14. It don't get much better than this
Abri meus olhos devagar. Eu estava em um quarto? Parecia meu quarto... Com as paredes de madeira. Eu esfreguei meus olhos, tirando um pouco a remela. Eu estava com meus olhos inchados de tanto dormir, eu podia sentir. Era algo inusitado, eu nunca dormia muito. Eu sempre acordava cedo. Que lugar era aquele? A pouca luz entrando pela janela não me deixava ver muita coisa além das paredes. Eu estava sonhando esse tempo todo?
- Ah! Aí você está! - Zach disse, abrindo a porta e consequentemente fazendo o quarto se iluminar
Eu reclamei, puxando o cobertor pra cima de meu rosto. Foi como se tivessem apontado uma lanterna direto aos meus olhos. O que ele estava fazendo ali? Que quarto era aquele?
- Vamos lá, o jantar está servido! E eles fizeram um frango frito que está cheirando daqui! - ele estava animado
Eu apenas o encarei. O que ele estava fazendo? Quem eram "eles"? Que jantar? O quê? Eu estava drogada?
- Vamos lá, Freedom! - Zach sentou-se na cama e me chacoalhou - Você precisa comer. Está tão fraca que dormiu a tarde toda.
- Só me responde uma coisa: que lugar é esse? - eu disse com voz de sono, apertando meus olhos para focar a imagem
- Ué? - ele riu - Não lembra? Encontramos essa pousadinha no meio do caminho! Isso é uma comunidade Amish, eles estavam oferecendo esse quarto por uma barganha! Oito dólares a noite por quarto! E ainda nos ofereceram jantar. Você não vai recusar frango frito com purê de batata né?
- Ugh! - eu resmunguei, me lembrando - Eu achei que tudo isso tinha sido parte do meu sonho.
Ele riu.
- Não, não foi. Eu insisti para a gente ficar aqui, lembra? Você não queria, achou barato demais e ficou desconfiada desse povo que vive em outro mundo. Mas acho que eu te convenci com o argumento do banho. Finalmente um chuveiro e não um lago ou piscina de casas alheias. Mas anda, senão o frango vai acabar.
Eu resmunguei mais um pouco, mas acabei levantando e seguindo Zach até passar por uma grande área rural e chegar em uma outra casa. Era estranho, para não se dizer outra coisa. Eu achava que eu, por morar em Sweetwater minha vida toda, era bem desatualizada, bem antiga. Aquele povo era a definição do antigo. Suas roupas eram costuradas por eles mesmos, eles tiravam leite das vacas que eles mesmo criavam, ovos das galinhas que possuíam, tinham uma horta só para eles. Andavam de carroça e não tinham praticamente nenhum contato com o mundo moderno. Eram tão conservadores que podia se notar no jeito com o qual falavam, usando palavras que ninguém mais usa. Também percebi que eles falavam um idioma que eu não entendia entre eles. Tentei o máximo da minha simpatia com todos e eles eram tremendamente amigáveis, o problema era que o cheiro do frango estava me matando e eu estava implorando mentalmente para alguém acabar com a conversa e começamos a jantar logo.
Um homem mais velho, com uma barba grisalha, foi quem disse que era hora de comer. Ele se sentou na ponta de uma mesa enorme de madeira. Sua esposa, com cabelos brancos, se sentou ao lado. Depois seus filhos e seus outros parentes, irmãos, primos, sobrinhos, era uma família grande. Eu e Zach nos sentamos timidamente nas cadeiras. Eu encarava o frango, quase salivando. Quando percebi, Zach estava estendendo a mão a mim. Olhei ao redor e todos estavam de mãos dadas. Eu me rendi e ouvi a oração deles de olhos abertos. O homem mais velho agradeceu pelo dia, pela comida e, bom, por mim e por Zach. E depois finalmente começamos a comer. Confesso que nunca havia comido um jantar tão caseiro como aquele. Tudo tinha um gosto tão real, eu queria repetir trezentas vezes mas sabia que era falta de educação. O assunto na mesa eram coisas banais, que não envolviam Zach e eu, pelo menos não no começo.
- E vocês gostaram do quarto? - o homem mais velho resolveu puxar assunto
Eu estava mastigando, então Zach se encarregou de falar.
- Excelente, exatamente o que procurávamos! - ele disse
Bom, pelo preço, ter uma cama confortável e um chuveiro estava de bom tamanho, pensei comigo mesma.
- E a senhorita dormiu bem? Como é seu nome mesmo, Frida?
Eu quis gargalhar quando ele me chamou de Frida, mas respondi educadamente depois de engolir o que estava mastigando.
- É Freedom. E sim, eu dormi bem, dormi até demais!
- Freedom! Que inusitado... Mas bonito - a senhora, que presumi ser a matriarca da família, disse
- Obrigada! O jantar está maravilhoso, muito obrigada por nos incluir - eu respondi
- Nisso tenho que concordar, está tudo muito bom, obrigado por nos convidar - Zach completou
- Não há de quê. Tínhamos que comemorar nossos primeiros hóspedes! Sabe, a gente nunca pensou em alugar quartos aqui, mas a situação está difícil. Mesmo produzindo tudo e tentando viver da maneira mais sustentável possível, não dá para se livrar de alguns custos, que só aumentam... - o senhor comentou
- Eu entendo. Está ficando cada vez mais caro viver. Mas então somos os primeiros? Tenho que dizer que fiquei impressionado com o tamanho da propriedade.
- Ah, essa terra aqui foi passada de geração em geração! É como é boa, não é? Tem até espaço para cavalgar. Mas, conte-nos mais, como vocês se conheceram? Queremos conhecer mais nossos primeiros hóspedes! - a senhora respondeu e olhou diretamente a mim
Eu fiquei intrigada. Como a gente se conheceu? Um silêncio parou no ar durante os segundos que eu levei para lembrar que Zach e eu falamos que éramos casados. Afinal, eles eram conservadores, não iam deixar que ficássemos no mesmo quarto se não estivéssemos em matrimônio.
- Nós nos conhecemos na escola - Zach foi rápido - No colegial. Começamos a namorar e foi algo que durou até agora. Parece não ter nada de extraordinário na nossa história, mas eu acho que o fato de duas pessoas se apaixonarem assim uma pela outra já é algo especial.
E daí Zach, mentindo bem demais, colocou sua mão sobre a minha. Eu quase engasguei.
- Eu gosto do jeito que você pensa, rapaz! - o patriarca comentou - São poucos os homens assim no mundo, os que conseguem entender o valor de uma mulher!
Eu quis rolar meus olhos, mas ia ficar muito evidente.
- Como é a escola?
A voz veio de outro lado da mesa, de uma criança de no máximo oito anos, falando de boca cheia. Era um menino e meu coração quis sair pela boca. Eu lembrei de Kevin e me dei conta de que daria tudo para chamá-lo de pestinha de novo.
- Kyle! Modos! - a matriarca disse
Ele se desculpou e engoliu o que estava mastigando. Eu disse, sorrindo, que não me importava.
- Ele está te perguntando isso porque não vai à escola. Nós mesmo o ensinamos em casa - ela se explicou
- Bom, a escola pode parecer legal, mas não ensina muita coisa. Tudo depois da quarta série é inútil aprender - eu disse a ele, assim como dizia a Kev - Você já sabe escrever?
Ele disse sim com a cabeça.
- Já sabe ler e já sabe fazer conta de menos ou mais?
- Sim! E eu aprendi a multiplicar e dividir semana passada! - ele falou, orgulhoso de si
- Ah é? Nossa, então você é muito mais inteligente do que eu pensava! - eu sorri
- E eu sei como as plantas nascem, e eu sei todos os planetas! - ele disse em êxtase - A única coisa que ninguém quer me contar é de onde vêm os bebês!
O menino disse a última frase emburrado, talvez esperando que alguém se comovesse e lhe contasse. Mas toda a mesa caiu numa risada. As filhas adolescentes fingiram que não estavam rindo, fingiram não saber, mas eu percebi que elas estavam se contendo.
- Isso é um grande segredo! - eu disse, sussurrando um pouco - Um dia, quando a gente é maduro o suficiente, o segredo é revelado. Não se preocupe, é algo que, uma vez que descoberto, requer muita responsabilidade. E é bom ser irresponsável, não é? É bom não pagar contas nem ter que trabalhar, não é?
Ele concordou com a cabeça.
- Então aproveita enquanto você não sabe!
Ele sorriu, não muito satisfeito com não matar sua curiosidade, mas talvez estivesse com medo de ter que trabalhar ou pagar contas.
- Você tem jeito com crianças... Já estão planejando filhos?
Eu quase engasguei de novo com essa pergunta.
- Não, não, ainda não - respondi antes que Zach respondesse algo do tipo "sim, quero meia dúzia"
Tudo bem, era hipotético, mas não era para rogar praga pra cima do meu útero não.
- Eu só tenho jeito com crianças porque tenho um irmão mais novo. Acho que eu seria uma boa mãe, mas não sei se estou pronta para carregar uma criança por nove meses na barriga!
- Mas, um dia, quem sabe, não é? - Zach acariciou minha mão e eu quis matá-lo
- Filhos são uma benção! - o pai disse - E eles nos ajudam muito aqui. Não tenho o que reclamar.
Eu sorri, imaginando como seria ter um pai que dissesse isso de mim. Eu queria que Kev ainda fosse tão inocente quanto o menino sentado na mesa. Eu queria que alguém tivesse me dito as coisas certas quando eu era criança, que não mentissem para mim inventando histórias de cegonha, mas que tivessem mantido minha inocência. Inocência que foi roubada de mim uma bela noite de quatro de Julho, quando eu andei até o quarto dos meus pais e vi o que iria me aterrorizar para sempre.
A sobremesa foi pudim e eu mal pude agradecer o suficiente. Depois de tudo, ajudei a tirar a mesa e lavar a louça. Era o mínimo que eu podia fazer.
- Obrigada por ter falado aquilo, sabe? Da história de onde vêm os bebês - a matriarca, que descobri que se chamava Ruth, disse a mim, em tom baixo, como um segredo
Ela me estava lavando a louça e eu secando. As crianças estavam tirando a mesa e eu não sabia onde é que Zach tinha se metido.
- Não tem problema. Como eu disse, eu tenho um irmão da mesma idade, acho que é preciso preservar a inocência, mas sem mentiras.
- Ele está querendo arrancar uma resposta de nós há dias! Nós sempre desviamos do assunto, sem saber o que dizer. A história da sementinha não deu muito certo. Então obrigada, acho que ele ficou com medo da responsabilidade e conteve a curiosidade.
- Sim, ele é um menino esperto. Tem que aproveitar mesmo enquanto é criança.
- Então você tem um irmãozinho? A diferença de idade é grande então! Quantos anos você tem?
- Vinte e um - eu menti, eu sabia que eu conseguiria passar por vinte e um sem problemas - Mas minha mãe pensou que sua fábrica tinha fechado quando meu irmão apareceu.
Ela riu.
- Ah, eu sei como é. Eu com três filhos só espero que não apareça outro!
Eu então imaginei que, por viver uma vida tão no passado, ela contasse com a sorte e não usasse nenhum método contra-ceptivo. Confesso que isso me assustou um pouco. Será que eles se oporiam a ir a um hospital moderno se algum dos seus filhos adoecesse?
- Freedom! - o pai, Albert, me chamou
Sequei as mãos e voltei à sala, encontrando ele e Zach conversando.
- Seu esposo me disse que você gosta de cavalgar! - "seu esposo", aquela frase fez meus olhos arregalarem
- Sim, sim, eu tenho, na verdade tinha, um cavalo quando criança.
- Ah, então se sinta livre para amanhã pegar qualquer um dos nossos cavalos!
- Isso é sério? - eu me surpreendi, meus olhos deviam estar brilhando
- Sim, amanhã vocês estão convidados a tomar café da manhã conosco e depois cavalgar ou fazerem o que quiserem por aqui! Temos algumas jóias escondidas, como um lago lotado de patinhos e algumas borboletas coloridas que gostam de pousar nas pessoas!
Albert disse tudo com tanto amor que eu o quis abraçar, mas seria estranho. Ele realmente tinha paixão por onde morava, tinha paixão por sua família e pelo o que tinha, mesmo sem precisar de nada que a modernidade diz que as pessoas precisam. Eu quis que ele fosse meu pai. Eu quis que ele me adotasse naquela hora.
- Combinado! - Zach compartilhou um aperto de mão com ele - Agora é melhor deixar vocês se recolherem. Já está tarde.
- Nós nos vemos amanhã! - ele falou - Durmam bem.
Zach e eu agradecemos de novo por tudo e deixamos a casa, seguindo pelo caminho que viemos até a casa menor, mais afastada, onde só havia um quarto, um banheiro e uma varanda. Eu percebi que não estava nada tarde, o sol tinha acabado de se pôr, mas, para os costumes da família, isso devia significar que era hora de dormir, assim como o nascer do sol devia significar que era hora de acordar. Era uma vida simples, uma vida que eu admirava.
Eu me sentei na varanda da casa, observando o pôr-do-sol. Zach fez o mesmo.
- Eles são legais - Zach comentou
- Sim, gente boa, dá pra ver.
- Eu achava que se um dia eu conhecesse realmente um Amish, ia o achar maluco. Mas eles são... Normais, digamos assim. Essa coisa de viver no passado eu não entendo muito, mas cada um faz o que quiser da vida.
- Ninguém é normal... Todo mundo é um pouco louco. Só que todo mundo esconde. Parece uma regra para ser humano, sabe? Ter que se conter para ninguém olhar para você torto.
- Olha, desde que não esteja fazendo mal a ninguém, que seja louco. Que seja feliz com sua loucura.
Ele me fez dar um meio sorriso com essas frases.
- Qual é a sua loucura, Zach?
- Como assim?
- Todo mundo tem uma coisa que gosta de fazer mas não gosta que ninguém veja.
- Eu... Eu acho que nunca parei para pensar nisso.
- Se for alguma coisa nojenta ou muito íntima, por favor, não precisa dizer, me prive de imagens mentais.
- Eu acho que muita gente me acha louco por estar na estrada assim. Por estar "desperdiçando" a minha vida.
- Você não está desperdiçando nada. Você está apenas vivendo-a.
- É que, bem, não é normal - ele disse, rindo - Qual a sua, Frida? Ops, Freedom.
Eu não acreditei que ele tinha feito essa piada estúpida. Então eu dei um tapa de leve em seu ombro quase cicatrizado enquanto ele rolava no chão de tanto rir.
- Palhaço.
Ele estava sem ar de tanto rir, mas ainda sim me perguntou de novo qual era a minha loucura. Eu diria que eu tinha muitas. Eu tinha mais loucura do que aspectos normais dentro de mim. Eu não era normal, eu não fui criada assim. Eu diria que a minha loucura é andar por aí armada, conseguindo dinheiro de estranhos, entrando em confusão, tentando arrumar bebida. Não sei. Isso poderia ser considerado loucura pra muitos da minha idade, ou até mais velhos.
- A minha loucura é simplesmente ser quem eu sou - foi a melhor resposta que eu consegui dar
Zach encerrou sua risada com um suspiro depois de ouvir minha frase. O céu já estava mais escuro, o sol já havia se posto. Eu me levantei, pesada de tanto que tinha comido.
- Eu preciso de um banho, eu preciso dormir. Foi muita comida e muita interação social por um dia. Estou exausta.
- Vai lá, acho que vou ficar para ver as estrelas aparecerem.
Eu entrei na casa, sem dizer mais nada. Tomei um banho demorado e quando saí, me deitei. Zach ainda estava lá fora, eu achava que ele tinha dormido lá mesmo. Não me preocupei, apenas me deitei do lado direito da cama, fechei os olhos e tentei dormir. Eu esperava que a insônia não me incomodasse, já que eu estava cansada, só que ela me incomodou como se fosse um mosquito zumbindo no meu ouvido. Eu estava de olhos fechados, mas minha mente trabalhava a todo vapor. Então eu levei o meu colar à boca, como sempre fazia, era minha mania desde pequena. Talvez isso me acalmasse de um jeito inusitado, talvez me desse algo novo para prestar atenção em e talvez me fizesse pegar no sono mais rápido. Eu não sei a razão, só sei que ajudava de alguma forma. Resolvi olhar pela janela, vendo as estrelas lá fora. Porém, também prestei atenção nos sons à minha volta. Era um silêncio salpicado de barulhos de grilos ao fundo. Só que nesse silêncio eu ouvi uma voz, parecia a voz de Zach. Ele estava falando sozinho? Eu não conseguia discernir as palavras faladas, mas era a voz dele. Então ele abriu a porta devagar, sem querer fazer barulho. Eu fingi que dormia, fingi que não estava, silenciosamente, prestando atenção. Ele entrou no banheiro e tomou banho e eu me acalmei um pouco mais com o barulho da água corrente. Fiquei completamente estática quando ele se deitou na cama ao meu lado, eu não queria denunciar que estava acordada. Não demorou muito para ele pegar no sono e eu continuar ouvindo apenas o barulho baixo dos grilos lá fora.
- Eu espero que gostem de torta de cereja!
Eu fechei os olhos, sentindo o cheiro da torta. Tinha acabado de sair do forno.
- Esse cheiro está simplesmente delicioso! - Zach leu meus pensamentos
Estávamos sentados na mesa grande de jantar da família. Era cedo, mas eu sempre acordava com o nascer do Sol mesmo. A torta à nossa frente estava chamando pelo meu nome. Ruth só podia ter uma mão divina para cozinha.
- Eu espero que o gosto esteja tão bom quanto o cheiro! - ela disse
- Olha, se depender do que a gente viu ontem, acho que suas habilidades na cozinha não vão nos decepcionar!
Eu adorava quando Zach conseguia ser simpático ao ponto de eu não precisar abrir a boca para falar nada. Eu apenas sorri, ainda sentindo o cheiro da torta, fazendo meu estômago roncar. O gosto não decepcionou nem um pouco. Comemos a torta acompanhada de um café preto fresco, que eu queria batizar com um pouco do meu uísque, mas deixei para lá. Ia ser meio estranho fazer isso na frente deles.
As crianças pediram licença para saírem da mesa, pelo visto era hora de estudarem. Ruth e Albert nos acompanharam até o quintal, mostrando o galinheiro. Ruth me mostrou seu jardim de rosas e depois Albert falou com orgulho do leite de tirava de uma das cabras que tinha. E, sem ao menos perceber, eu criei um respeito tamanho a eles, uma admiração sincera.
- Cada um ajuda um pouco sabe? As crianças mais jovens às vezes alimentam os bichos, ajudam a tirar leite, a recolher ovos, frutos das árvores, as mais velhas já ajudam na colheita e nas áreas mais distantes. É um trabalho de família. Só eu que sou proibido de fazer qualquer coisa na cozinha - Albert disse
- Proibido nada - Ruth respondeu - É só aprender a não queimar nada que pode entrar sem problema!
Eu e Zach rimos com educação.
- Albert é péssimo, uma vez foi fazer um ovo frito e queimou a panela toda. Sem contar no dia que tentou fazer bolo para provar que sabia... Ugh, não gosto nem de lembrar do gosto daquilo! - ela disse a nós
- Vamos mudar de assunto, por favor? - Albert pareceu irritado, Zach e eu tivemos que segurar nossa risada - Freedom, você tem jeito com cavalos então?
- Sim, senhor! - eu respondi, enquanto ele pedia para que nós o seguíssemos
- Eu tenho três aqui. Um é manso, outro é arredio, e outro não tem muita personalidade, faz tudo o que lhe mandarem.
Ele nos levou até o celeiro e me perguntou qual eu preferia. Eu já sabia a resposta sem ao menos vê-los.
- Tem certeza? - essa foi sua reação com a minha resposta
- Sim, eu gosto de cavalos com personalidade, como você disse.
- Eu prefiro o manso, por favor! - Zach disse, rindo um pouco nervoso
Eu cheguei mais perto do denominado como "arredio". Ele logo se agitou.
- Calma, menino, calma - eu falei ao cavalo, baixo, tentando tocar em sua crina - Eu também não gosto muito de seres humanos, mas fazer o quê né.
E então ele aos poucos foi se acalmando, mas continuou desconfiado. Se eu fizesse algo errado, ele estava pronto para me dar um coice. Ele me lembrava tanto, mas tanto, o Pelúcia. E, enquanto não foi nada difícil conseguir montar no cavalo rebelde, percebi que Zach não tinha mesmo o menor jeito com isso, já que só conseguiu subir na cela depois da quarta tentativa, isso porque o cavalo estava colaborando.
- Podem cavalgar à vontade, só não se percam! - Albert disse
Eu agradeci. Zach estava se borrando de medo de cair. Eu fui na frente, ele atrás sem apressar muito o cavalo.
- Você realmente é um garoto da cidade, ein? - eu ri
- Desculpa se o único cavalo no qual eu montava na minha infância era o do carrossel.
- Só está desculpado se conseguir me acompanhar.
E então eu dei corda ao cavalo, fazendo-o correr. A sensação era tão boa quanto dirigir em alta velocidade numa estrada de terra, mas os bancos da minha Chevy eram mais confortáveis. O vento batia em meu rosto e por um momento quase me esqueci que não estava sozinha. Fui acalmando o cavalo, fazendo-o diminuir o passo. Quando decidi olhar para trás, vi Zach cavalgando bem rápido e por um momento pensei que ele tinha me enganado, que sabia sim cavalgar. Mas ele foi se aproximando rápido e eu consegui ver que ele estava completamente fora de controle.
- Freedom - ele gritou - Como eu faço para frear isso?
E então ele passou cavalgando como um raio do meu lado, gritando essa mesma pergunta. Eu queria responder, queria ajudá-lo a parar, mas eu apenas consegui rir. E eu ri até lacrimejar. Ele conseguiu fazer o cavalo voltar, mas continuava rápido demais.
- Freedom, isso é sério! - ele continuou gritando
- Puxa as duas rédeas para você e bate seus calcanhares com cuidado na barriga dele! - eu gritei de volta, tentando não rir
Ele não acertou de primeira, mas o cavalo foi parando aos poucos. Ao conseguir dominar e acalmar seu cavalo, ele se aproximou do meu aos poucos.
- E é por isso que eu amo minha caminhonete - ele disse, estressado, e toda minha risada voltou à tona
Foi um bom passeio. O lugar era agradável, o cheiro era de terra viva, o azul do céu brilhava. Só que o Sol começou a ficar forte demais. Decidimos então voltar à casa de Ruth e Albert e cavalgar um pouco mais depois. Zach não gostou dos planos, ele não tinha gostado muito da ideia de voltar a cavalgar, mas eu não ligava. Se ele não quisesse ir, eu ia sozinha.
Tive que segurar a risada mais uma vez quando ele tentou descer do cavalo e quase caiu. Como era possível ser tão desajeitado pra isso? E só de pensar que, no começo, ele tentava fazer o papel de caubói me fazia rir ainda mais. Nós almoçamos com Ruth, Albert e as crianças, eles insistiram. Durante o almoço, conversamos sobre como eles se viravam sem eletricidade, já que a única coisa que tinham ligada na tomada era a geladeira antiga. Eles nos falaram sobre outros Amish's, parentes deles, uns que vivem na cidade, que convivem no meio urbano, mas sem deixar as tradições de lado. Depois todos nós rimos sobre o quão desajeitado Zach foi com o cavalo. Todos rimos, menos Zach. E por fim comemos de sobremesa o resto da torta de cereja de manhã. Era apenas uma da tarde e aquele dia, para mim, já estava perto de ser perfeito.
Descansamos um pouco na varanda, brincando com os cachorros, e depois ajudamos a alimentar os animais. Já para o fim da tarde, eu quis dar mais uma volta a cavalo, já que eu não tinha encontrado o lago cheio de patinhos que Albert comentou sobre anteriormente. Zach não gostou muito da ideia, mas aceitou dar mais uma chance pra cavalgada. Ele então montou no cavalo que obedecia todas as ordens e não no manso. Eu continuei com o arredio. Às vezes eu tinha que puxar a rédea mais forte e acariciar sua crina para que ele se comportasse, mas eu estava acostumada. Pelúcia, quando era mais jovem, era igualzinho. Assim que encontrei o lago, parei o cavalo aos poucos. Havia tantos patos que mal se conseguia ver a água. Zach parou seu cavalo depois de algumas tentativas. Eu desci, firmando minhas botas na grama úmida. Só que, Zach, tentando desmontar, prendeu o pé na cela e caiu. Não foi uma queda grande, estava mais para um tropeção, só que ele caiu em uma poça de água e lama disfarçada pela grama. O barulho da queda foi como se alguém tivesse jogado uma pedra na água e a lama espirrou para todo o lado. Eu não aguentei, eu comecei a gargalhar, principalmente quando ele teve que cuspir para não comer a lama que espirrara em seu rosto. Eu sei, eu sei, é feio rir da tragédia dos outros, mas desta vez não teve como, a cena foi hilária.
- Para de rir e vem me ajudar a levantar, meu ombro continua sem força! - ele falou, um pouco irritado
Eu andei até ele, estendendo a mão. Assim que o fiz, ele me puxou para baixo, me fazendo cair na poça também. Eu queria ficar brava, mas eu não parava de rir, nem mesmo com lama nas minhas costas todas.
- Por que você está rindo? - ele me encarou sem entender
- Porque nada, nada, vai fazer esse dia se tornar ruim. É simplesmente o melhor dia que eu tive em... Sei lá, já perdi a conta, não sei que dia é hoje.
- E por que esse dia está assim tão bom? É porque eu tô me saindo um desastre nessa vida de homem do campo?
- Só um aviso, Zach: o mundo não gira em torno de você. É porque eu gosto disso, eu gosto dessa simplicidade. Eu adoraria morar aqui, adoraria ficar aqui pra sempre e esquecer de todo mundo lá fora. Só acho que não seria uma Amish verdadeira porque não largaria minha Chevy nem meu uísque.
- Você gosta dessa vida, né? Eu acho que eu sentiria falta das luzes da noite, dos carros, das pessoas indo e vindo.
- Eu já disse, você é um garoto da cidade. Você não entende.
- Sabia que existem fazendas urbanas?
- O quê?
- Fazendas urbanas. É uma coisa meio inovadora, as pessoas estão fazendo hortas e criando animais em lugares urbanos. Algumas escolas vão até visitar. Acredita que tem criança que não sabe que leite sai de vaca?
- Como assim? Não ensinam essas coisas na escola hoje em dia? De onde elas pensam que vem?
- Sei lá, do supermercado, de uma fábrica.
- É... Eu realmente não conseguiria viver na cidade, ainda mais convivendo com gente que não sabe de onde vem o leite! E também não conseguiria nem dirigir do jeito que gosto por causa do trânsito. Essa tranquilidade, essa paz aqui, é tudo que eu sempre quis.
- É por isso então que você fica tão nervosa em lugares urbanos, assim como você ficou naquele shopping em Rochester... Toda a agitação te deixa nevosa, confusa, deslocada.
- E o Zach psicólogo está de volta... - eu disse, rindo
- Que saber? - ele colocou as mãos atrás da cabeça, deitando - Agora é a sua vez de tentar me analisar. Pode começar.
- Ah, por favor, Zach.
- Eu tô falando sério. Já que você está tão falante esses dias, eu quero que você me analise. Quero ver o que você pensa de mim.
- Zach! Você é o metido a psicólogo aqui, não eu.
- Mas você, eu já notei, observa demais, pensa demais. Eu quero saber como você me descreveria.
- Insuportável. Arrogante. Persuasivo. Prepotente.
- Eu tô falando sério, Freedom.
- Ok. Acho que você tem problemas e todos eles são de origem sexual.
- Deixa bancar o Freud. Eu nem concordo com ele. Vamos lá, sem brincadeira. Mas eu fiquei impressionado com essa resposta.
- Ugh! - eu bufei
Eu até sei o que Freud dizia pois uma vez ouvi Regina Harold comentar com minha mãe que os problemas do meu pai eram de "origem Freudianas" e resolvi dar uma passada rápida na biblioteca. Foi a primeira e última em vez que eu fui à biblioteca. Eu me lembro de procurar pelos autores na letra F, pegar um livro grande, não entender nada e perguntar à bibliotecária o que ele dizia. Ela se espantou - por que uma criança de 12 anos queria saber de Freud? E então ela me disse isso: que para Freud todos os transtornos da humanidade eram de origem sexual. Na época não entendi, mas hoje eu sei que, pelo menos na minha família, os problemas foram todos Freudianos.
Eu encarei Zach, pensando no que dizer.
- Eu não sei muito sobre você, mas sei por experiência própria que você consegue tudo na base dos joguinhos. Você ama um joguinho, Zach. Você ama convencer alguém a fazer o que você quer sem obrigá-lo, você coloca as palavras que quer na boca das pessoas. Você lança todo seu charme para conseguir o que quer. E com isso você deu azar comigo algumas vezes... Talvez seja por isso que você continua aqui, me seguindo. Talvez você ainda queira me persuadir por completo. Mas ao mesmo tempo você me ajuda, me proteje mesmo quando eu não quero. Isso me confunde. E eu acho um pouco infantil isso tudo de você estar gastando o dinheiro pra sua faculdade, mas ao mesmo tempo eu admiro se for verdade. Eu bem que queria viajar o país todo sem preocupações. E eu não sei se isso é uma análise psicológica ou não, mas é o que eu consigo ver em você de algum jeito. Você diz que eu sou imprevisível, mas eu não consigo de modo algum desvendar suas intenções.
Ele arqueou as sobrancelhas. Ele não estava esperando que eu realmente dissesse tudo aquilo? E então eu me perguntei se eu tinha sido vulnerável demais ao confessar que sempre teria um pé atrás com ele.
- Interessante, Freedom. Eu sempre pensei que você nunca iria se abrir pra mim, mas acho que era eu quem estava fechado esse tempo todo.
Eu mal sei o que ele quis dizer com isso. Ele? Fechado?
- Talvez é porque falta drama na minha vida, talvez falta aventura, falta graça. Acho que foi por isso que eu resolvi te seguir, pra ver se eu achava um objetivo para ter. Talvez foi por isso que eu resolvi sair de casa e dirigir pelo país, eu precisava de algo para me sentir vivo. Eu admiro essa sua felicidade nas coisas simples. Parece que eu sempre quero mais e nada me satisfaz.
Eu pensei sobre tudo aquilo, calada. Eu tinha motivos para acreditar em suas palavras mesmo sabendo que ele mente bem?
- Eu não saí de casa para contrariar meu pai, apesar dele ainda ter raiva disso. Eu tinha uma namorada e eu sinceramente a amava. Eu dedicava tudo a ela. A gente se conheceu ainda na escola, quinze anos, jovens demais, mas, Deus, eu a adorava. Eu a achava menina mais linda do mundo. E a gente fazia planos. Bom, pelo menos eu fazia, ela apenas concordava. Então eu, apaixonado, resolvi que queria passar a minha vida com ela. Eu pedi permissão ao seu pai, eu peguei todas as minhas economias da época de passear com cachorro e cortar grama para comprar uma aliança de noivado cara. Eu tinha 18 anos, eu não tinha noção de nada, eu era apaixonado, cego. Quando a surpreendi, ela ficou espantada. Ela me proibiu de ajoelhar, ela mal olhou para a aliança. Ela disse que eu era maluco. Nisso ela tinha razão. Depois ela começou a falar coisas que me marcam até hoje. Falou que era ridículo tudo aquilo, que ela não planejava em passar sua vida comigo, que ela não queria um futuro tedioso. Disse que eu era medíocre, sem graça, que eu não sonhava tão alto quanto ela. Que o namoro era porque ela era adolescente, que era apenas por conveniência. Ela disse essas coisas sem o menor pudor, sem o menor polimento. Eu não sabia onde enfiar minha cara. Eu fiquei tão quebrado, eu fiquei com tanta raiva. E então eu rasguei a minha carta de aceitação na faculdade, peguei o dinheiro reservado a ela e saí estrada a fora buscando aventura. E eu confesso que essa situação me fez mudar muito. Eu sou irônico, eu sou arrogante. Eu sou um chato. Mas, se isso significa que ninguém vai conseguir me atingir, que ninguém vai conseguir me quebrar, então eu vou continuar sendo assim.
Eu levantei meu tronco e o encarei, eu mal sabia o que dizer.
- E eu estou ficando cada vez mais duro sem perceber, sabe? Antes eu contava essa história em bares, para gente que não queria ouvi-la, e chorava de raiva. Hoje eu a contei para você e nada, nem uma simples gaguejada. Eu queria provar para ela que eu era mais do que ordinário e, cara, eu até levei tiro! - ele riu
- Você não precisa provar nada para essa fútil, Zach.
- Eu acabei provando para mim mesmo, isso que é engraçado. Eu sou egoísta de estar usando o dinheiro da minha educação assim? Sou. Meu pai tem razão de estar enfezado comigo há quatro anos. Mas eu aprendi coisa que a faculdade nunca ia me ensinar. Eu aprendi a viver de verdade... Eu acho.
Eu sorri sem mostrar os dentes. Neste momento, uma borboleta amarela veio voando entre nós e pousou na ponta do nariz de Zach. Ele abriu um sorriso, tentando não falar nada para que ela não fosse embora. Tentou olhar para o próprio nariz, para enxergar a borboleta, ficando vesgo. Eu achei adorável. Ele mal respirava para a borboleta não voar. Seu sorriso se abriu mais e eu deixei de observar a borboleta para observar o modo com o qual seus lábios se curvavam, seus dentes apareciam. Um sorriso que não parava de crescer. E eu quis beijá-lo.
Eu continuei admirando a cena por um curto momento que pareceu infinito. Ainda estávamos deitados na poça de lama, os cavalos ainda estavam parados praticamente no mesmo lugar, só que mais preocupados em comer o pasto do que conosco. E eu queria agir por impulso e beijá-lo. Não sei a razão, talvez por ter entendido um pouco mais de onde vem todo o jeito irritante dele, talvez porque eu estava feliz e, na minha cabeça, beijá-lo seria um bom final para aquele dia. Ele continuava a olhar a borboleta com os olhos baixos e cruzados, tentando enxergar a ponta de seu nariz, sem ao menos imaginar o que se passava pela minha mente, sem ao menos saber que, assim que a borboleta voasse, minha intenção era de virar seu rosto ao meu e surpreendê-lo.
Mas a borboleta voou e eu não tive a coragem. Eu? Sem coragem? A borboleta bateu as asas bem em cima de mim, mas não pousou em minha pele. Quando ela voou mais para longe, saindo de minha atenção, virei o rosto para o lado, encontrando os olhos de Zach pousados em mim. Eu contei as gotas de lama, agora ressecadas, em suas bochechas. Cinco. Ou quatro e uma pinta? Não sabia dizer. O que eu sabia é que meu peito estava queimando, minha boca estava seca pela dele. E então eu o fiz. Eu encostei meus lábios em seus rapidamente e, o que começou apenas como um esbarrão virou uma mordida no lábio inferior, virou meus dentes se arrastando por sua pele devagar, virou algo mais molhado, mais sensorial. No entanto, nossas línguas permaneceram em seus respectivos lugares. Eu soltei seus lábios antes que me arrependesse, antes que eu quisesse cada vez mais, antes que eu me esquecesse de onde deveria parar.
A primeira coisa que vi quando abri os olhos, foi seu sorriso de novo. Tive que me segurar.
- Sabe que você não tem mais tanto gosto de uísque e cigarro? - ele falou, de brincadeira
- Não? Tenho gosto do que agora?
- Torta de cereja... E um pouco de lama.
Eu abri minha boça em protesto e, sem perder tempo, peguei um pouco da lama ao meu lado e joguei em seu peito. Foi assim que começou uma guerra que espantou os patos e fez os cavalos se agitarem. A guerra durou tanto que ficamos cobertos de lama marrom, como se tivéssemos pintado o corpo inteiro. E então deixamos de ser crianças quando o Sol começou a ficar dourado, quando os raios de Sol densos tomaram conta do céu azul, e fomos andando, carregando os cavalos ao invés de montá-los. Colocamo-nos em seus celeiros e voltamos para nossa casa alugada, nosso quarto temporário, sem dizer boa noite aos nossos anfitriões. O que eles pensariam se nos vissem naquele estado? Eu não sei. Só sei o que eu pensava, eu pensava que aquele dia ficaria na minha memória por um bom tempo.
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Música do Capítulo 14: Perfect Day - Lady Antebellum
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