonou sozinha com ele?
- Não fale bobagens, Regina. Você me conhece desde que nasci, você sabe que eu nunca abandonaria minha mãe.
- Então por que está fugindo? Qual é a dessa pressa toda?
- Eu talvez tenha convencido ou quem sabe obrigado minha mãe a pegar um trem para um lugar bem longe daqui junto com meu irmão. E eu talvez tenha atirado em Walter - nem ao menos me dei ao luxo de chamá-lo de pai
- Você o matou? - ela levou a mão à boca
- Não, só o machuquei um pouco. A morte não é uma vingança muito divertida.
Eu estava esperando que ela me puxasse pela orelha e me desse um belo sermão, mas ela não o fez. Ao invés disso, sua boca se curvou num sorriso, fazendo as várias rugas em seus olhos ficarem mais visíveis.
- Eu mal acredito que Deena conseguiu fugir! E é tudo culpa sua! Obrigada, menina!
Ela me abraçou, porém não sabia que eu não tinha nenhuma habilidade com abraços.
- Vamos, você não tem muito tempo! Tem que ficar bem longe daqui. Se aquele desgraçado sobreviver, vai colocar todos os capangas dele atrás de você - falou ao me largar
Eu a vi gritar a Frank para que buscasse a garrafa de uísque com pressa. Ela se adentrou em uma porta e eu a segui, encontrando uma cozinha. Embalou em um papel alumínio alguma comida que eu não consegui identificar de primeira.
- Você não vai sobreviver só de uísque! - ela disse, arrumando mais um pote, desta vez de biscoitos de nata
- Rápido, Regina. Eu não posso demorar muito. Tempo é distância no meu caso.
Ela se apressou um pouco mais e eu a vi embalar tudo em um pano de mesa. Colocou tudo em minhas mãos e correu até outro cômodo, voltando de lá com um pequeno pote de vidro e algumas notas de dinheiro.
- Regina, não precisa, eu agradeço, mas eu tenho dinheiro.
- Quanto mais, melhor. E leva esse perfume, você vai precisar quando não puder tomar banho. Na verdade, você está precisando dele agora mesmo.
Eu ri enquanto ela me arrastava para fora dali. Peguei a garrafa com Frank e saí do bar depois que ela me desejou boa sorte em meio a várias perguntas dele sobre o que estava acontecendo. Coloquei tudo no banco do passageiro enquanto dava partida ao motor. Eu sentiria falta de todas as vezes que quase quebrei a mão de algum engraçadinho que tentava me tocar naquele bar, sentiria falta também do torresmo de Regina e do velho tocador de vinil. Mas, agora, eu não tinha como voltar atrás.
A janela completamente aberta e o vento indo de frente ao meu rosto. A alta velocidade, a pastagem passando como um borrão ao meu lado. Tudo parecia parte de um sonho. As preocupações antigas já não existiam mais, o medo de que minha mãe e meu irmão fossem machucados não existia mais. Agora, eu estava cheia de esperança. Quando o barulho do vento entrando pela janela começou a me cansar, decidi apertar o botão de play do toca-fitas instalado no painel. Em poucos segundos, reconheci aquela voz da gravação.
Quando compramos nosso primeiro rádio com tocador de fita que ainda gravava a música transmitida, uma modernidade aos nossos olhos, minha mãe, em seu tempo livre, sentava-se ao lado dele, sincronizando a rádio, pronta para apertar o botão de gravar quando tocasse uma música que ela gostasse. Ela ficava ajustando a antena, tentando fazer com que a transmissão da única rádio que pegava em nossa casa ficasse melhor. E minha mãe tinha certa paixão por qualquer música da Loretta Lynn.
Lembro, uma vez, que ela estava na cozinha, descascando batatas, e uma música da cantora começou a tocar na rádio. Minha mãe gritou para que quem quer que estivesse mais perto apertasse o botão para gravar a música na fita e ao mesmo tempo correu para a sala com uma faca na mão, desesperada. Acontece que ela estava esperando aquela música tocar há dias somente para gravá-la. E agora essa gravação estava sendo reproduzida e saindo com alto volume nos auto-falantes da minha caminhonete. "Don't Come Home A-Drinkin'" era o nome da música.
Eu entendo por que minha mãe queria tanto gravá-la e para tal ato até correu o risco de sair correndo com uma faca afiada na mão. Loretta cantava tudo o que a minha mãe queria cantar, mas não tinha coragem. Sabe quando as mães querem que os filhos sigam o mesmo caminho que elas? A sorte de minha mãe é que eu fiz exatamente o contrário. Eu só espero que ela esteja bem agora, se recuperando finalmente de toda a agressão. Que ela tenha uma pele livre de hematomas e quem sabe um sorriso verdadeiro nos lábios e que esteja cantando a mesma música que eu estou ouvindo sem qualquer medo.
O barulho do meu estômago reclamando de fome chegou a ser mais alto que a música quando o começo da tarde chegou. Eu segurei o volante com uma mão e abri o pano que Regina Harold havia me entregado. Água formou-se na minha boca assim que o cheiro dos famosos torresmos invadiu meu olfato. Os torresmos de Regina não eram quaisquer torresmos. Eles tinham fama com razão! Ela fazia questão de fritá-los com pedacinhos de bacon, fazendo o que já era bom ficar ainda melhor. E o Senhor abençoe Regina por ter embrulhado uma grande porção deles para mim!
Matei minha fome e minha gula com eles, tentando não engordurar muito o volante com meus dedos. Minha sorte era que as estradas nessa parte do país são planas, retas. Nada de curvas, nada de altos e baixos. Nada de engarrafamento. Apenas uma infinita linha de asfalto preto em meio ao marrom e bege das pastagens. E eles estavam começando a ficar mais verdes, menos desérticos, pois o verão e suas chuvas estavam chegando.
Passei a tarde daquele jeito: viajando. Sentindo o vento em meu rosto, apreciando a paisagem, cantando junto com a fita e tomando o uísque um gole por vez. Só encostei no freio mais bruscamente quando um urubu cruzou meu caminho, mas foi a única vez. Meu pé nem minha mão faziam muito esforço para dirigir naquela estrada vazia e praticamente infinita. Eu mal sabia para onde estava indo, eu estava deixando a estrada me levar.
Quando eram três horas da tarde, minha Chevy começou a reclamar. Acontece que ela também estava com sede. Dirigi mais um pouco, tentando achar um posto de gasolina. Acabei tendo que entrar numa cidade pelo caminho para abastecer. Assim que encontrei um posto, desci do automóvel e fui até à bomba, pegando a pistola e esperando o tanque se encher. Reparei que, no posto, havia uma loja de conveniência e duas garotas estavam à frente dela. Deviam ter minha idade, pela altura e pelos traços no rosto. Sobretudo, eu parecia mais velha do que aparentava, então, parecia mais velha que as duas. Abasteci e fui até a loja para pagar pelo combustível.
Quando passei pelas duas meninas, seus olhos foram direto à minha calça rasgada e blusa amassada e seus olhares desprezaram-me. Pareciam estar vendo um alienígena ou quem sabe um homem feio para seus padrões. Elas não me pareceram muito humanas também não. Estavam vestidas estranhamente, com calças justas até demais e feitas de um tecido elástico. Em contraste, tinham blusas largas e compridas. Uma tinha o cabelo liso preso em um rabo de cavalo alto, porém lateral. A outra tinha um cabelo crespo e armado. Nós pés, tênis coloridos. Uma ainda vestia uma meia esquisita que mais tarde descobri se chamar polaina. Nome estranho. E para que aquecer os tornozelos em pleno começo de verão? Porém, a análise mútua que fizemos, eu delas e elas de mim, não durou mais que dois segundos. Elas logo voltaram para a discussão que estavam tendo antes que eu chegasse. E, passando por elas, não demorei muito tempo para entender que estavam brigando por homem.
Entrei na loja rindo daquela cena deprimente e encarei as prateleiras. Sweetwater também tinha lojas de conveniência, mas nada tão sofisticado como aquela. Havia produtos que eu nunca havia visto na vida e revistas sobre gente famosa que para mim era bem anônima. Peguei uns pacotes do que me pareceu ser bom, como salgadinhos e alguns chocolates e um refrigerante. Eu ainda tinha três quartos da garrafa de uísque então não precisava me incomodar em comprar mais. Além de tudo, não sei se o rapaz no caixa me deixaria comprar.
Após algumas idas e vindas pelo corredor, parei em frente ao balcão de saída e despejei o que eu havia pego ali. O rapaz me olhou um pouco desconfiado, mas passou meus produtos. Foi quando algo que nunca me chamou muito a atenção prendeu meus olhos. Um pacote de cigarros à minha frente. Eu já havia fumado uma vez, mas nunca fui muito disso. Pensei comigo mesma e percebi que eu teria muito tempo livre perdida na estrada. Resolvi pegar o pacote e colocá-lo junto com os pacotes a serem passados no caixa. O rapaz olhou ao meu rosto mais desconfiado ainda, mas não disse uma palavra ao passar a caixa de cigarros. Eu realmente parecia ter mais que 17 anos. Paguei pelo combustível e pelos produtos e saí pela porta de vidro. As meninas continuavam lá fora, discutindo uma com a outra.
- Ei - eu chamei a atenção das duas
Elas pareciam não acreditar que eu havia falado com elas.
- O quê? - uma delas perguntou
- Vocês sabem o quão patético são duas garotas brigando por homem? Não. Homem não. Esse sujeito deve ser um garoto da escola, acertei?
Elas me olharam sem falar nada e uma cruzou os braços.
- O que você tem a ver com isso? - uma delas disse
- Eu só acho que vocês estão brigando em vão. Pelo o que eu ouvi, ele estava saindo com as duas ao mesmo tempo. Eu só me pergunto por que vocês estão brigando uma com a outra ao invés de estarem chutando o traseiro dele. Ele é o mentiroso e cafajeste nessa história toda e vocês ainda ficam brigando para ver quem é que fica com ele?
A feição no rosto delas mudou. Foi do "o que você tem a ver com isso" para o "você parece ter razão" em segundos. Porém, nenhuma palavra foi dita por elas.
- Pensem nisso - eu disse, dando minhas costas e indo até minha caminhonete
Entrei no automóvel, despejando a recém-compra no banco do passageiro e abri a caixa de cigarros, retirando um de dentro e pondo-o em minha boca. Abri o porta luvas, procurando meu isqueiro velho e o encontrei após alguma procura. Acendi o cigarro e acelerei, saindo dali. Quando passei e olhei para as meninas, elas já não discutiam mais.
Demorou um pouco para perceber que eu já tinha passado dos limites do Tennessee. Meus olhos já estavam cansados e eu decidi que iria parar na próxima cidade que encontrasse. A placa "Bem Vindo a Pikeville, Kentucky" alcançou minha vista e eu resolvi entrar na cidade, quem sabe achar um lugar no qual eu pudesse parar minha caminhonete e dormir. Pikeville era uma cidade pequena, com no máximo cinco mil habitantes, assim como Sweetwater. E, como toda cidade pequena do interior, tinha uma praça bem na frente da pequena prefeitura.
Eu parei minha Chevy em uma das ruas ali perto, vendo o movimento. Arregacei minhas mangas e tirei a chave da ignição, vendo que o nível de combustível estava pela metade. Como eu amava o quão econômica era minha velha caminhonete de 1965. Ou talvez eu fosse um pouco enganada, pois o seu tanque comportava uma grande quantidade de combustível. Enfim, eu era apaixonada por cada pedaço de tinta se descascando de sua lataria não importando a razão. Desci do automóvel e vi uma barraca de cachorro quente no meio da praça. Algumas crianças brincavam de patins ali, apesar de ser noite. Eu estava me sentindo um pouco deslocada, mas eu precisava relaxar. Então me sentei em um dos bancos ali e fiquei observando o movimento. Eu observava as crianças indo e vindo com seus patins e aquilo me botou tanto um sorriso no rosto quanto um pouco de saudade. Saudade do pestinha do meu irmão. E também vontade de saber se ele e minha mãe estavam bem ou não. Era por eles que eu havia feito tudo isso. Era por eles que eu havia aguentado tantos anos naquela casa sem fazer nada. Então tudo o que me importava era saber se eles estavam bem. E como Kevin ia adorar aquela praça! Eu o imaginava com seu skate ali, junto às outras crianças, feliz, implorando por um cachorro quente depois.
Perdida em pensamentos, eu levei um susto quando uma criança caiu logo à frente de onde eu estava sentada. Sua queda deve ter-lhe rendido joelhos e palmas da mão ralados, mas nada muito grave. Ela, ainda no chão, começou a chorar alto e, antes que eu pudesse ajudá-la, seu pai correu até ela e agachou-se perante a menina.
- Você está bem? Se machucou muito? – o pai disse, levantando-a um pouco desesperado e procurando por machucados na criança
Ela, ainda chorosa, se agarrou ao pescoço do pai e eles se distanciaram, saindo de minha vista. Aquela cena me fez doer por dentro, como se meu coração estivesse sido corroído em ácido. Corroído e não quebrado. Quebrado ele já estava há muitos anos.
- Precisa de ajuda, jovem?
Aquela fala fez com que a minha concentração saísse da minha própria dor e fosse até o rosto que havia falado aquilo comigo. Ainda sentada no banco, encarei o homem em pé ao meu lado. Estava de óculos, com uma roupa preta que eu não consegui distinguir na luz fraca do ambiente e, pela gola de sua camisa, percebi que se tratava de um padre. A gola clerical não me fez ter dúvidas. Sim, aquela faixa branca na gola da camisa. Sim, eu também só descobri depois que aquilo se chama gola clerical.
- Não, obrigada – eu disse, um pouco incomodada com sua presença
- Tem certeza? Não precisa de comida, quem sabe um banho, um lugar para descansar?
Eu então olhei para o meu corpo. Minha calça encardida e rasgada. Minha camisa toda amarrotada. Eu com certeza tinha grandes olheiras no rosto e meu cabelo estava cheio de nós. E eu nem começo a falar do cheiro: cigarro com uísque. Ele deve ter me confundido com algum andarilho ou morador de rua, quem sabe. Olhei para o padre de novo. Se ele não fosse padre, eu talvez desse uma resposta atravessada.
- Um banho seria bom – foi tudo o que eu falei
Resolvi aceitar sua boa vontade. Ele não merecia minha rispidez. Tinha um rosto bondoso e estava prestes a alimentar e dar abrigo para uma menina de rua, pelo menos era o que ele pensava que eu era. E eu não estava muito bem de vida para negar comida, banho e uma cama de graça. Acompanhei-o até uma igreja pequenina que ficava na mesma praça. Eu estava constrangida e achei aquele sentimento estranho. Eu nunca tinha vergonha de nada. Entramos por uma porta lateral, onde encontrei uma pequena casa atrás do templo da igreja. Eu estava silenciosa, completamente fora da minha zona de conforto. Eu acho que senti que estava abusando da boa vontade do homem.
Após um banho, acabei vestindo as mesmas roupas surradas, porém meu corpo cheirava um pouco melhor. Ele me ofereceu água, bolo, pão, suco e eu aceitei tudo e comi de tudo um pouco. Eu não sabia quando é que teria comida assim de graça de novo, então tive que aproveitar. Ele estava empenhado em um monólogo sobre a comida e sobre a cidade e eu concordava com a boca cheia.
- Qual o seu nome? – ele resolveu perguntar sobre assuntos mais pessoais
- Priscilla – falei após engolir um pouco de suco
Tudo bem, eu sei. Eis aqui a razão pela qual eu não falei que meu nome era Freedom: ele era um padre. Não se mente para padres, ainda mais sobre seu próprio nome. Apesar de Freedom, para mim, ser o meu único nome, eu não tive coragem de dizê-lo a um padre. E, como minha mãe bem disse, ninguém se chama Freedom. Então resolvi falar meu nome de batismo para evitar mais perguntas.
- E seus pais? Ele realmente tinha que falar sobre aquilo?
- Eu não tenho pai. Minha mãe está bem longe daqui – eu não havia, tecnicamente, mentido
- E o que te traz a Pikeville? Eu nunca te vi por aqui e olha que eu conheço praticamente todo mundo dessa cidadezinha.
- Estou só de passagem.
Acho que, pelas minhas respostas curtas e diretas, ele percebeu que eu não queria conversar. Senti-me mal, mas eu não poderia contar a ele sobre tudo o que acontecera. Não é algo que padres iriam ficar muito felizes em ouvir, obviamente. Após esse curto interrogatório sobre minha vida pessoal, ele voltou a falar comigo sobre a comida. Ele não era burro e percebeu o quão desconfortável eu estava.
Deitei-me na cama reservada a mim e ele apagou as luzes, apenas me desejando boa noite e se retirando para outro cômodo. Agradeci estar sozinha de novo. Só eu e meus pensamentos. Encostei a cabeça mais a fundo no travesseiro e a insônia chegou na hora de sempre. Fiquei olhando as paredes e tentando entender por qual razão aquele quarto estava tão claro. A luz que se adentrava pelas cortinas só colaborava com a minha insônia. As estrelas que me faziam companhia à noite foram substituídas por um telhado e eu mal conseguia ver o céu da onde eu estava deitada. Suspirei, tentando encontrar o sono, mas ele não apareceu. Encarei o crucifixo que ficava na parte oposta à cama. Uma vontade súbita de confessar meus pecados – ou quem sabe explicá-los – me invadiu. Talvez aquele ambiente todo tinha me influenciado um pouco. O problema é que eu não sabia por onde começar.
- Deus? – eu falei sussurrando
Fiz um pouco de silêncio. Que idéia idiota a minha. Quem eu pensava que estava chamando? Um cachorro? E não era como se Deus fosse me responder em voz audível. Bem que eu gostaria que Ele mandasse um anjo àquele quarto para conversar comigo, mas parece que esse ato já saiu de moda.
- Eu... Desculpa, eu não sei por onde começar – eu continuei a sussurrar
Eu levei minha mão à testa me dando um tapa. Burra. Se Deus está me ouvindo, ele também está lendo meus pensamentos. Eu não precisava ficar sussurrando que nem uma retardada. Enfim. Deus, eu sei que não deve ser muito legal pro Senhor o fato que eu atirei em alguém, né? Mas foi preciso. O Senhor sabe que foi. Eu mal sei por que você me deu um pai daqueles, mas devia ser para isso, certo? Para eu não ser mais uma dona de casa qualquer que aceita tudo calada que nem a minha mãe. Então me perdoe por ter atirado nele. E, se ele morreu, me perdoe também. Eu sei que eu não tenho o direito de tirar a vida que você deu pra alguém, mas ele bem que merecia sofrer um pouquinho, vai. Eu fiz isso pela minha mãe e por Kevin, então foi um bom ato, não? Se ele estiver aí com o Senhor, ele te conta melhor o que fez esses anos todos. Oh, que ideia a minha. É claro que, se ele tiver morrido, ele não vai estar aí com você e sim com o coisa ruim. Desculpa, dá pra deletar essa parte se você estiver gravando? Eu não sou muito boa nisso. Mas, bom, proteja minha mãe e Kevin, seja lá onde eles estejam agora. E também obrigada por esse padre que me deu comida e um lugar pra dormir, por mais que eu não esteja muito tranquila para dormir agora, como sempre. Será que você já sabia que eu ia conversar com você agora e mandou ele para me encontrar? Essas coisas são muito complicadas para mim. Eu acho que eu preciso terminar com um amém, certo? Então obrigada e amém.
Eu rolei na cama um pouco mais, pensando um pouco mais em tudo e todos, e acabei dormindo. Entendi aquele sono inusitado como uma resposta à minha oração nada tradicional. Porém, pela manhã, acordei junto com o canto do galo. A única diferença é que não havia galo nenhum cantando. O Sol só tinha iluminado um pouco o céu e eu decidi sair e pegar a estrada de uma vez. Não esperei o padre acordar e muito menos considerei acordá-lo. O que eu tinha para dizer era simples e coube no único papel que eu encontrei: um guardanapo. Achei uma caneta e escrevi "obrigada" com a minha letra horrível de quem havia parado de ir à escola na quarta série e nunca havia completado direito o caderno de caligrafia. Ainda sim era legível e era tudo o que eu podia oferecer para aquele homem que tinha feito tamanha generosidade para comigo.
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Música do Capítulo 2: Don't Come Home A-Drinkin' (With Lovin' On Your Mind) - Loretta Lynn
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