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Naquela manhã | Capítulo Dois

Paris, Inverno de 1935

Mayer deixou-se acordar pelos raios de sol que começavam a brotar da janela, não evitando pensar que havia algo de mágico em dias de Inverno como aquele, em que o Sol brilhava num céu ausente de quaisquer nuvens.

Sentiu uma mão quente a pousar-lhe no peito e virou-se para a figura que o tocava. Liora ainda dormia profundamente, com uma respiração pesada que embatia no seu pescoço e lhe provocava pequenos arrepios.

Depois de um ano com Liora, Mayer ainda não conseguia acreditar na sorte que tivera, e estava sempre à espera de acabar por acordar e aperceber-se que não passara tudo de um simples sonho.

Desde o dia em que se conheceram no parque Monceau, ele e Liora tinham-se tornado inseparáveis. Durante o tempo que passaram juntos, foram-se apercebendo de muitos aspectos que os diferenciavam um do outro, nomeadamente, o de Liora ser puramente intuitiva e agir de coração, enquanto que ele era calculista e racionalizava demais sobre as coisas.

Porém, apenas os dois aspetos que partilhavam entre si chegaram para os aproximar daquela forma: primeiro, o facto de serem ambos judeus que abandonaram a Alemanha e se foram refugiar na cidade de Paris, como forma de escaparem ao movimento nazi; e segundo, possuirem a mesma paixão fervorosa pela fotografia.

Os pensamentos de Mayer foram interrompidos quando Liora se remexeu e começou a murmurar numa voz sonolenta:

- May, meu amor, que horas são?

Mayer sentiu o seu interior aquecer. Retirou um cabelo cor de mel que se tinha colado ao canto da boca de Liora e começou a acariciar-lhe a pele morena do ombro descoberto, sempre tão macia.

- Temos de preparar as fotografias dos pedidos desta semana. O Richard Smith não pode descansar em serviço... - prosseguiu a mulher, com uma voz dominada pelo sono. Ainda de olhos cerrados, um pequeno sorriso formou-se nos lábios de Liora, e Mayer sentiu uma ternura e paixão imensas esmagarem-lhe o peito. Ele amava-a tanto.

- Sim, tens razão. - respondeu-lhe com doçura.

Richard Smith tinha sido o nome que criaram de modo a serem bem aceites pela comunidade jornalística, e trabalhavam os dois em conjunto sob esse pseudónimo, vendendo as suas fotografias através dele. Infelizmente, naquele momento, ter nome judeu não trazia nada para além de má reputação e exclusão.

Mayer levantou-se com cuidado para não destapar Liora e percorreu a casa até chegar à porta de entrada. Como todas as manhãs, vestiu o seu pesado roupão de algodão e esperou no exterior que o menino dos jornais alcançasse a sua porta. Apesar do Sol estar resplandecente, o frio de Inverno era cortante e Mayer apertou ainda mais o roupão contra o peito. O som de uma buzina anunciou a chegada do seu jornal e Sam, o menino dotado de tal tarefa, atirou-lhe o pedaço de papel com um sorriso nos lábios.

- Bom dia Senhor Richard! - gritou, enquanto seguia pedalando na sua bicicleta.

Mayer retribuiu-lhe com um pequeno aceno de mão e voltou a entrar dentro de casa. Caminhou até à cozinha e começou a preparar o seu café e o de Liora. Como era habitual, meteu-se a ler o jornal enquanto esperava que a bebida ficasse pronta, porém, gelou ao percorrer os olhos pela manchete desse dia: "Espanha à beira de uma Guerra Civil".

Umas mãos abraçaram-no por trás, despertando-o do seu estado de transe.

- Alguma coisa interessante? - perguntou Liora, enquanto lhe beijava a nuca, provocando-lhe um formigueiro reconfortante.

Mayer inclinou o jornal para que ela também o pudesse ler. Liora retirou os braços em volta dele e pegou no pedaço de papel, lendo as letras em destaque com um brilho perigoso no olhar. Reparou que ela também já tinha vestido o seu roupão por cima do pijama deliciosamente provocador. Quando falou, o tom de voz de Liora saiu amargo e algo urgente.

- Temos de ir Mayer. Quando a guerra começar, temos de ir para Espanha e fotografar esses momentos. No futuro, o ser humano deve ser relembrado constantemente das atrocidades que já cometeu, e é o nosso dever garantir que isso aconteça.

Para ser sincero, Mayer não esperava outra atitude de Liora, pois ele sabia melhor que ninguém o quão ela era destemida e apaixonada por aquilo que defendia. E ele? Ele não conseguia deixar de a admirar por isso, embora mantivesse uma perspetiva um pouco diferente sobre as coisas.

Num impulso incontrolável, começou a acariciar o cabelo de Liora e depois a curva do seu pescoço, enquanto ela ainda o encarava com o jornal nas mãos. Como reação ao seu toque, a mulher descontraiu o semblante pesado e fechou os olhos, suspirando exasperada.

- Como é que tu és capaz de me fazer isto? Como é que és capaz de me esvaziar a cabeça desta forma? - disse Liora, num sussurro carregado de paixão.

Mayer sentiu o seu desejo aumentar e diminuiu a distância entre eles. Começou a percorrer os seus lábios pela pele macia do pescoço de Liora e só parou na sua boca, beijando-a com intensidade. A mulher abriu os lábios retribuindo-lhe o beijo com fervor, enquanto deixava cair o jornal no chão aos seus pés. Agora com as mãos livres, fazia percorrer os seus dedos pelos cabelos da nuca dele, provocando pequenas faíscas de calor à sua passagem.

Mayer libertou-se do beijo com dificuldade, embora ainda mantivesse os seus lábios encostados aos dela.

- Casa comigo Liora. - disse, numa voz carregada de desejo e de ternura.

Liora afastou-se um pouco, fazendo com que ele encarasse os seus olhos cor de avelã confusos.

- Mayer, estás a falar a sério?

O homem esboçou um sorriso e encostou a sua testa à dela, sentindo a respiração de Liora descontrolada a embater contra o seu rosto.

- Se disseres que sim, vou agora mesmo comprar um anel e casamos ainda antes do final deste ano. Basta dizeres que sim. - respondeu-lhe, colocando todo o seu ser em cada uma das palavras que dizia.

Lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Liora, e Mayer colocou o rosto dela entre as suas mãos, beijando todos os recantos deste. A mulher começou-se a rir e abraçou-o, enterrando a cabeça no seu peito.

- Sim, claro que sim, meu amor - respondeu-lhe, ainda com a voz tremida do choro.

Uma alegria imensa instalou-se no coração de Mayer que pousou a face sobre os cabelos de Liora, inspirando o seu aroma natural a rosmaninho.

Ficaram assim abraçados no meio daquela cozinha pelo que pareceu uma eternidade. E quanto ele desejou que sim, que esse momento pudesse ter durado para sempre, pois nada o tinha preparado para o que meses depois acabaria por acontecer.

1.119 palavras

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