Capítulo 7┃Seja e Faça
Richard, Charles e Hans comiam juntos no refeitório. Pães cevados, maçãs, salsichas, ovos e chá de ervas formavam o café da manhã daquele dia. Haviam acabado de voltar de mais um treino árduo no Circuíto, e Cabo Preston prometeu que da próxima, provavelmente estariam à cavalo ou em um carro blindado. Passou-se um mês e dois dias desde que Sawyer deixou sua mãe e sua irmã.
— Rich, o que foi? - perguntou Charles.
— As nossas turmas... Nós estamos a mais de um mês aqui, certo?
— Sim. Qual o problema?
— É que eu me esqueci completamente de mandar cartas para minha mãe e irmã. Eu prometi que o faria.
Hans juntava salsichas aos ovos cortados e os saboreava como um cavalheiro, contrastando com seu rosto único — Não se preocupe, Richard. Muitos também se esqueceram. E é melhor comer, o desjejum não dura pra sempre
Entre garfadas de ovos, bebericadas no chá e mordidas na maçã, Richard ainda se preocupa com o fato. Sua mãe, no entanto, também não escreveu. Provavelmente nem mesmo saiba qual o endereço da academia, e pode estar tão ocupada com algum trabalho na cidade, os cuidados de Dory e da casa, talvez até tenha se esquecido também.
— Você têm irmãos? — pergunta Rich, ainda com os pensamentos em Dorothy.
— Não, sou único. E você?
— Tenho uma irmã mais nova. Ela se chama Dorothy, é uma meia-elfa de nove anos.
Hans o estudou por um instante, seus olhos cor de âmbar tão fixos na comida, e ao mesmo tempo tão distantes. Sua mão direita remexendo na última salsicha, a mão esquerda apertando o boné de delegado. — Foi um caso? — perguntou ele com cautela. Tinha medo de encostar numa ferida aberta.
— Não, segundo casamento. Meu pai morreu quando eu ainda era criança, e aí veio um cara lá do noroeste, um élfico sabe.
— Entendo. — Hans estava prestes a acrescentar mais alguma coisa, quando a trombeta de anúncio do horário letivo tocou. Richard terminou a refeição rapidamente e seguiu para a sala com Charles.
Era uma aula de Ética e Diplomacia - uma das matérias mais repudiadas pelos alunos, por causa da demasia com a que o professor Titus ensinava. Aprendiam a como tratar os civis, oque deveriam fazer antes ou depois dos combates. São centenas de regras, nomeadas como 'Tratado de Birvel'. É um documento não muito antigo, assinado a meio século ou mais, criado logo após um período conhecido como Guerras Hegemônicas, onde um único homem liderou todo o exército de uma nação, forçando a aliança de vários países, incluindo a Galdênia, para assim impedir seu avanço.
Logo após, tiveram aulas de Cartografia, a arte da leitura de mapas. O professor era um homem com pouco mais de quarenta, uns últimos fios de cabelo cinzento e um bigode bem aparado chamado Harold Westmer. Ele serviu na Marinha Real, e era um dos professores mais aclamados pelos alunos, pois era o único a compartilhar suas histórias de guerra com um considerável humor, cativando a atenção dos Cadetes a todo momento.
— Já lhes contei de quando um esquadrão de aeroplanos investiu contra o King Zachary? — diz, enquanto mostrava a eles um método de desenho para mapas improvisados. Eles negativam. — Bem, então vamos lá... Foi um pouco antes desta Grande Guerra, eu devia ter uns 25 anos, ou coisa parecida.
Eram três navios pertencentes à Frota Real, HMS King Zachary, que era um encouraçado, estava em bombordo - à esquerda -, enquanto outro encouraçado chamado HMS Saltter acompanhava em estebordo - à direita. Eram liderados pela fragata pessoal do Baronete Wesley Kenders - primo da atual Rainha Victoria II. Estava realizando a escolta de um navio com prisioneiros, tarefa dada pelo pai de Wesley, Príncipe Philip Kenders. No entanto, o Duque odiava ter de se submeter àquilo, transportar prisioneiros, em sua mente, era algo que qualquer um poderia fazer. Ele buscava a glória, unicamente alcançada em meio à batalha.
O professor ri ao se lembrar daquilo — Ele pagou com a língua. Estávamos passando pela costa de Aldervegger quando escutamos um som bem peculiar.
O som de motores rotacionando hélices em altíssimas velocidades no céu. Os aeroplanos de caça desceram rasgando os céus em formação, disparando com suas metralhadoras de alto calibre. Muitos nem viram por onde vinha o ataque, e caíram no mar já sem vida. Mas não Harold Westmer. Estava em sua cabine quando o ataque começou, mas logo se aprontou para o seu posto, correndo até um dos canhões da proa.
— E como o senhor soube que eram Gretésvos? — pergunta Alfred Rhotus.
— Ah, meu rapaz, você vai saber quando os ver. É bem difícil de se esquecer aquelas listras negras nas asas.
Foi um intenso tiroteio, a estratégia dos pilotos havia sido bem sucedida, ninguém esperava por um ataque surpresa àquela altura. Atacaram a fragata até que fosse à pique, afundando no mar. HMS Saltter se prontificou em resgatar o Baronete e seus homens, enquanto Zachary fazia sua cobertura, e os aeroplanos deram espaço no céu para o verdadeiro astro; um enorme dirigível Celespiccoli, uma versão Campella da temida Carruagem da Morte, porém bem menos equipada e robusta. Tinha enormes canhões preparados para disparar, e iriam fazer chover em cima do Saltter, e acabar de vez com o curto histórico de batalhas de Wesley Kenders. Contudo, Harold se antecipou, saindo do seu posto ele voou até o enorme canhão de artilharia na popa - a traseira do navio. Ignorou ordens, empurrou oficiais e chamou alguns marujos para auxílio. Foram necessários dois homens para ajustar a posição e ângulo do canhão que era três vezes maior que uma casa. O Celespiccoli já estava em cima do navio, prestes a disparar, e assim também estava Harold. Suando frio, disparou, o som do tiro sobrepôs o caos do tiroteio e explosões que ocorria, e num instante o balão de gás explodiu em mil pedaços, caindo em chamas no mar, lentamente. Os alunos, todos atônitos, tomavam notas do que lhes era dito. Richard notara que Charles estivera desenhando o balão em chamas no caderno, ao lado de um mapa que fez seguindo as instruções do professor.
— E eu teria recebido uma medalha por isso, mas os oficiais mais tarde me prenderam por insubordinação, e Wesley Kenders a recebeu no meu lugar. — ele completa.
— Mas... Isso é injusto, o senhor nunca tentou contestar isso? — pergunta Chris Dyckon, o meio-élfico de cabelos ruivos.
— Não, meu rapaz, não. — ele responde com um sorriso tranquilo no rosto — Eu não preciso de um pedaço de metal enfeitado para provar oque eu sou.
Em uníssono, todos se admiram com o dito. Na terceira aula do dia tiveram Geopolítica, que apesar do nome, só lhes apresenta os nomes, rostos, e uma breve história sobre os líderes envolvidos na Grande Guerra, e porquê os Cadetes deveriam admirá-los, respeitá-los ou odiá-los.
— Agora, Charles Melswype, quantos veículos terrestres a Gretésvia usou na Invasão do Porto de Barabad? — perguntou Steve, do nada, analisando se seus alunos estavam o acompanhando.
— Nenhum, senhor. E-eles atacaram pela água, e d-depois pelo ar. — respondeu Charles, com um nó na garganta, tão apertado que mal pôde respirar.
— Muito bem, o ataque principal ocorreu no mar e na água. Contudo, houve o uso de veículos blindados. Uma única Brigada de dez blindados, na verdade, que tomou o Distrito de Al-Asir. — disse Steve, mantendo o ritmo da fala com altíssima finesse — Agora, turma, porque é importante se lembrar deste fato? O Distrito foi fundado quando... — e em poucos minutos, contou a história completa sobre a importância histórica, cultural e religiosa de um único bairro.
O professor, Steve Lucas, era um elfo bem articulado, sabia formar bem as frases. Os alunos sempre sentiam a necessidade de prestar uma atenção extra em suas aulas, pois em menos de dois minutos ele era capaz de resumir um ano inteiro.
No início, havia grande necessidade de um condutor de energia, e a Gretésvia, pioneira em muitas áreas da física, não ficaria para trás. Assim surgiu a corrida ao pavisênio. Contudo, os países do Ociédrio não tinham tanta procura pelo minério, tendo preferência em comprar armas e veículos de guerra dos demais países. Foi com isso que Sardella enriqueceu, vendendo as armas que produzia para os impérios no continente Ociédrio.
Richard pondera sobre a questão, ele se lembra das notícias, Sardella sempre achou meios de enriquecer, até mesmo quando aqueles impérios estavam em guerra entre si, ou entre facções, algo do tipo. De acordo com o professor, aqueles países tinham uma distribuição muito rigorosa de armas, onde apenas os soldados, forças de patrulha e famílias nobres teriam acesso. A trombeta soa, num ritmo que ressoa esperança. É a hora do almoço. Descendo na cantina, o alvoroço era enorme, os Cadetes pareciam estar bem animados com algo. Richard se senta com Hans, Charles e Christopher. As bandejas estavam cheias com costelas, batatas, pães e uma maçã.
— Já deram a lista de quem vai estar no Retiro? — pergunta Chris. O dia do Retiro é um domingo onde é permitido que alunos deixem a Academia para visitar suas famílias e amigos. Apenas alguns Cadetes são selecionados por semana, pois é lei dentro das instituições militares que ela nunca deve estar completamente vazia de alunos.
— Vão publicar amanhã. — diz Hans — Se meus cálculos estiverem corretos, vão liberar a maioria dos Cadetes do 390.
Richard se animou, comendo suas batatas, com a possibilidade de poder ver sua mãe e irmã de novo, depois de tantos anos. Quem sabe, poderia até levar Dory e Madeleine num passeio, como havia prometido.
— Legal. — diz Charlie, entre mordidas na suculenta costela. Não parecia tão animado quanto os demais.
— Algum problema, Charlie? — pergunta Christopher.
— É que... Eu não tenho muita coisa lá em casa. Minha mãe já desistiu de mim, meu pai já não se importa tanto comigo desde que fiz seis anos.
O silêncio se abateu na mesa, e Hans tenta retomar a conversa — Bom, meu pai também não me deu muita atenção. Sabe como é, empresários são cheios de ocupações.
Aquilo tocou numa ferida em Richard. O garoto havia sido demitido pessoalmente pelo seu patrão, um élfico empresário do ramo têxtil, a raiva subiu só de lembrar daquilo. Em verdade, não era apenas raiva dos irmãos Weissman, mas de todos os proprietários de fábricas, que dominavam boa parte do país. Sempre demitindo pessoas pelos menores motivos, e agora, por causa da guerra, são mandados pra morte só por não conseguirem um emprego. Isso não é justo, não deveria ser assim.
— É, empresários. — diz Richard, com aspereza.
Hans nota isso — Eu entendo como você se sente, Sawyer. Como a maioria aqui se sente, na verdade.
— Sabe mesmo? Eu duvido muito. Você não tem nem ideia de como isso é.
— Richard, não é porque minha família têm posses que eu não tenha minhas próprias lutas. — ele responde com um olhar sério por cima dos óculos de armação arredondada, mas a voz é serena.
— Tipo o quê? Seu pai é dono de uma rede de restaurantes, não é? Você luta pra comer algo fora da sua dieta? — ele sorri desdenhosamente. Charlie parece absorto no prato de comida, e Chris fica sem reação ao acompanhar a discussão que se seguia.
— Eu tive que lutar pela minha vaga na faculdade. Eu tive que lutar, e ainda luto, para me manter aqui junto de todos vocês.
Richard se sentiu confuso. Como poderia estar lutando para estar ali? Não havia sido ele mesmo que se alistou?
Hans revira os olhos — Alguma vez você já se perguntou se o nome da minha espécie é realmente 'Gárgula'?
Richard franze o cenho — Do que você está falando?
— Isso é só um apelido que se popularizou, por causa da nossa pele de pedra, dos dentes projetados pra fora da boca e das asas.
Asas. Richard não tinha se importado antes mas, realmente, Gárgulas sempre foram vistos, seja em fotografias ou pessoalmente, portando pares de asas membranosas, como de morcegos, nas costas. Hans, no entanto, não têm asa alguma.
Notando pelo olhar, Hans cruza os braços e complementa, mantendo sua voz serena — Sim, eu não tenho. Elas são o maior símbolo de orgulho, força e virilidade entre nós. As minhas nasceram com uma doença rara que as faziam atrofiadas, frágeis e feias. Mesmo os melhores profissionais não tinham ideia do que fazer comigo, então meus pais optaram pela melhor solução. Amputar.
Chris engole seco ao imaginar se algum dia tivesse de amputar um membro, e ter de viver se sentindo um incapaz entre os seus.
— Desculpa, eu... Não sabia.
Ele suspira, aliviado — Tudo bem. Ninguém têm a obrigação de saber, afinal. — ele se volta para o seu prato de costelas, comendo-as com a calma e moderação de um cavalheiro.
O assunto mudou para as aulas que ainda teriam no dia; História; Linguagens e Engenharia. Quando terminaram a refeição, ainda tinham um pouco de tempo livre, então saíram para conferir o mural de avisos, onde Cadetes apinhavam para ver a lista dos selecionados ao dia de Retiro, muitos estavam frustrados por não encontrarem seu nome, e alguns poucos comemoravam por encontrá-lo.
— Finalmente, vou poder ver minha Anne... — diz Alfred Rhotus num tom sonhador e apaixonado.
— É, não foi dessa vez. — diz Hans.
— Nem pra mim. — acrescenta Charles.
— Nem acredito, consegui mesmo!? — diz Chris, sorridente. — Vou poder jogar Desviante com meus irmãos uma última vez.
— Chris, você ainda joga Desviante? — Richard tenta segurar o riso.
— Sim, o que tem? Isso é tipo um esporte profissional lá em casa. Se a guerra acabar, eu te levo lá.
Richie pensou na proposta. Se ao menos tudo pudesse acabar antes de se formarem...
E então, a tão esperada surpresa que lhe fez abrir um sorriso. Ele encontra o seu nome na lista. Todo aquele tempo sem cartas poderia ser finalmente compensado com uma visita, e que as Estrelas o permitissem, quem sabe talvez até mais visitas no futuro, caso seu nome seja escolhido entre os cem Cadetes que ali estudavam.
───────────────────────
Mais tarde, quando estavam para ter uma aula de História, foi-lhes dito que o professor teve um contratempo e não pôde vir. John Green-Fitzger era seu nome, um homem bem velho e corcunda, que serviu em missões do serviço secreto graças à sua dupla nacionalidade. Têm um grande talento para memorizar milhares de coisas de uma só vez, por isso conseguiu o cargo de professor, apesar de não ser o melhor ensinando - de fato, muitos alunos quase não conseguem memorizar todos os detalhes que ele coloca em suas aulas, sobre países que caíram, outros que surgiram e mais um extraordinário tanto de nomes, rostos e títulos que influenciaram, mesmo que minimamente, a guerra e as batalhas que vêm se arrastando a mais de dez anos.
Já estava entardecendo, e o Instrutor Amos Berskins resolveu dar uma meia-aula de combate físico desarmado e armado. De jeito algum ele deixaria seus Cadetes 'amolecerem'.
— Se virem o inimigo vindo com uma baioneta, ou qualquer coisa de metal e pontuda, usem as suas armas. Se estiverem desarmados, procurem qualquer coisa que sirva. — diz o professor, passando entre os alunos enfileirados na sala. — Até mesmo pedras ou galhos. Fugir é uma opção viável, mas lembre que o inimigo pode ser mais tão rápido quanto você.
Ele prosseguiu em demonstrar poses de combate junto do Cabo Preston - que se provou ser muito versátil na luta corpo-a-corpo, após derrubar Cadete após Cadete em confrontos diretos. Por fim, ensinou as técnicas de desarme com dolorosas lições práticas, além de algumas formas de evitá-las e se manter armado durante a luta. Assim, liberou seus Cadetes. O Sol já estava se pondo no horizonte entre as colinas distantes, os raios alaranjados pareciam se despedir dos alunos mais uma vez, e as lâmpadas a gás se acionaram sozinhas. Hans dizia que era um mecanismo muito avançado, aliado a magia.
— Então... Oque fazemos agora? — pergunta Chris a Richard.
— Não sei, podíamos pedir a Amos para usarmos os cavalos.
— É, até que seria legal andar neles. — acrescenta Charlie. — Mas duvido que ele vá deixar. Como será que Hans está?
— O 391 está tendo aula de tiro ao alvo agora. Não acredito que eles foram primeiro que a gente... — diz Chris, com indignação.
Richard contraiu o lábio. Foram tantos os dias de árduo trabalho e treino, que estar no ócio parecia ainda pior que qualquer castigo que pudessem ter.
— Vamos lá ver ele, então. — sugere Richard.
— Você quem manda, Delegado! — brincou Chris, fazendo a saudação.
Seguiram conversando sobre atividades que tinham em casa durante a infância, e a nostalgia percorreu entre o grupo, e junto desta, uma nuvem negra que ribombava em trovões. Alcançaram as raias de tiro, onde os Cadetes estavam treinando com os rifles, quando Hans estava supervisionando os Cadetes na ausência do Instrutor Wesdale e seu Cabo, o vento uivante da chuva em potencial balançava seus cabelos. De longe o saudaram, e logo foram ter com ele. Charles, no entanto, parecia um pouco distante, distraído com qualquer coisa.
— Então, vocês estiveram brincando de fogo antes da gente, hein? — diz Chris, com os braços cruzados.
— Oque podemos fazer se temos uma pontaria melhor? — e riram-se. — Vocês não deveriam estar na aula de... História, não é?
— Sim, mas o velho John teve alguns problemas, então só tivemos um pouco de defesa pessoal com o Berskins.
— Hm... Hans? — Charles chama pela sua atenção.
— O quê?
— Eu contei os Cadetes, e percebi que estão faltando uns 4. Foram no banheiro?
— Hum? Ah, deve ter sido o Arthur e os seus amigos. — Hans congelou por um momento. Se Wesdale voltasse e percebesse que perdeu alunos enquanto estava fora, não apenas perderia o cargo de Delegado, como também seria ridicularizado na frente de todo o Alojamento e ainda poderia ser mandado para a Corregedoria.
— Hans? Você tá bem? — perguntou Charles.
— Não, não está nada bem. Eu preciso da ajuda de vocês, nós precisamos encontrar Arthur o quanto antes! — diz ele em tom alarmante, suas mãos tremiam, os seus olhos, vermelho-alaranjados como brasa, estavam arregalados de medo.
Richard colocou sua mão no ombro do amigo.
— Nós vamos encontrar eles. Eu te garanto isso.
Ele se confortou um pouco com a resposta.
— Sabe onde ele pode ter ido? — pergunta Richard.
— Bem, ele estava debochando como sempre. Hoje, em especial, eu o ouvi dizer que mal podia esperar para poder usar os veículos de guerra. — o Gárgula engoliu seco. Todos se entreolharam, pensando se Arthur Mortis seria tão estúpido de tentar pilotar um veículo antes mesmo de saber como o ligar.
— Vamos para as garagens, agora! — diz Richard.
───────────────────────
As Garagens eram semelhantes aos Estábulos, quatro grandes galpões de pintura branca e janelas altas, com bandeiras na frente do portão. Estavam dispostas em um círculo, no primeiro eram armazenadas motocicletas e automotores de carga, escolta e patrulha, no segundo ficavam alguns balões de reconhecimento, o terceiro é usado para reabastecimento do combustível e, no terceiro, os veículos blindados. Já anoitecia, e as nuvens cobriam por completo a luz da lua, entre raios e trovões.
Com exceção do Reabastecimento, todos estavam com os portões arreganhados. Arthur não estava nos Veículos Blindados - todos os quatro estavam passando por revisão e muitas peças haviam sido removidas do motor e estavam no chão, largadas em uma espécie de caos organizado.
— Ele não seria louco de voar num balão com uma tempestade dessas chegando, né? — pergunta Chris.
— Espero que não. Mas por precaução, você e Charlie vão lá ver e... — um som, um barulho o interrompe. Uma batida, não muito distante dali.
Foram correndo como o relâmpago que rasgou o céu, iluminando toda a academia e ecoando no ar. As primeiras gotas, quase tão massivas quanto balas, começam a cair do céu. Atravessando árvores derrubadas e sinais sinais de pneus sobre terra, o grupo encontra Arthur Mortis e seus três asseclas - Joel, Joshua e Jules, os dois primeiros são irmãos gêmeos. Estavam rodeando um automotor de patrulha batido em uma árvore, era grande e pesado como um de carga, mas a traseira coberta tinha um rifle de alto calibre no topo. Estava vazando diesel sobre a grama, seus faróis acesos e o motor ainda ligado. Richard, sem pestanejar, tomou a frente.
— Se divertindo, Mortis?
O garoto com a mancha na nuca logo reconhece a voz, e vira-se com um sorriso desdenhoso. — Ah, é você plebeu? Já devia saber pelo cheiro. Parece que fica pior quando andam em bando.
Os asseclas riem e Richard, furioso, cerra o punho em preparação para a briga iminente, e assim Chris também o faz. A chuva vem com violência, e Hans separa os dois antes de se aproximarem mais.
— Ei, ei, ei. Não temos tempo pra isso. Vamos tirar o carro daqui primeiro, depois resolvemos isso.
— Claro, mamãe. Vai me colocar pra nanar também?
— Isso é sério, Arthur. Nenhum de nós é autorizado a usar os veículos e você sabe disso. — diz Hans, ainda mantendo a voz séria e centrada. — Vamos só tirar isso daqui antes que notem.
— Me poupe, 'Cabeça de Pedra'. — diz ele, mantendo seu sorriso como um diabrete.
— Porque você mesmo não vem aqui e tira, Gárgula? Ele não morde, sabia? — diz Joshua ao longe. Eles riem entre si, novamente. Mas não mais, pois entre duas trovoadas, Richard golpeou Arthur no estômago.
— Mal dia pra suas gracinhas, manchinha. — diz ele, devolvendo o deboche.
Chris aproveita a deixa, e salta para brigar com Joshua. Hans tenta impedir, mas era impossível, mas para sua força. Charlie não quis se envolver.
Chris e Joshua estavam rolando na lama entre socos e pontapés. Pela primeira vez, Arthur se surpreendeu com Richard. Estava perdendo, seus ataques não faziam tanto efeito, suas defesas eram fracas, mas se recusou a mostrar qualquer fraqueza e se manteve com uma expressão séria.
Seus companheiros já estavam prestes a entrar na briga, quando escutaram berros e viram luzes de lanternas. Arthur tirou a atenção de Richard da briga.
— Salvo pelo gongo, Sawyer.
— Cala a boca! — ele se vira, porém não o vê. Ele fugiu, deixando para trás a sua risada maléfica e doentia.
Joel e Jules foram com Arthur, restando apenas Joshua. As luzes logo se aproximavam, acompanhando o som de muitas botas sobre a lama, e então um apito.
— Mãos pra cima! Identifiquem-se! — bradou a voz, lançando luz sobre o grupo.
Após dizerem seus nomes, ele continuou. — Oque vocês estavam fazendo aqui?
— Senhor, nós podemos explicar. Nós estávamos...
— Hans! Oque passou pela sua cabeça ao abandonar seus colegas? — a voz, claramente irritada, era de Wesdale, o Instrutor do 389.
— S-senhor Wesdale. Eu lhe confirmo, eu não tinha intenção de abandonar os Cadetes, é que eu estava...
— Não faz diferença, Hans. Nunca se abandona os companheiros. Nunca! — acrescenta o Cabo Rogers, o assistente de Wesdale. — Vamos pra Corregedoria, agora.
Aproximavam para levar Hans, e Richard deu um passo a frente. — Fui eu.
Todos olham para ele, surpresos. A chuva reduziu sua intensidade.
— Oque você tá fazendo, Richard? — falou Hans, baixinho.
— Só confia em mim, eu te explico depois. — respondeu no mesmo tom, e então voltou-se para o agrupamento com lanternas. — Eu chamei eles pra vir comigo, eu que idealizei tudo. Hans veio pra tentar me impedir, depois que eu chamei ele. E ele foi contra tudo isso.
Wesdale o olhou com reprovação. — Tinha que ser do Berskins, mesmo... — tentou cochichar para o Cabo Rogers, mas todos puderam ouvi-lo.
— Você vem conosco, Sawyer. — disse Rogers, pegando-o pelo braço.
— Godfrey, seus garotos são bons na mecânica, não? Peça pra eles tamparem aquele vazamento. Não seria bom termos um incêndio tão perto do dia do Retiro. — disse Wesdale para um outro Instrutor que o acompanhava, Timothy Godfrey, do 391. — E vocês — apontou para os garotos que ainda estavam ali — Já passou da hora de dormir. Vão para os Alojamentos, agora! — disse Wesdale, num tom ameaçador.
E partiram cada um para seu lado, levando Sawyer para ser julgado pelos seus supostos atos na Corregedoria.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro