Capítulo 5┃Novo Dia
O ressonante som agudo e enérgico de uma corneta desperta os novatos da academia, quando o sol ainda nem intentava sair das planícies do horizonte - este era o anúncio de que o dia dos Recrutas havia oficialmente começado. Assustando-se com o som, Charles bate com a cabeça na cama de cima da beliche.
— Charlie? — Chamou Richard, ao perceber o impacto de seu companheiro.
— Eu tô bem, eu tô bem... — disse com muita dor em sua fronte, mas sem hematomas.
As portas se abrem, as luzes se acendem, e o Cabo Arnold Preston se fazia presente. O som ainda ecoava pelos alojamentos, com um imperioso chamado para o dever.
— Em linha, senhores! —
Exclamou, e assim fizeram uma linha de ombro com ombro. Após ele, surge uma nova figura. Este vestia um casaco azul marinho com abotoaduras de bronze enfileiradas no centro, uma calça de lã preta com linhas vermelhas nas laterais, botas de couro polido, e uma fivela de latão com a numeração '390', o Regimento Acadêmico - o grupo de Cadetes que estava em sua responsabilidade, e também o número gravado no Alojamento. Na altura dos braços, e no peito, uma insígnia com duas divisas para baixo e uma pata de lobo logo abaixo. Caminhava calmamente, com as mãos para trás, entre as fileiras dos Cadetes recém-alistados, com um olhar austero sobre eles. O Cabo seguia logo atrás.
— Inacreditável... Vocês são os cadetes mais nojentos que já vi. Na verdade, sequer merecem ser chamados de Cadetes! Mas não se preocupem, eu vou colocar vocês na linha para servirem, com honra e dignidade, à Galdênia e à Rainha. Meu nome é Amos Berskins, eu serei o Instrutor de vocês. E não aceitarei nenhuma insubordinação, eu fui claro!? — Sua voz era estridente, e ecoava por todo o lugar.
— Vocês tem trinta segundos para vestir seus uniformes e se apresentar no Circuito. Mexam-se, seus molengas! — Exclamou, logo após dois segundos de silêncio.
E de fato, assim como o Cabo havia dito no dia anterior, os uniformes estavam bem ali, ao lado das camas. Ninguém se lembrava de ter ouvido alguém chegar e colocar, apenas estavam ali, e estavam todos nas medidas certas.
Sawyer sempre teve o costume de acordar cedo para trabalhar, então estava mais disposto que alguns dali. Vestiu sua calça de tom azul escuro, colocou a camisa branca por baixo, e por cima o casaco de lã que tinha uma cor de cinza fosco com botões simples e por fim calçou as botas de couro polido, seguindo com os demais para o Circuito. Saindo do Alojamento, o rapaz nota que, pela primeira vez, o céu estava bem mais limpo que o normal. Não haviam muitas nuvens, e o Sol era bem mais forte do que em seu bairro.
Era um trajeto de terra batida em um campo gramado quase completamente em linha reta, com uma curva no começo e outra no final. Haviam cordas, paredões, arames, barras e muita lama. Charles já estava logo atrás de Sawyer, na sua direita, uma posição que não iria lhe dar muita vantagem durante a prova física, mas ele não o sabia. Os outros se afastavam um do outro.
"— A prova deve ser concluída em menos de dez minutos, mas se quiserem o café da manhã hoje, vão chegar em cinco. Iniciem ao som da corneta!" Exclamou o Instrutor, que estava montado em um cavalo branco.
O Cabo tomou o instrumento em mãos, e com Amos positivando com a cabeça, ele assoprou, liberando um som enérgico e contínuo, que fez os jovens Cadetes dispararem em uma corrida alucinante.
Sawyer estava atrás de pelo menos quinze rapazes, mas foi rapidamente alcançando os outros, quando chegaram na primeira prova, uma escalada com cordas. Os que estavam mais atrás foram obrigados a esperar em fila, mas Sawyer foi ligeiro em subir, logo chegando a ficar entre os dez da frente.
"— Subam isso de uma vez. São homens ou galinhas!?" Exclamou Berskins, acompanhando a corrida na beira do percurso.
Após dez metros de corrida, haviam barras suspensas sobre um lamaçal. Richard nunca havia visto aquilo antes, mas foi ágil para pensar em uma forma de prosseguir. Perdeu um pouco de velocidade para se pendurar e seguir, e demorou alguns segundos a mais do que o esperado, mas passou quando seus dedos começavam a vacilar. Desceu por uma pequena rampa de madeira com cuidado para não tropeçar e rolar no chão. Charles já não tinha um pensamento tão ligeiro, e logo após passar as primeiras três, perdeu a força nos dedos e caiu, ficando com suas calças e mãos todas sujas. Ele não foi o único, outros sete caíram mais cedo ou mais tarde que ele.
"— Levantem e tentem novamente! Não há tempo para pensar. Vão, vão, vão!" Disse o Instrutor, continuando a incentivar seus Cadetes, que prontamente obedeciam.
Logo em seguida, a primeira curva, e Sawyer alcançou mais três, que perdiam velocidade com o cansaço, estando agora entre os sete primeiros. E surge a terceira prova, um paredão de quatro metros, com pedras e bastões para escalada. Muitos haviam ficado para trás, então Sawyer pôde subir sem esperar por ninguém. Alguns caíram no chão, quando já estavam quase no topo. Richard suspeitava que não foi por cansaço, mas seguiu em frente. O instrutor confere um relógio em seu bolso, que contava os minutos da prova.
"— Continuem, nada de moleza! Já se passaram três minutos e trinta segundos, querem comer hoje ou não!?" Alertou o homem, seguindo os retardatários.
Após chegar no topo, usou uma das cordas disponíveis para descer. Nunca havia feito isso antes, mas novamente, agiu por instinto e se segurou com firmeza, até chegar no chão.
Em frente, quinze metros de corrida depois, estava um campo com pneus em linha reta.
"— Um pé de cada vez, vamos!" Disse Amos quando os primeiros Cadetes chegavam na prova.
Assim como dito, saltaram de pneu em pneu, testando a flexibilidade de suas pernas em uma tarefa contínua. Alguns vacilaram, pisaram no aro de borracha e caíram no chão, e novamente foram advertidos pelo homem montado a tentarem novamente.
Richard foi um destes. Não tinha tanta flexibilidade quanto imaginava, mas tentou outras duas vezes até conseguir. Isso lhe custou uma posição, mas logo recuperou na corrida até o próximo desafio.
Eram sete barricadas baixas com sacos de areia, tábuas de madeira e arames farpados na parte de trás, simulando as coberturas de guerra. Deveriam saltar sobre elas, em um espaço com cerca de doze passos em corrida. Logo na segunda, dois caíram, e agora Sawyer estava entre os cinco. Vacilou na quinta, mas logo recuperou para saltar sobre a sexta e sétima, onde errou sua aterrissagem, se apoiou no chão enquanto ainda seguindo em frente, e recuperou.
"— Vocês tem trinta segundos! Os últimos não comerão o dejejum!" Gritou, reafirmando o seu aviso.
A última curva agora, e Sawyer conseguiu passar por mais dois jovens élficos, ficando em terceiro, e empatando com o segundo, sentindo cada parte do seu corpo gritar por uma pausa, mas ele não podia parar ainda. De súbito, sentiu algo no seu lado direito, que lhe fez perder o equilíbrio e ir de encontro ao chão quase que de imediato. O rapaz no segundo lugar espetou Richie com o cotovelo.
"— Quinze segundos, rapaz! Levanta!" Berskins o encorajou com seu grito e, inspirado, Richard voltou a correr.
Perdeu cinco posições, ficando em oitavo, mas chegou faltando dois segundos e meio para terminar.
Quando chegou, estava ofegante, arfando e pingando suor que se misturava com a terra em sua roupa. Olhando entre os finalistas, procurou aquele que o derrubou, porém não conseguiu vê-lo. Não tinha muita certeza sobre sua aparência, pois não prestou atenção nele quando estava correndo.
"— Cinco minutos se passaram, mas se pararem agora, ficarão o dia inteiro sem comer!" Disse o Instrutor para aqueles que ainda não haviam terminado o percurso.
Para os onze finalistas, Preston dizia para seguirem para o refeitório. Quando todos estavam se aproximando, alguns soldados traziam bacias de água, e mergulhando copos de ferro nestas, ofereciam para os Cadetes se hidratarem.
O desjejum de hoje eram dois pedaços de pão sovado, uma maçã, uma fatia de torta e uma xícara de café ou chá - de escolha do Cadete. Sentado em um banco distante dos demais, Richard guardou debaixo do casaco os dois pedaços de pão - amassou-os de forma que quase se tornaram uma única massa. Comeu a torta primeiro, em duas mordidas, bebendo o seu chá logo depois para descer garganta abaixo, e então foi para a maçã, ainda procurando pelo rapaz que o fez cair. Lembrou-se que ele tinha um cabelo escuro, e no lado esquerdo do pescoço havia algum tipo de mancha de mesma cor. Olhou o refeitório de cima a baixo, até terminar a maçã, e logo após terminar com o chá, avistou aquela mancha no pescoço de alguém, só podia ser ele. Levantou-se, colocou o copo e a bandeja no balcão de lixo, e foi até o rapaz.
"— Aí! Você me empurrou no final da corrida, não foi?" Perguntou ao garoto, que estava de costas.
"— É, foi eu mesmo, e daí?" Disse com desdém.
"— Você é maluco, é? Eu já tava quase..."
"— Me poupe, seu plebeu imundo. Seu lugar é abaixo de mim, não entende?" Disse ele, interrompendo Sawyer.
"— Plebeu ou não, eu ainda sou melhor, e chegaria até em primeiro!" Richard, irritado com o comentário, começou a se igualar ao garoto que o ofendia.
"— Você não conseguiriam nada! Aliás, deveria era estar atrás daquele balcão, servindo comida para os soldados de verdade como eu!"
Os insultos continuaram, até que, num rompante de fúria, Richard não aguentou mais. Seu punho direito voou direto ao rosto do rapaz, acertando-o na face esquerda. O outro, não hesitando, respondeu à altura, golpeando o maxilar de Richard com força. O choque dos golpes ecoou, mas nenhum dos dois parava. Alguns cadetes e recrutas observavam, mas ninguém intervinha, apenas trocando murmúrios e risos sobre o jeito desajeitado da briga.
Tudo aconteceu em questão de segundos, até que dois amigos do garoto de cabelo escuro se envolveram, empurrando Richard ao chão. Ofegante e atordoado, ele sentia a frieza do piso de pedra contra as costas, e o gosto de sangue na boca.
— Essa é a visão que você terá pelo resto da sua vida, plebeu! — disse o agressor, olhando para baixo, com o nariz sangrando, mas com ares de superioridade.
De repente, uma sombra se aproximou. Uma figura alta e robusta estendeu a mão para ajudá-lo. Richard, ainda deitado, piscou algumas vezes, tentando focar sua visão, mas o que viu quase o fez hesitar. O rapaz que lhe estendia a mão era alto e robusto, tinha uma pele lisa, fria e cinzenta como pedra, seus olhos tinham um incomum brilho laranja, que se mesclava com vermelho, assemelhando-se a duas brasas, e seus caninos se projetavam para fora de sua arcada dentária. Uma visão digna de pesadelos. Tinha cabelos negros e um tanto volumosos, com leve caimento lateral e pequenas franjas que ficavam na frente de seu rosto e de seus óculos.
Mas, ao contrário do que Richard esperava, o rosto do Gárgula estava iluminado por um sorriso amigável — um sorriso estranho, desajeitado até, que destoava completamente de sua aparência bestial.
"— Oque... Você é?" Indagou Richard, enquanto se levantava com a ajuda do rapaz.
"— Sou Hans. Hans von Eddorns. E você, seria...?" O rapaz tinha um carisma tão único quanto sua aparência. Sua voz era desajeitada.
"— Richard G. Sawyer. Você é um daqueles Gárgulas, que viviam nas montanhas, né?" Disse, logo o cumprimentando.
"— Isso mesmo. Sou de Hochberg, e você?" Ainda mantinha um certo sorriso desajeitado em seu rosto, por conta de seus caninos.
"— Baxford. A cidade aqui do lado. Eu não sabia que Gretesvianos podiam se alistar no exército de Galdênia." Comentou, enquanto limpava o sangue que sentia no rosto.
"— E não deixam mesmo. Eu me mudei pra cá quando tinha só oito anos. Morava em Chestermyre com meus pais, então ganhei a cidadania daqui. Vem comigo, eu te ajudo a fechar esses arranhões!"
Hans guiou Richard pela Academia, até chegar numa praça de convivência, ali ele pegou um lenço, álcool e outros produtos, e as feridas da briga anterior simplesmente desapareceram de seu rosto, e nem a dor restou. Hans falou sobre o oponente de Sawyer, o garoto chamava-se Arthur Mortis, filho de Rudolf e Alice Mortis, donos do terceiro maior banco nacional de Galdênia. E chegou naquela Academia como forma de punição pelos seus atos inconsequentes. Hans ainda contou um pouco de sua história, após limpar seus óculos com a camisa. Atualmente, tem dezenove anos, e seus pais também eram abastados, donos de uma rede de restaurantes, com certa dificuldade conseguiu uma vaga em uma das grandes faculdades de Chestermyre - uma cidade Nobre próxima de Wheystone, a capital de Galdênia -, lá era um estudante de Ciências Bioalquímicas, aprendendo sobre os efeitos de técnicas arcanas em organismos vivos, mas desistiu daquilo, buscando algo maior na carreira militar, algo que nem ele sabia definir ao certo, mas tinha grande certeza sobre. Assim como Richard e todos os outros Cadetes, ele também havia acabado de chegar na Leyster.
A trombeta soou em tom solene, anunciando o início do próximo ciclo de aulas, e então despediram-se, e foram cada um para seu lado.
O Regimento de Richard foi designado para uma aula introdutória. O rapaz se encontrou com Charles um pouco antes, e lhe ofereceu os pães que havia reservado para ele, escondendo no seu casaco. Estavam amassados e deformados com a briga, mas ainda comestíveis. Charles agradeceu grandemente, e os devorou quase que no mesmo instante.
A aula foi um longo e exaustivo discurso de quase cinco horas para introduzir todas as matérias do atual trimestre, e como seriam abordadas. Era ainda mais cansativo do que realizar aquele Circuito por um dia inteiro, pensava Richard.
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