18. I am just a lonesome cowboy and I'm travelling all alone
Acordei no dia seguinte com o rosto colado no banco de couro de minha Chevy. Eu tinha dormido por poucas horas, mas eu devia estar tão cansada que simplesmente apaguei. Olhei o reflexo no retrovisor e, céus, eu estava um desastre. Acho que minhas olheiras nunca estiveram tão grandes, meu cabelo nunca esteve tão embaraçado. Eu me sentia suja. Eu não podia encarar meu querido pai assim. Era como mostrar, de primeira, que eu estava um caos sem "ele", sem "nossa família" ou qualquer outra mentira que ele quiser dizer. Eu tinha que mostrar, logo de cara, que eu estava dez mil vezes melhor do que antes. Coloquei o óculos escuros que comprei no brechó para disfarçar e borrifei um pouco do perfume que Regina me dera. Ele não adiantou para melhorar meu cheiro de quem não tomava banho há mais de 24 horas, mas pelo menos eu tentei. Eu já tinha ficado pior nessas últimas semanas, só que agora meu estado me incomodava.
Então eu, depois de arranjar um lugar para tomar pelo menos um gole de café e comer alguma torrada, andei pela cidade em busca de um salão de beleza. Eu mal acreditava que estava procurando por um salão de beleza! Eu tinha horror a esses lugares. Gastar dinheiro para ficar horas sentada numa cadeira tendo que ouvir fofoca o tempo inteiro? Nossa, realmente, soa como um paraíso para mim. Só que eu sentia que precisava, eu necessitava dar um jeito em mim, eu não queria que ele jogasse na minha cara que eu estava um completo caos sem "nossa família", "sem ele". Avistei uma placa com os seguintes dizeres: corte masculino - 5 dólares; corte feminino - 8 dólares. Não pensei muito, simplesmente entrei, abrindo a porta de vidro. Quando coloquei os pés para dentro e tirei o óculos, eu desejei não ter entrado. Absolutamente todos - todos - os olhares estavam pousados em mim. Ninguém falava nada, só me encaravam. Meu instinto foi dar meia volta para sair o quanto antes, mas não foi bem assim que tudo se desenrolou.
- Espera aí, menina! - ouvi uma voz grossa, porém feminina, dizer
Eu parei, já prestes a abrir a porta.
- Você acha que eu vou te deixar sair assim? Você acha que eu vou deixar alguém ver você sair do meu salão nesse estado? Não, não, volte aqui.
Eu me senti como uma criança levando sermão da mãe em público. Mas eu não era uma criança, ela não era minha mãe. Só que eu não consegui responder. Eu apenas voltei e ela me fez sentar numa cadeira. O salão ainda estava silencioso. Percebi que todos ao meu redor eram ou negros ou mulatos, não havia nenhum outro tipo de pele no lugar. A única pele branca que eu via era a do pôster do Elvis em cima do espelho.
- Jesus Cristo! - ela exclamou - Por onde você andou, menina? Em um ninho de ratazanas?
E aí eu percebi que ela tinha achado a cola que havia endurecido no meu cabelo. Eu tinha completamente esquecido que eu estava procurando um canivete exatamente por isso mas acabei encontrando o que eu já deveria saber há tempos: que ele só estava me enganando. Ugh. Só de pensar nele meu corpo fica quente, só que de completo ódio.
- Elvis! Traz a tesoura, o pente, prepara a tinta, pega umas toalhas, vamos, anda! - ela falou com um garoto que estava me encarando pelo espelho
- Mas eu só tenho dinheiro pra um corte - eu disse
- Deixa isso pra lá, essa vai ser minha boa ação do dia. Qual a última vez que você penteou esse cabelo? - eu não sabia responder - Qual tipo de shampoo você usa? Você costuma lavar ele?
Ela me encheu de perguntas e eu não achava uma brecha para respondê-las. Pentear o cabelo? Nunca. Shampoo? Eu estava lavando o cabelo apenas com água todo esse tempo. E tem algum tipo de shampoo específico? Não são todos shampoo's?
- E essa cor! Não se preocupe, eu vou dar um jeito. E quando perguntarem o que você fez para ficar tão bonita, diga que você veio ao salão da Tyra, ok? Falando nisso, qual seu nome?
Eu mal conseguia entender como ela falava tão rápido e tão objetivamente. Eu ficava perdida, tentando me concentrar. Eu demorava pra responder algo com sentido, ela devia estar me achando uma retardada.
- Meu nome é Freedom.
E então ela soltou um riso pequeno e disse meu nome de novo, mas para si.
- Eu gostei - ela exclamou - E você provavelmente não é daqui, não é?
- Sou do Tennessee, mas não daqui.
- Elvis, prepara a água, anda, para de moleza! - ela exclamou, o garoto reclamou
Havia mais três pessoas no salão. Uma com papel alumínio na cabeça com uma revista em mãos, outra assistindo TV enquanto tinha as unhas sendo pintadas por uma terceira mulher. Todas estavam prestando atenção em mim, sem falar nada.
- Filhos... - Tyra disse, balançando a cabeça - O que te traz a Memphis, Freedom?
- Estava só de passagem. Estou voltando pra casa.
- Estava viajando?
- Mais ou menos.
E ela ficou esperando uma continuação. Eu a olhava pelo espelho enquanto ela colocava uma toalha em meu pescoço.
- Eu estava fora por um tempo, mas agora vou rever minha família... Meu pai na verdade - eu me senti coagida a falar
Ela me perguntou se eu estava animada em rever meu pai enquanto me pediu para sentar em outra cadeira e começou a molhar meu cabelo. Eu não sabia responder. Eu estava animada, mas não pelos motivos em que uma pessoa com uma família normal estaria animada. Eu estava com a adrenalina alta, ansiosa, querendo que tudo acabasse logo.
E depois ela começou a tagarelar, começou a falar sobre os filhos, sobre o marido que nunca arranjava um emprego, mas sempre tinha um troco para o bar na sexta à noite, me contou que tinha colocado Elvis para trabalhar porque ele queria ganhar mesada, me contou também sobre como Memphis era animada e como era uma cidade importante. Ela estava cortando meu cabelo e eu totalmente muda quando ela começou a falar do dia em que foi ao show do Elvis e pôde jurar que ele havia piscado para ela. Ela não precisava nem abrir a boca para eu saber que ela era fã do Elvis: o pôster gigante do "rei" e o nome de seu filho já denunciavam tudo.
Tyra deveria ter no máximo uns 40 anos. Ela era alta, seus braços eram grandes e fortes, talvez de tanto trabalhar. E ela me pareceu um pouco rude no começo, mas eu fui percebendo que não era por maldade, era por honestidade. Tyra era completamente honesta e falava sempre o que estava pensando, então parecia rude porque não estamos acostumados a ouvir a verdade assim, crua e direta. E eu tive um desejo horrível enquanto ouvia ela tagarelar: eu desejei que minha mãe fosse parecida com a Tyra. Queria que ela falasse o que pensava, que se defendesse. Mas acho que, se minha mãe fosse assim, eu não seria como eu sou. Na verdade, se minha mãe fosse assim, eu talvez nunca teria nascido porque ela nunca teria se casado com um homem como meu pai.
- Abaixa a cabeça um pouco, por favor - ela me pediu
Eu obedeci, ouvindo a tesoura perto da minha nuca. Eu podia ver que Tyra estava tratando meu cabelo como um desafio à sua profissão. E eu não estava preocupada com o que ela ia fazer, qualquer coisa ficaria melhor do que o cabelo que eu venho usando há... Há quanto tempo eu saí de casa mesmo? Há quanto tempo eu comprei uma tinta vermelha e tingi meu cabelo porcamente num banheiro de posto? Parecia uma eternidade atrás. Eu suspirei na cadeira, perdida, cansada. Eu só queria que tudo isso acabasse de um jeito, mas eu não fazia nem a menor ideia de como tudo ia acabar.
- Cansada? - Tyra notou minha expressão de desânimo
- Um pouco. Estou dirigindo e fora de casa há dias.
- Mas agora você está voltando pra casa, não? Espera, você vai trocar de roupa né? Você não vai voltar... Assim?
Eu olhei pra baixo. Eu estava vestindo o vestido florido do brechó que, admito, estava sujo com um pouco de terra, desbotado e cheirando mal. Mas o que eu podia fazer? O resto de minhas roupas conseguiam estar piores.
- Elvis! - ela gritou uma, duas vezes
O garoto saiu de uma porta nos fundos, falou um "que foi?" sem a menor vontade de fazer alguma coisa.
- Traz aqui aquela sacola azul que está do lado da máquina de lavar.
Ele bufou, mas obedeceu.
- Eu não gosto nem de lembrar que estou pagando para ouvir esse moleque reclamar o dia todo! - ela disse pra si mesma, eu ri de leve
Elvis voltou carregando uma sacola maior que ele. Tyra vasculhou a sacola, tirando peças de roupas de dentro dela. Eu fiquei sem entender por um momento. "Essa não", ela falava e jogava a roupa pra um lado, "essa talvez" e jogava a roupa pro outro. E ela acabou jogando de lado uma jaqueta preta que chamou minha atenção. Eu levantei da cadeira, pegando-a do chão. Ela estava um pouco gasta, um pouco desbotada, tinha um rasgo pequeno bem debaixo do ombro. Nas costas, havia uma aplicação velha de bordado escrito "black sheep". Eu achei perfeito.
- Acho que esse está bom! - ela disse, segurando um vestido
- Desculpa perguntar, mas são roupas suas? Porque eu não me sentiria bem aceitando... - comentei
- Não, menina! São roupas que eu ia doar. Eu sempre recolhi umas peças no bairro para doar para uma família carente que eu conheço. O que você acha desse vestido?
Eu ia falar que ele não tinha nada a ver comigo, mas o vestido velho que eu estava vestindo também não tinha. Eu não tive argumentos.
- Ele ficaria bom com a jaqueta - ela disse - Eu vi que você gostou da jaqueta. Pode ficar com ela.
- Não tem problema?
- Não tem problema, já disse que eu estou fazendo essa transformação de bom coração! É como se eu fosse sua fada madrinha - os olhos dela chegaram a brilhar - Seu pai vai ficar orgulhoso quando te ver!
Eu contive meu riso. Orgulhoso é a última coisa que ele vai ficar quando me ver.
- Eu tinha um sapato aqui que ia ficar tão bonito com esse vestido! - ela disse procurando de novo na sacola
Eu gelei. De jeito algum eu ia tirar minha bota. De jeito algum eu ia mostrar que tinha uma arma comigo.
- Nao estou achando, talvez eu já tenha doado - eu soltei a respiração, aliviada - Deixa pra lá, vamos que eu tenho uma cliente pra chegar e ainda tenho que passar tintura nesse seu cabelo que graças a mim já está limpo, hidratado e aparado!
Tyra me fez sentar na cadeira de novo e começou a pintar meu cabelo. Depois me deixou de molho por um tempo. Depois lavou meu cabelo. Depois começou a secar. Eu já estava ficando impaciente, eu tinha que dirigir ainda hoje para Sweetwater, mas não sabia como cortá-la, afinal, ela estava fazendo tudo de graça e ainda me arranjou uma roupa nova.
Eram quase onze da manhã quando ela pegou um espelho menor para me mostrar como meu cabelo estava atrás. Eu gostei. Eu sinceramente gostei. Ia demorar um pouco para eu me acostumar. Ele estava mais curto ainda, mas estava macio. O vermelho era mais puxado pro laranja, mas não era desbotado. Eu não sabia decidir se talvez fosse até mais castanho que vermelho ou mais laranja escuro que castanho. Entrei em um banheiro nos fundos e coloquei minha roupa nova, em especial a jaqueta. Quando voltei ao espelho, vi que a jaqueta era maior que eu, deveria pertencer a algum motoqueiro, mas isso só me fez gostar dela ainda mais.
- Ohh - ouvi Tyra soltar, como se estivesse vendo um filhote de cachorro - Mas nem parece a mesma que entrou pela porta do meu salão horas atrás!
E ela me abraçou e eu fiquei sem jeito. Ela parecia estar bem orgulhosa da transformação que fez em mim, seus olhos estavam marejados. Eu não sabia como agradecer, então peguei uma nota de dez dólares e tentei fazer ela aceitar, só que Tyra era teimosa. Dez dólares era tudo o que eu podia oferecer para ela, afinal o resto do dinheiro eu teria que gastar com gasolina até Sweetwater.
- Não vai ser um ato de generosidade se eu te cobrar, menina!
Às vezes ela falava como se eu fosse uma criança carente precisando de um anjo. Me irritava um pouco, mas Tyra não era o tipo de pessoa com o qual eu ganharia uma discussão. Ela então me disse para gastar esses 10 reais com um bom shampoo e um condicionador que ela já ficaria feliz. Eu gargalhei.
- Agora sim, pode sair do meu salão e se te perguntarem foi no salão da Tyra, ok? Espera, eu devo ter um cartão aqui. Pronto, leva esse, entrega pra quem perguntar! E boa sorte com seu pai! - Tyra tagarelou enquanto eu saía
Eu já estava ficando atrasada, não podia ficar presa naquele salão por muito tempo. E assim que saí, senti algo estranho, uma sensação que as pessoas estavam mesmo notando em mim. Talvez fosse o cabelo vermelho-alaranjado brilhante, talvez fosse o fato de eu estar com uma jaqueta duas vezes maior que eu em pleno verão. Eu gostei da sensação. Coloquei meus óculos escuros e voltei à minha Chevy, que agora parecia muito mais desbotada perto do meu cabelo.
Despedi-me de Memphis e fui a leste, eu tinha algumas horas pra repensar todos os detalhes do que eu ia fazer. Eu não sabia como ia ser a reação de Walter. Eu gostava de chamá-lo de Walter. Chamá-lo de pai era mentir. Todas as vezes que a palavra pai saía de minha boca era de um jeito irônico.
E enquanto eu dirigia, eu tentava não pensar no meu aniversário de nove anos. O relógio tinha acabado de marcar meia noite. Eu estava tão animada. Eu nem me lembro por que eu estava tão animada. O que mudaria na minha vida não ter mais oito anos? Eu ainda ia ser uma criança. Mas naquele dia tudo mudou.
Estava contando os minutos para a meia noite. Minha mãe me colocou para dormir às nove e meia. Kevin não era nascido. Eu ainda era filha única. Minha mãe sentou na minha cama e tentou me cobrir. Eu não lembro se ela estava cansada, se ela estava triste. Eu só lembro dela me colocando para dormir. Eu me lembro de reclamar que estava muito quente para qualquer cobertor e ela não insistiu. Esperei as 2 horas e meia até meu aniversário olhando para o céu que eu conseguia ver pela janela. Eu já tinha meu cordão. Eu já tinha a mania de colocá-lo entre os lábios. Muita coisa mudou naquela noite, mas em algumas coisas eu sempre permaneci a mesma.
Quando deu meia noite, eu pulei da cama. Eu queria dizer para todo mundo que era meu aniversário, que eu tinha nove anos, que eu queria um estilingue de presente. Eu pulei pela casa, pelo corredor, e fui direto para o quarto dos meus pais. Eu planejava acordá-los pulando na cama. Mas quando eu abri a porta de surpresa, eu vi o que nenhuma criança deveria ver.
Liguei o rádio no volume máximo. Ainda estava emperrado na fita antiga. Céus! Por que é que eu não consigo parar de pensar? Também, estou seguindo a dica de um cara que só queria me comer antes de me entregar pro meu pai. Burra, burra, por que eu fui tão burra?
Naquela noite de quatro de Julho de 1976, eu vi minha mãe sendo violentada pelo meu pai. É uma cena que eu queria apagar da minha memória. A dor em seu rosto era latente, era algo reprimido. O som era algo nojento, era como se eu, com nove anos, tivesse entrado em um filme de terror, um dos piores já feitos. Fechei a porta com tudo, tentando fisicamente fechar aquele acontecimento, vendo se ele ia embora. Minha mãe gritou. Eu nunca soube se ela gritou por causa da dor ou porque me viu. Acho que, se ela tivesse me visto, ela teria corrido atrás de mim, teria tentado me explicar algo inexplicável, tentaria me confortar. Mas ela não deve ter me visto. Era tanta dor, tanto sofrimento dentro dela que todo o resto em sua volta deve ter passado despercebido. Meu pai com certeza não me notou também. Estava bêbado demais para me notar, era egoísta demais para se importar.
Aquele foi o pior aniversário que eu já tive. Não falei uma palavra. Não comi nada, nem mesmo o bolo, não quis saber de presente nenhum. Passei o dia com Pelúcia, tentando ver se ele me explicava. Quando minha mãe me colocou para dormir, perguntando se eu estava me sentindo bem, eu quis perguntar para a ela a mesma coisa. Somente alguns anos depois eu entendi o que aquilo significou, somente algum tempo depois eu entendi o que eu tinha presenciado. Ninguém precisou me contar. Um dia eu simplesmente juntei os fatos. Eu era jovem demais e depois, quando entendi, eu deixei de ser criança. Eu acabara de ser roubada da minha própria infância. Eu plantei e cultivei raiva por Walter todos esses anos. A cada sorriso sonso dele, a cada dia de ressaca, a cada grito, a cada palavrão. Eu aprendi a responder à altura, eu aprendi a proteger Kevin de tudo isso, eu só não conseguia proteger minha mãe. E, se o que eu estou prestes a fazer acabe comigo, me dou por satisfeita. O que eu queria era minha mãe livre dele, o que eu queria era Kevin sendo criança, se eu consegui fazer isso, não tinha mais por que eu fugir, não tinha mais razão para não encará-lo de frente.
O rádio continuava alto. Loretta Lynn cantava e me dava ainda mais coragem para enfrentar esse dia decisivo de cabeça erguida. Era um daqueles momentos que antecedem algo grandioso. Eu não sabia o que ia acontecer, assim como aquele quatro de Julho. Eu não sabia o que ia mudar na minha vida aos nove anos, mas eu podia pressentir. Eu não sei o que vai mudar hoje, mas eu posso pressentir que nada vai ser igual a antes.
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Música do Capítulo 18: Lonesome Cowboy - Elvis Presley
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