Fortuitas Coincidências (capítulo único)
— Oi! — o visor da filmadora portátil é aberto, e um borrão cacheado entra em foco — Eu sou a Maju, e esse é um mini documentário sobre objetivos a serem atingidos quando não se tem nenhum.
— Não é bem assim, ô menina levada — uma segunda garota usando uma faixa vermelha na cabeça, amarrada num nó, tenta conter a euforia da outra — Eu sou a Fê, e o objetivo disso, na verdade, é mostrarmos a indecisão sofrida pelos jovens na hora de...
— Decidir sua profissão e etcetera — conclui Maju, ensaiando alguns passos desengonçados diante da lente fazendo a imagem sair de foco por alguns segundos — Podemos pular para a parte em que viajamos pelo Brasil afora só com as roupas do corpo? Por favor — ela abraça Fê efusivamente, encarando-a com os olhos arregalados.
— Não vamos viajar só com as roupas do corpo, Maju — ralha a prima. Uma sombra de sorriso passa por seus lábios, entretando, se divertindo com a espontaneidade da mais nova — Então, agora é sério. Ela é a Maju, evidentemente, de dezessete anos; e eu sou a Fê, de vinte. Ela não sabe qual vestibular prestar, e eu não sei se escolhi o curso certo — Fê franze as sobrancelhas, pensando no jaleco de veterinária pendurado em seu guarda roupa — temos a permissão de ficar fazendo o que nos der na telha por vinte e cinco dias. As passagens de ônibus já estão compradas, e pesquisamos algumas casas hostel na internet. Nos deseje sorte! — Ambas acenam, e a câmera grava Maju, com a mochila nas costas, saltitando pelo terminal rodoviário.
***
— Nós temos um objetivo? — sussurra Maju de forma conspiratória, ligando a câmera novamente no ônibus silencioso, apenas a respiração ruidosa e ritmada dos passageiros contracenando com o barulho do motor — Temos vários, sim senhora. Mas o objetivo majoritário, no momento, é zoar a Fê o máximo possível sem que a bichinha acorde. Ela dormiu em todas as viagens de ônibus, por favor, pelo menos na última temos que descontrair um pouco.
— Sai com esse sotaque mineiro pra lá, priminha querida — Fê, que estava acordada sem que a garota percebesse, começa um ataque de cócegas se debruçando sobre o banco.
— Felipa — sibila, procurando controlar a gargalhada alta que teimava em escapar de seus lábios — Para. Com. Isso. — diz Maju, se contorcendo — Vou contar para a tia que você está judiando de mim!
— Tá bom, eu paro — a prima volta para seu assento com os olhos brilhando de divertimento, apertando os lábios numa linha fina, porém — Mas me chame de Felipa de novo, e sou eu quem vai falar com a sua mãe. Ela sempre acredita mais em mim, sabe — finaliza, soprando um beijo no ar antes de se virar para a janela, aconchegando-se para dormir.
— Felipa? — uma senhora de ar simpático se inclina, sorrindo para as meninas — Minha filha também se chama Felipa! É um nome lindo, mocinha, de origem grega. Se orgulhe dele, já nomeou várias princesas — finaliza ela, e Fê adormece com um sorriso no rosto.
***
— Chegamos à nossa última parada, Brasil! Olá, Penedo! — diz Maju, antes que Fê consiga pronunciar uma palavra diante da filmadora ligada.
— Não grita, mulher — repreende a garota, tentando prender os cachos da prima em um rabo de cavalo após apoiar a câmera sobre a mochila — a cidade é muita tranquila, uma colônia finlandesa aqui no estado do Rio de Janeiro. Dá pra ver o porquê de eles terem gostado daqui, mesmo sendo hora do almoço está bem friozinho.
— Hora do almoço? — questiona Maju, olhando o relógio preso no pulso — Por mim, duas e meia da tarde já é hora para um café, você não acha? Vi um ali atrás que servia uma especialidade dos finlandeses, café com vodka, deve ser pra esquentar o corpo.
— Nem me venha com essa, Maju, você é menor de idade — Felipa ri, tirando uma foto da prima, que se equilibra sobre uma enorme rena decorativa própria para fotografar crianças.
— Opa! — ela dá um gritinho, escorregando e caindo do suporte, estourando o zíper da mochila e a rasgando no processo, espalhando seus pertences pelo chão da praça — Francamente, por que essas coisas só acontecem comigo?
— Você sabe que ainda temos uma caminhada de cinquenta minutos até a pousada, não é?
— Não — se lamenta Maju, recolhendo algumas camisetas e enfiando bem fundo as calcinhas na mochila — Não podia ser algo mais perto?
— Quanto mais perto da cidade, mais caro. Vou ligar e dar notícias para mamãe antes de irmos, quer alguma coisa? — pergunta Fê, já caminhando em direção a uma cabine telefônica.
— Não, acho que vou tomar um sorvete ali — diz ela, lançando um olhar desejoso a um estabelecimento em específico — pede pra tia mandar um beijo para a minha mãe por mim!
***
— Ah, será que é a mesma pousada, então? — exclama Maju, dando a última lambida no picolé de morango e olhando entusiasmada para um garoto que Fê não reconhecia.
— Talvez seja — ele sorri, olhando para Felipa — Não é sua amiga? Ela vai tirar nossa dúvida.
— Olha a Fê aí! Fê, esse é o Tom — Maju apresenta os dois — Estamos achando que vamos para a mesma pousada, e então ele poderia nos ajudar na trilha, já que a minha mochila rasgou e todas as nossas coisas estão na sua.
— A nossa fica na estrada do Vale do Ermitão — diz Fê, lendo um pedaço de papel com o número da reserva.
— Que ótimo, a minha também! Estou sozinho por aqui, mas minha mãe e irmã já estão instaladas na pousada — replica Tom, bagunçando os cabelos muito pretos, ao mesmo tempo que a prima da garota resmunga algo sobre o endereço do local.
— Pois então, preciso ir ao banheiro antes de começarmos a trilha; é melhor você vir também, prima. Já voltamos! — Fê acena, sem graça, arrastando Maju consigo.
— Eu não precisava vir aqui — a garota cruza os braços, emburrada, enquanto Felipa realmente usa o toalete.
— Maju, nós precisamos pensar de forma racional — Felipa diz, cética — Você conheceu esse garoto meia hora atrás, e já vai confiando nele assim? Que tipo de pessoa ele é? Vai abusar de nós duas no meio da estrada, mostrar o caminho errado, nos matar no estilo serial killer? É pra gente se cuidar, não ser irresponsável desse jeito, menina.
— Você tem razão — replica a prima, já com cara de quem vai chorar. Felipa nunca grita ou xinga alto, mas quando fala sério, põe medo — Não pensei em nenhuma dessas coisas. O que fazemos agora? O Tom já sabe onde vamos ficar, não tem como dar uma desculpa.
— Não sei também — Fê lava as mãos e empurra a porta do banheiro, enxergando o garoto conversando com o atendente da sorveteria — Ei, Tom!
— Oi! Olha que coincidência, e bem que a minha mãe tinha falado, encontrei um Di Fernandes por aqui — fala ele, sorrindo e indicando o próprio atendente.
— Espera — Fê estaca, apoiando a mochila pesada em uma mesa — Fernandes é até comum, mas Di Fernandes... De onde você falou que é, mesmo?
— Sou de BH, por que? — e Tom ainda continua sorrindo, a cabeça virada para o lado em uma expressão de confusão adorável.
— Parente da Nina Di Fernandes?
— Sou irmão dela! Você a conhece?
— Não acredito que você é o Tom do qual ela sempre falava — Fê se aproxima, estapeando o braço de Tom enquanto Maju observa os dois com cara de perdida — Estudei com ela durante todo o ensino médio! Por que você não disse seu sobrenome antes? Não acredito que vou encontrar sua mãe — diz ela, sorrindo.
— Não sei, as pessoas não começam uma conversa casual falando o sobrenome, não é mesmo? Muito menos espancando um recém conhecido violentamente — o garoto olha para Maju, que acena com a cabeça em concordância.
— Então vamos antes que escureça mais, nem parece que ainda são quatro da tarde pelo sol querendo se pôr, já — replica Felipa.
***
— Quem disse mesmo que era só uma caminhada de cinquenta minutos? — pergunta Maju, esbaforida, revezando a mochila estufada com a prima.
— O Google — responde Tom, dando de ombros — e a minha irmã, ué.
— Não acredito que já são seis da tarde e ainda não chegamos, logo escurece de vez — Fê balança a cabeça, inconformada — Alguém tem uma lanterna?
— Pra quê lanterna? Até agora só usamos o celular para iluminar as coisas.
— É, Maju, mas pra iluminar a fechadura do hostel. O celular não dá pra nada aqui nessa estrada.
— Espera! Acho que eu ainda tenho um daquelas laterninhas de chaveiro, encosta aí — exclama o garoto, parando novamente e apoiando a própria mochila sobre um tronco caído.
— Felipa, me diga em que site você foi achar esse hotel — Maju cruza os braços, encarando a prima.
— Você não estava querendo aventura? Pronto, aqui estamos! Quer parar de me chamar de Felipa? — fala ela, se sentando na outra ponta do tronco úmido, que solta um miado agudo.
— Vou ignorar essas palavras ofensivas só por causa desse barulhinho fofo aí, tá bem? Desculpa, prima, te amo — Maju abraça Fê de forma desajeitada, e os três ouvem o miado novamente.
— Mas não fui eu quem fiz isso! Agora também não, sua lerda — diz Fê, e se inclina sobre o tronco, tentando tirar algo de seu interior — Foi esse gatinho aqui — e ergue uma bola de pelos preta como carvão para que Maju veja melhor.
— Que fofo! — a garota se livra da mochila, agarrando-o de tal forma que só seus olhos verdes são vistos por Tom e Fê na penumbra — Mas ele está tão sozinho, nós podíamos levá-lo com a gente.
— É, ele está bem magro e malcuidado, podíamos pelo menos dar algo de comer ao Darth — confirma Felipa, coçando suas orelhas macias.
— Darth? Que máximo, gostei — diz Tom, sorrindo — Enrolem o gato em algo e vamos em frente.
— Achou a lanterna? — pergunta Maju, já pronta para seguir.
— Está sem pilhas — o garoto sacode uma pequena lanterna prateada presa a algumas chaves, e Maju nota a cor de seus olhos pela primeira vez, verde esmeralda. Eram tão parecidos com os olhos do gato que chegava a ser quase perturbador.
— Ah, droga. Enrola o Darth nesse cachecol azul, nem sei por que trouxe isso — diz ela, puxando de forma desajeitada um cachecol de lã da mochila — e vamos, que enquanto estamos parados aqui só escurece mais.
***
Ao finalmente chegar na pousada, os três se dirigem à recepção, onde encontram uma comoção que parecia não se encaixar com a atmosfera bucólica e campestre do local.
— Rápido, será que uma manobra de Heimlich não funciona? — grita alguém.
— Não pode ser feita com muita brusquidão, ou fará mais mal do que bem — diz uma voz tranquila — afastem-se, por favor — três mulheres e dois homens se afastam, permitindo a Felipa reconhecer uma senhora, a mãe de Nina e Tom, executando a manobra de Heimlich em uma menina pequena que parecia ter sangue em volta de toda a sua boca e nariz.
— O que aconteceu? — pergunta Maju, alarmada, largando Darth ainda enrolado no cachecol sobre um sofá qualquer.
— Precisa de ajuda, mãe?
— Agora não mais — ela sorri, mais calma, limpando o rosto da garotinha com um lenço umedecido retirado da bolsa, e os presentes voltam a se aproximar.
— Obrigada, doutora! — exclama a mulher mais baixa, enxugando as mãos no avental antes de puxar menina e médica para um abraço — Se a senhora não estivesse aqui, não sei o que aconteceria à minha pequena.
— Oi! Sua irmã também existe, sabe — uma garota mais nova, de cabelos e olhos castanhos, a boca rosada de frio, dá um soco no ombro de Tom após este e as garotas cumprimentarem a salvadora.
— Oi, Céci! Lembra de mim? — saúda Felipa, estalando um beijo em sua bochecha.
— Oi, Fê, que saudades! Como foi que você encontrou esse coiso pelo caminho? — diz Céci, já colocando os olhos em Darth, que mia de fome sobre o sofá.
— A Maju que o encontrou, na verdade — Felipa coloca as mãos nos ombros na prima, que ainda encara a garotinha com espanto — eu só encontrei o gato. Será que a cozinha ainda está aberta, para pegarmos um pouco de leite para ele? Só não pode ser leite bovino, faz mal.
— Fê — chama Maju, os olhos arregalados, sem perceber que Céci acaba de cumprimentá-la — como você está tão calma, falando de leite, enquanto aquela menininha está com a boca sangrando?
— Prima, — Fê ri, se escondendo na curva do pescoço de Maju — você não está vendo que aquilo tudo é batom vermelho?
— A filha da cozinheira resolveu assar o batom da mãe e comer, sabe como é — Céci também gargalha, jogando a cabeça para trás de forma escandalosa — Mas agora está tudo bem, não se preocupe, Maju. Acho que a recepcionista já se recolheu, mas vocês podem falar direto com a dona sobre os quartos e o leite para o gato. Uma caixa de papelão também seria boa para que ele dormisse, né?
— Isso mesmo — fala Maju, mais tranquila — Posso ver o leite enquanto você fala com a dona da pousada sobre o quarto, pode ser, Fê?
— Lembre-se, leite de vaca não! — replica Fê, já se encaminhando para um dos sofás floridos, onde uma senhora simpática usando um vestido verde conversava com a mãe de Céci.
— E eu posso procurar alguma caixa de sapatos para o gato enquanto isso — fala a garota, subindo as escadas apressadamente e deixando Tom e Maju sozinhos.
— E agora? — pergunta a garota, embalando Darth no colo.
— And now, the end is near, and so I face, the final curtain...* — Tom cantarola, piscando seus olhos hipnotizantes para Maju.
— Estou falando sério, seu bobo — fala ela, cutucando sua bochecha, indignada.
— Você está cutucando minha bochecha, é isso mesmo, miga? — zomba, ao mesmo tempo em que ressoa um trovão pelos arredores — Opa. Que sorte, chegamos a tempo. Imagina nós três e o Darth na chuva? Uma cena deplorável, certamente.
— Observação deveras válida, senhor — afirma Maju com uma expressão de falsa seriedade.
***
— Isto que são férias de verdade — Céci se reclina no sofá da área comum/recepção, papeando com Fê — Apesar de toda a confusão do batom, o jantar estava maravilhoso. E você salvou o dia, mamãe.
— Tenho certeza de que teriam feito a coisa certa, mesmo se não estivéssemos aqui, querida — replica a senhora, sorrindo — Mas eu já vou me recolhendo, meninas. E avisem o Tom que o quarto dele é o número onze, tá bem? Ele nem deve saber mais qual é, largou a mochila por lá e sumiu — completa ela, com um estreitar de olhos divertido.
— Sabe, eu não conhecia o Tom ainda, mas pelo que você me falou, tê-lo adotado foi a melhor coisa que os Di Fernandes poderiam ter feito — Fê sorri, vendo a mãe dos meninos se afastar e dar boa noite à proprietária.
— Ele é um chato que não sabe conversar com meninas, mas nós o amamos. Isso que importa, né?
— É, acho que sim — responde Fê, olhando fixamente para um ponto qualquer da parede de madeira — Afinal, mais importa o que fazemos de bom e de ruim do que o mérito dos nossos objetivos.
***
— Tô achando que esse mocinho está muito abusado — Maju ri, quando Darth sai da velha caixa de sapatos pela terceira vez para deitar em seu colo. Não que seu pelo agora brilhante e macio estivesse incomodando a garota, mas o interior do chalé das primas estava muito mais aconchegante que a varanda, onde Tom e Maju se encontravam, conversando sobre toda e qualquer besteira que lhes vinha à cabeça.
— Então você gosta dos recatados, é? — Tom ri baixo, se recostando em uma das pilastras de sustentação.
— Não, na verdade — replica ela, escondendo o rosto sob uma cortina de cachos perfeitos que insistiam em cair sobre seus olhos — acho que sinceridade é tudo nessa vida. Não é?
— Concordo. Posso ser sincero com você, Maju? — pergunta o garoto, a encarando.
— Pode.
— Você é linda, ri alto sem se importar com o julgamento alheio, ama gatos folgados e tem algo no seu olhar que o faz ainda mais bonito que os seus olhos. Isso é tudo que eu sei sobre você, afinal, mas continuo querendo muito te beijar — diz Tom, e diante do silêncio de Maju, começa a se desculpar, já se levantando. Tinha sido tudo uma grande coincidência que ocorreu rápido demais, afinal.
— Não, Tom, fica — a garota sorri preguiçosamente, segurando seu pulso com delicadeza — Desculpa por estar tão aérea — diz Maju, e o puxa até ficar a centímetros de seus lábios, remexendo em seus cabelos bagunçados como tivera vontade de fazer antes — Mas você, menino. Você me hipnotiza com esses olhões aí.
— É mesmo? — diz Tom, mais afirmando que perguntando, enlaçando sua cintura do jeito mais cômodo possível sem que esmagasse a bola de pelos entre ambos, a qual iluminava a penumbra com dois faróis esverdeados.
— Dá pra fechar esses olhos e me beijar logo? — Maju se inclina, impaciente.
— Ai, bela. Fecha os olhos — pede o garoto, e ela o faz — inspira fundo esse cheiro de liberdade, de mato, do seu próprio perfume que cheira a baunilha, cheiro de chuva. Sente o vento gelado no seu rosto, o meu coração batendo aqui juntinho do seu. Quando você sentir tudo isso, Maju, me beije você. Sente o caminho antes de chegar no destino.
E ela sentiu, abraçando Tom mais forte.
Porque Maju continua tendo muitas dúvidas. Porque Maju nunca pensou realmente nelas, apenas quando lhe era exigida uma decisão. E, finalmente, porque Maju decidiu — a partir desse momento — aproveitar o caminho antes de chegar no destino.
— Você não é um serial killer, né? — pergunta ela, fazendo o garoto abrir os olhos.
— Não, nem pra matar essa tua pressa — Tom sorri, tranquilo.
— Seu ridículo — Maju sorri, tocando seus lábios de forma quase imperceptível — vem cá, vem.
***
* trecho da música My Way, de Frank Sinatra
E assim termina o conto para o desafio do RomanceBR ❤️ O que vocês acharam? Não deixem de ler o próximo capítulo, por favor
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