VII - Pedaços Colados
Numa das casas daquele bairro vivia um escritor. Melhor dizendo, vivia alguém que escrevia. Podia até ser um autor com livros publicados descritos num currículo impressionante de várias páginas ou um sonhador teimoso que ambicionava publicar a sua primeira obra. Podia ser tanta coisa dentro desse vasto âmbito da escrita... O que se passava é que havia alguém que escrevia e destruía o que escrevia, porque não estava contente com o resultado do que produzia, muito provavelmente em horas impróprias.
Um romance falhado, um protótipo de história, o aborto de um sonho. Alguma coisa dessas seria, o que intrigou o homem que fazia serviço por aquelas bandas, no início de cada dia. Guardou as impressões e as desconfianças para si e ficou a remoer o caso, a reboque de uma pequena dor de cabeça.
Ele era um homem de poucas palavras e de pensamentos restritos. Nunca gostara de falar muito, era um facto. Metia-se com os seus silêncios, que muitas vezes resvalavam em paisagens mentais áridas, e funcionava bem assim. Não lhe exigiam mais, compreendiam o seu recolhimento, respeitavam a sua vontade de ser invisível. Desprezavam-no, era outro facto. O curioso era que não o incomodava. Daí que sempre tivesse gostado das palavras que não fazem barulho, as palavras que se escreviam e que vinham, com beijos de veludo, acamar-se na cabeça, calmamente, e povoar os cenários despidos das suas ideias. Também não era homem para ler muito, era o terceiro facto. Sem tempo, sem disposição, tornava-se complicado concentrar-se numa página de letra miudinha quando estava tão cansado, à noite, depois do jantar e se sentava defronte da televisão para ver o telejornal. Na verdade, lia alguma coisa. O jornal desportivo para saber como ia o seu clube, ou aquele jornal sensacionalista que escarrapachava na primeira página os crimes violentos cometidos nas vilas pacatas do país. Nos últimos tempos, quarto facto, já não precisava de ler o jornal, porque havia canais que estavam permanentemente a passar notícias, quer fossem crimes ou os debates sensacionalistas e intermináveis sobre os três clubes grandes. Era só sentar-se defronte da televisão e ficava ao corrente do que estava a acontecer, no futebol e nas tais vilas pacatas. Na sala, calçado com as pantufas confortáveis, aguentava uma hora, duas no máximo. Cabeceava de sono. A mulher dava-lhe um toque no braço que, com o correr dos anos, se ia tornando mais bruto e impaciente. "Vai deitar-te!", grasnava-lhe. E ele levantava-se. Arrastava os pés até à cama, afastava as cobertas, fazia uma dobra no lençol. Deitava-se e adormecia.
Acordava muito cedo. Era um cantoneiro de limpeza, empregado do município. A sua função, nobre, mas igualmente ignorada por mais de noventa porcento da população, era a de recolher o lixo diário colocado nos contentores e depositá-lo no camião compactador para ser enviado para o depósito de tratamento de resíduos. Houve uns anos em que alguém resolveu dar mais dignidade ao trabalho que ele fazia desde os 16 anos e chamaram-lhe técnico municipal de higiene. Ele, no fundo, não se importava de se apresentar, sempre que lhe perguntavam ou tinha de preencher um formulário para se habilitar a um prémio ou obter um cartão que lhe daria hipotéticos descontos, de dizer que era um homem do lixo. Orgulhava-se do seu trabalho e nunca, malgrado o espanto e o desdém de algumas pessoas quando o mencionava, nunca se envergonhara de trabalhar na lixeira. Era como ser coveiro. Alguém tinha de fazer esses trabalhos sujos e esquisitos para a sociedade funcionar bem. Imaginem se ninguém recolhesse o lixo, ou se ninguém enterrasse os mortos, a confusão que isso não seria!
Antigamente tratava dos contentores com um cigarro aceso no canto da boca, mas houve alguém que proibiu que se fumasse durante as rondas de recolha. Era perigoso, poderia causar um incêndio. Apesar de ele nunca ter ardido nada naqueles anos a enfrentar madrugadas frias, acatou a ordem. Até porque o médico já o tinha avisado muitas vezes que o tabaco matava. Não que se preocupasse, mas utilizou a desculpa da sua saúde para obedecer às orientações do departamento de esgotos e salubridade. O chefe era novo, rapazola ambicioso que queria mostrar serviço, e não seriam os cantoneiros que iriam fazer-lhe frente, muito menos ele que era parco em palavras e mais poupado se mostrava em discursos, revoluções e quejandos.
Nos últimos meses, andava a fazer serviço na área da reciclagem. Começara por substituir um colega que adoecera, depois foi ficando porque era um trabalho mais limpo e ele já estava à beira da reforma. Tinha de abrandar. Sessenta e quatro anos feitos há pouco tempo, uma espécie de cansaço a corroê-lo por dentro, um fastio que o deixava mais apático e mais distraído, a impressão de que havia que concluir qualquer coisa que ele não estava preparado para terminar. O chefe também o empurrara para esse trabalho mais limpo.
Ter encontrado os volumes amarelos no papelão fora, de certo modo, uma epifania que lhe agitou a vida monótona. Deu-lhe também uma espécie de alegria, de propósito, de curiosidade. O desafio arrancava-o da cama, dava-lhe novas forças, um calor no peito, mais saúde, mais arrojo, um laivo da juventude que há muito o tinha largado.
O escritor tinha cuidado com as provas que descartava. Não se limitava a rasgar as folhas e a enfiá-las na ranhura do contentor azul. Fechava-as num embrulho e atava tudo com um cordel, como se aquilo fosse uma encomenda para as Musas a quem pedia o favor, com a oferenda, de lhe iluminar a inspiração. Ele ignorou os primeiros pacotes, mas quando começaram a ser recorrentes, surgiam invariavelmente à sexta-feira, guardou um deles. Abriu-o na casa-de-banho, porque sabia que ali não seria incomodado. Descobriu as primeiras folhas inutilizadas. Era um texto produzido num computador, passado para o papel com uma dessas impressoras modernas. Ele riu-se porque gostou da frase que leu. "E posso ser mais idiota...". Tentou compor o quebra-cabeças no chão de ladrilho. Conseguiu recuperar a página dessa frase. "E posso ser mais idiota do que sou atualmente? Continuo a sonhar e a inventar e não chego a lado nenhum. Pedem-me calma, mas o que me apetece é desistir. Não sirvo para nada. É evidente que não tenho talento e que ninguém vai ler isto. Ninguém. Ninguém. Ninguém". A palavra repetia-se até ao fim da folha. Ninguém. O outro lado da folha estava em branco.
Achou irónico. Ele, o homem do lixo, também era ninguém, desprovido de talento e de predicados. E se estava a ler aquilo, era porque valia a pena. Sentiu curiosidade sobre que história queria o escritor contar. Então, passou a recolher os pacotes amarelos. Levava-os para a casa-de-banho da sua casa, depois do jantar e antes de ir ver televisão na sala, munido de fita-cola que comprara na loja do chinês. Reunia os pedaços rasgados, compunha as folhas. Depois de as decifrar, guardava-as na gaveta da cómoda, debaixo da roupa interior.
Não percebeu uma lógica naquilo. Pareciam-lhe desabafos, um longo e interminável monólogo com os deuses, com a Lua, com o ar, com o medo, talvez com o nada. Um lamento que variava entre a loucura eufórica de um ébrio e a autocomiseração dolorosa de um deprimido. Uma súplica desesperada pontuada por risadas maléficas. Um discurso assertivo que escondia dores fundas. A moleza de um preguiçoso que se recusava a se esforçar mais do que aquilo. A energia explosiva de um ambicioso que desejava açambarcar o mundo. Braços abertos e braços fechados. Relutância e timidez, a par de histerismo e desinibição. Uma doidice pegada.
Não era um bom livro. Não chegara a compreender que fio tinha aquela história, onde começara e onde supostamente iria terminar. Desiludiu-se, mas nunca parou de recolher os pacotes amarelos, de lhes cortar os atilhos em cordel, de colar pacientemente os pedaços de papel, unindo-os com fita-cola, de fazer ressuscitar palavras decepadas e frases estropiadas. E lia, devagar, cada página recuperada do desperdício. Mas, por mais que lesse, continuava na dúvida sobre a mensagem.
Percebia os dilemas do escritor, as suas hesitações. Se ele soubesse quem era o sujeito, iria restituir-lhe o manuscrito recuperado e fazia-lhe a crítica. Dizia-lhe que aquilo era demasiado confuso. Se quisesse contar uma história às pessoas deveria ser mais simples, menos afetado. As pessoas continuavam a gostar de histórias, mas daquelas que lhes chegavam ao coração, que elas reconhecessem que se tivesse passado com elas anos atrás, ou que tivessem acontecido à irmã do vizinho que morava longe. Para desgraças e queixumes, já lhes bastava a própria vida.
Um dia, ou melhor, uma madrugada, os pacotes amarelos deixaram de aparecer no papelão. Ele conformou-se. Possivelmente, o escritor tinha desistido daquele livro, ou deixara de rasgar o produto do seu engenho criativo. Ou então apaixonara-se e deixara de estar tão triste e sozinho, acabara sem tempo ou motivo para escrever aquele chorrilho de disparates.
Naquele dia, ao chegar a casa, agarrou em todas as folhas que tinha juntado daquele livro esquisito. Olhou para a primeira página que tinha recuperado e releu. "É evidente que não tenho talento e que ninguém vai ler isto. Ninguém".
O escritor estava certo. Ele leu e ele era ninguém.
Quem é que reparava no homem do lixo?
No rosto do homem do lixo? No seu rasto e nos seus sonhos?
Pois... ninguém.
Queimou as folhas todas no fim-de-semana, dentro de uma panela. A mulher acudiu à cozinha, atraída pelo cheiro a queimado. Levou as mãos à cabeça. O que estava ele a fazer? O que era aquilo? Papéis velhos, estivera a desocupar uma gaveta, respondeu apático. E não podias tê-los simplesmente atirado ao lixo? Não, negou com veemência. Não. No lixo não. Era papel. Era para reciclar. E aquele papel já tinha sido reciclado. Estava inutilizado por causa da fita-cola. Inventou uma desculpa qualquer, e a seguir enxotou a mulher com uma ordem ladrada. Ela deixou-o sozinho.
A última palavra que ele leu, antes de ser consumida pela chama que engolia e amarfanhava o papel, que deixava no ar aquele perfume acre, foi... ninguém.
O propósito do livro que o escritor desconhecido rasgou e deitou para o lixo estava cumprido.
Foi lido. E foi lido por ninguém.
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