Prólogo
O aroma de frutas e álcool hospitalar alcançaram a loura antes mesmo do vulto lilás sumir de seus pensamentos.
A loura havia acordado mas não havia aberto os olhos ainda, pensou por um minuto se estava com Edgar, se em algum momento da noite anterior havia parado na cama do amigo. Esses pensamentos foram empurrados para o fundo se sua cabeça quando uma dor latejante a atingiu, a loura sentia que havia um corte em alguma parte de seu rosto, sua cabeça latejava como se seu cérebro estivesse querendo sair fazendo um buraco de dentro para fora, ela nunca havia se sentido assim. Nem em suas melhores bebedeiras, nem nas piores.
Ela buscou na memória ainda de olhos fechados algo que pudesse a ajudar, algo que pudesse a fazer se localizar e descobrir onde estava. Novamente o vulto lilás invadiu sua cabeça nublado seus pensamentos e a impedindo de abrir os olhos.
— Nós já não temos tomografias suficientes? Essa grande massa...
Vozes romperam a bolha silenciosa em que ela estava.
— Fique quieto Keller.
— Os batimentos dela estão a menos de cinquenta, precisamos para o exame.
— O que? Impossível o pulso estar lento e o cérebro dela estar piscando como uma árvore de Natal.
Charlotte ouviu uma conversa preencher todo o ambiente onde estava, mesmo de olhos fechados sentia o cheiro insuportável e o esgotamento lhe alcançar aos poucos.
Mesmo contra a vontade do vulto lilás que estava em seus pensamentos, ela se forçou a abrir os olhos. A escuridão a cercava como uma velha amiga, mas isso não era o suficiente para suprir sua curiosidade, o lugar macio onde estava deitada começou a se mecher e como se tivesse saindo de um túnel, a luz venceu a escuridão preenchendo não só o ambiente como também os olhos de Charlotte a cegando momentaneamente.
— Ela não me parece estar entrando em choque. — O homem pronunciou olhando em direção a um vidro onde estava outras duas pessoas. — Eu sou o doutor Keller — O homem se apresentou segurando o pulso da loura, constatando que continuava lento.
— Onde eu estou? — Perguntou com a voz arrastada e cansada enquanto o homem soltava suas mãos que estavam atadas a maca — Por que eu estou presa?
—No hospital St. Nichols — O jovem de uniforme azul respondeu auxiliando-a — Suas mãos estavam presas porque você chegou um pouco alterada. Do que se lembra? — Perguntou direcionando a luz da pequena lanterna para os olhos da loura.
— Eu acho que estava dirigindo. — Charlotte riu após falar — Se eu tiver feito isso mesmo terá sido trágico porque eu não dirijo a anos. — Sua voz carregava um tom de humor apesar da dor. — Deus, minha cabeça parece que vai explodir, eu nunca mais bebo assim.
O jovem a ofereceu um sorriso doce, ele sabia o motivo pelo qual ela estava ali repetindo o mesmo exame pela quinta vez.
— Você foi achada inconsciente dentro de um carro, segundo a polícia você estava a mais de 150 quilômetros por hora quando bateu contra a árvore. Não sei se me sinto surpreso por você atingir essa velocidade próximo a embaixada sem nenhum policial lhe para ou se eu me sinto surpreso por não haver nenhum droga, álcool ou remédio no seu exame toxicológico.— O rapaz comentou encarando a loura com certa desconfiança — Você consegue lembrar do acidente? Do que estava fazendo antes dele?
A memória da batida veio em um flash preto e branco com o vulto lilás em cada cena, Charlotte lembrava de partes do acidente mas não entendia como havia acontecido, não entendia o que havia provocado toda essa reação, ela sentia que tentava montar um grande quebra-cabeças sem saber a figura que deveria formar.
— Mais ou menos. — Charlotte assumiu respirando fundo e pesadamente enquanto sentia as costelas se reencaixando dolorosamente — Já posso ir embora?
— Ainda não, o Doutor Stein achou melhor fazer alguns exames antes de te liberar para descartar lesões ao cérebro. — Falou jovem médico se afastando para pegar a cadeira de rodas que estava próxima a parede.— Você quebrou algumas costelas, ganhou alguns cortes mas nada muito grave, acho que podemos te considerar um milagre.
— Não existem milagres — Charlotte murmurou — Não preciso de cadeira, eu consigo andar. — Protestou Charlotte se levantando em um impulso, porém o médico a impediu de continuar o caminho.
— Você tem vinte e quatro pinos na sua coluna, além de ter sofrido um acidente equivalente a uma queda do 50°andar, o doutor Stein achou melhor não forçar sua coluna por enquanto. — O jovem argumentou a sentando na cadeira — Os cedativos ainda devem estar no seu organismo, não sei como consegue estar acordada.
— Bem, eu sou um mistério médico.— Ironizou enquanto o jovem médico a empurrava na cadeira de roda pelo hospital.
A loura respirou fundo pensando em que confusão havia se metido, os corredores intermináveis do hospital despertaram memórias desagradáveis de Charlotte, memórias do hospício, memórias de uma época de dor e diversos tipos de agressão. Enquanto passava a mão de leve em seu pulso tentava convencer a si mesma que não estava mais naquele hospital horrível onde ela passou alguns anos.
A cadeira de rodas parou arrastando Charlotte de volta para a realidade. Não demorou muito para que um homem de jaleco branco e algumas imagens de um cérebro fosse até ela.
— Vou dar uma olhada nos seus novos exames e já peço para você entrar. — O médico respirou fundo encarando a amiga e lhe oferecendo um sorriso solícito. — Quero o nome do que você está tomando para a pele, pois você não envelheceu nem um dia. — O médico comentou.
— Eu gostaria de poder dizer o mesmo — Charlotte respondeu arrancando uma risada leve do médico — Devo me preocupar com o resultado dos exames?
O médico passou a mão nos cabelos grisalhos antes de levar à mão ao bolso.
— Tenho certeza que não passou de outra bebedeira destrutiva, certo? — Jackson Stein perguntou retoricamente caminhando até seu consultório.
Charlotte fechou os olhos se deixando ser arrastada para uma memória distante, arrastada direto para a lembrança de quando conheceu Jackson na época em que ela trabalhava no circo, havia uma vida de história e mentiras, então, pela primeira vez ela torceu para que realmente não houvesse nada de errado. Ainda de olhos fechados tentou puxar em sua memória o que havia acontecido na noite passada. Suas lembranças a carregaram para o início da noite, onde ela poderia jurar que viu Daniel e a família na calçada onde ela se agarrava com uma demônia qualquer, depois disso toda sua noite era um embaraçado de fios.
Daniel, Daniel, Daniel. Era como um maldito lembrete em luzes vermelhas espalhando caos por todos os lados. Um semi fracasso que iria a perseguir por toda a vida.
Charlotte se levantou da cadeira de roda se concentrando em se manter de pé, sentiu as costelas doerem ainda mais do que antes. Ela encarou o próprio reflexo no espelho da recepção, havia um corte que parecia estar cicatrizando porém parecia ter ganho alguns pontos, seu rosto parecia sem cor e possuía um semblante de esgotamento e algumas manchas de sangue seco.
— Você chegou em um estado pior — Ouviu uma voz sussurrar próximo ao seu ouvido. — Mas demoraram nove horas para te encontrarem, deu tempo do nosso sangue curar a maior parte.
Sua mente foi invadida por cenas dela sentada no banco do motorista do carro seus rosto estava coberto de sangue, ela estava acordada mas não sentia as próprias pernas, ela sentia uma dor horrível nas costas e o cheiro da morte a sufocando.
— É hoje que iremos colher sua alma? — O vulto lilás sentado no banco do carona perguntou — Você quebrou a coluna novamente, no mínimo oito costelas. Eu sinto muito mas você tá péssima.
Charlotte tentava puxar o ar mas não conseguia, o sangue saia por sua boca a deixava intoxicada com o gosto metálico.
— Pare de lutar pirralha, vai ser melhor para nós dois. — O vulto comentou.
Charlotte tentou falar mas parecia que seu corpo não respondia a nenhum comando dado.
O vulto pareceu se estressar com a insistência da loura em se manter viva.
— Sei que estávamos quase lá, foi um bom momento para mim, mas infelizmente não vai ser dessa vez, ele tem planos maiores para você. Eu sinto muito. — O vulto falou antes de desaparecer.
Charlotte travou os dentes e abriu os olhos balançando de leve a cabeça. A roupa do hospital estava grudada contra o próprio corpo, ela sentia o corpo quente como se estivesse para pegar fogo. No fundo de sua mente ela conseguia ouvir Anúbis rir.
— Senhora Fallon, o Doutor Stern irá lhe atender agora.— A recepcionista anunciou cortando a linha de raciocínio e travando as memórias de Charlotte.
Ela respirou fundo e caminhou até a porta do consultório do velho amigo e bateu três vezes antes de abrir.
— A enfermeira me avisou que eu já podia entrar. — Falou projetando o corpo para dentro da sala.
A sala do médico estava incrivelmente gelada, o que fez a loura agradecer mentalmente pois sentia que iria entrar em combustão a qualquer momento.
— Ah, Charlotte. por favor, sente-se.
Ela se acomodou na cadeira em frente a mesa do médico, as paredes cobertas de fotografias dele com alguns pacientes famosos que se trataram com ele e alguns diplomas emoldurados davam um ar narcisista a sala, como se Jackson exibisse a sala como uma troféus de vitórias. A mulher voltou a direcionar o olhar para o médico que carregava um semblante preocupado. No fundo Charlotte desconfiava que havia acontecido algo, Jackson estava com um semblante nervoso, ele não havia a oferecido nada que a deixasse relaxada ou mais acomodada como das outras vezes.
— O que deu nos exames? — Ela perguntou ansiosa e preocupada.
— Os exames... — O médico levou a mão a testa antes de levar os óculos de armação grossa ao rosto — Charlie, eu quero que você saiba que hoje existem diversos novos meios de tratamento, esse tipo de doença não é uma sentença de morte agonizante.
Jackson abriu a gaveta retirando uma pasta com alguns gráficos e outros papéis.
— Nós temos um novo tratamento que pode te oferecer cerca de nove por cento de chances, basta olhar esses gráficos que comprovam a eficácia, poucas ou nenhumas reações negativas...
Charlotte encarou o homem com certa confusão no olhar, ele descarregava diversos gráficos e informações, documentos com estatísticas e pesquisas com células tronco e medicamentos.
— Jack, eu não estou conseguindo te entender, tratamento de que? Chances de que? O que deu nos meus exames? Algo que eu precise me preocupar? — Charlotte perguntou empurrando de volta os papéis na direção de Jack.
— Charlie eu sinto muito mas as notícias não são boas.— Jackson pronunciou após um longo silêncio, ele retirou os óculos e respirou fundo. — Eu não sei como lhe falar, quer dizer, eu te conheci no circo, fui padrinho do seu casamento e eu fiz sua primeira ultra-som na gravidez, eu não sei como lhe dizer isso.
— Jackson não me deixe ainda mais nervosa.— Charlotte elevou a voz.
— Eu sinto muito mas o exame detectou alguns tumores malignos. Você tem câncer.
— Câncer? — Perguntou descrente — Se isso for algum tipo de piada não tem graça Jackson.
— Eu nunca faria isso. Eu preciso fazer mais alguns exames mas eu posso te garantir que o que você possui é o que chamamos de Glioblastoma, mais comum em pessoas na terceira idade, ele está envolvendo metade do seu cérebro. — Jackson tentava soar claro — Você deve estar passando por dores dilacerantes, pelo tamanho do tumor você deve o possuir a pelo menos uns nove anos.
— Você está enganado. Eu não posso estar com câncer. — Charlotte se levantou brutamente da cadeira tentando controlar as lágrimas que rolavam por seus olhos.
— Eu posso mandar refazer os exames, mas tenho certeza que não vai alterar o inalterável, uma biópsia pode nós confirmar, mas eu acredito pelo tamanho que é inoperavel.— Jackson escolheu falar toda a verdade, ele melhor que ninguém sabia o quanto a loura odiava mentiras — Nós podemos fazer com que os próximos meses passem suavemente, talvez um tratamento experimental...
Charlotte parou de ouvir depois que inoperavel saiu da boca de Jackson, era como se o mundo tivesse parado e lhe acertado um soco no meio do rosto. Seu coração estava acelerado como o de um corredor de maratona, pensou na irônia que era estar ali. A ultima vez que havia visto o doutor Jackson, havia sido acompanhada de William Fallon quando ainda eram um casal, ela conseguia se lembrar até hoje do que se tratava a consulta na época.
Agora da mesma pessoa de quem ouviu " Parabéns, você está grávida e eu aposto que vai ser uma menina " agora havia escutado " Parabéns, você tem câncer e eu aposto que você irá morrer".
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