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A Normalidade Em Se Estar Morrendo

Mesmo o clima estando a -2°C, Charlotte sentia o corpo quente, o suor escorria pelo rosto e o lençol se colava contra o corpo, as plantas que a senhora Wany havia espalhado pelo apartamento para dar um ar de vivo ao local morriam pelo vapor presente.

A respiração descompasada da loura indicava que havia algo errado, a mulher lutava para conseguir acordar, algo a estava prendendo naquele estado semi-conciente e cada tentativa de fazer alguma magia funcionar a quebrava e a deixava mais cansada.

Ela olhava o escuro que a cercava, estava presa no próprio corpo e o único modo que a poderia trazer de volta era a coisa mais boba do mundo: ela precisava de algum barulho alto para a guiar para a realidade.

Com o resto de energia que ainda possuía se permitiu focar no ambiente ao redor.

Conseguiu ouvir o som da porta sendo aberta, alguém colocar algo sobre o balcão da cozinha, logo depois o barulho alto da porta batendo.

O barulho da porta batendo com força trouxe Charlotte de volta a realidade a acordando do estado que estava, a loura se projetou para frente tentando recuperar o fôlego, porém logo desistiu deixando com que o corpo caísse novamente contra a cama.

Por alguns segundos enquanto normalizava a respiração se permitiu ignorar o sonho com Mike, ignorar a vontade de se esconder em um buraco e esperar a morte e ignorar também o fato que sua senhoria havia dado suas chaves a um completo estranho.

A loura suspirou e encarou o teto por alguns segundos, as paredes assim como o teto possuíam pinturas novas, os móveis antigos que já estavam no apartamento quando a jovem o alugou, haviam sido substituído por novos e modernos. Somando ao assustador fato que a senhora Wany havia trocado as chaves do apartamento, Charlotte se pegou pensando que ou a senhoria havia feito um ótimo trabalho com o valor extra que Charlotte a mandava pelo correio ou que a simpática senhora planejava alugar o imóvel para outra pessoa se a loura não houvesse aparecido.

Mesmo sem vontade a loura se levantou da cama e caminhou até cozinha que era separada da sala por um balcão de mármore, havia uma bandeija de café da manhã posicionada sobre o balcão, ela respirou fundo deixando o cheiro de chá invadir suas narinas de maneira reconfortante, era estranhamente familiar se sentir em casa e ao mesmo tempo sentir a casa tão diferente.

Ela pegou a xícara de café, dispensando o chá, e caminhou tentando reconhecer a própria casa, agora ela possuía uma sala aparentemente confortável, dois quartos bem arrumados e um escritório com seus acúmulados itens de "trabalho".

Antes a cama da loura ficava na sala e haviam caixas ocupando os dois quartos e o escritório, desde que havia fugido para aquele apartamento ela não havia sentido vontade de desempacotar nada além do necessário, mas pelo visto em sua ausência a senhora Wany havia feito isso, Charlotte adicionou um lembrete mental de trocar as fechaduras do apartamento e ter uma conversa sobre limites com a sua senhoria.

Sua cabeça começou a doer fortemente a fazendo perder o equilíbrio por alguns segundos, a dor insuportável a cegou por alguns instantes, preferiu jogar o líquido da xícara no vaso de planta da varanda e retornou para o interior do apartamento.

A loura pôs a xícara na pia e caminhou até o banheiro para jogar uma água no rosto, ao encarar o próprio reflexo não reconheceu a pessoa que a observava, as olheiras gritantes e a aparência pálida ilustravam uma pessoa diferente do que Charlotte era. Ela levou a mão ao cabelo retirando dele uma pequena Rosa, presente do sonho com Mike.

Charlotte aproximou a rosa do nariz para inspirar seu aroma, o cheiro adocicado de Mike ainda estava ali, e o cheiro doce foi o estopim do enjoo, a vista de Charlotte escureceu novamente a fazendo se segurar na pia para permanecer de pé, o estômago parecia que tentava digerir pedras mesmo não tendo ingerido nada. Ela apoiou na pia e deixou que os últimos resquícios do que havia jantado saísse junto com uma grande quantidade de sangue.

— Ótimo, é assim que eu vou morrer, abraçada com a pia e afogada no meu próprio sangue.— Reclamou em voz alta antes de passar a mão na boca tentando se recuperar.

Enquanto vomitava mais uma quantidade de sangue se pegou pensando que o encantamento para fazer aquele sintoma passar poderia a fazer piorar ainda mais.

A loura passou a mão pela boca novamente e respirou fundo se encarando no espelho. A imagem que a encarava de volta parecia saudável, sombria e levemente realizada. Também possuía uma ótima aparência.

— Se você morrer agora não será um cadáver tão bonito assim. Então trate de melhorar. Você não pode ignorar o câncer para sempre. —  Seu reflexo sussurrou antes de voltar ao normal.

A loura permaneceu encarando o espelho por mais alguns minutos tentando entender o que havia acontecido, o gosto metálico havia se instalado na boca a fazendo se sentir ainda mais enjoada.

Após escovar os dentes pela terceira vez a jovem se despiu entrando no banho em uma tentativa de sentir-se melhor. Enquanto ensaboava o cabelo deixava a cabeça vagar, o relógio da sua morte corria rapidamente, ela sentia o momento se aproximando e também sentia seu próprio corpo começar a apresentar falhas; a cabeça não parava de doer, os olhos constantemente embaçavam e escureciam fazendo-a sentir que cairia a qualquer momento, agora tinha mais um sintoma a acrescentar na lista: vomitava sangue.

Ela passou dias vivendo uma normalidade assustadora mesmo com sintomas avassaladores, ela sabia que precisava encarar a realidade, também sabia que desde o diagnóstico estava vivendo uma vida de mentiras e ilusões, que a normalidade que ela fingia possuir a estava esgotando tanto quanto o câncer.

Era minimamente engraçado que o fato de estar morrendo a fazer sentir sem magia e estranhamente humana.

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