Capítulo 1
Mehron
De minha palma estendida, assisti com olhos extasiados enquanto a flor emergia.
Tratava-se de um antúrio, brotando elegantemente do meu sangue e crescendo rápido na medida em que as raízes se alastravam sob as veias.
Suas folhas apareciam verdes como uma floresta sombria, contrastando com a cor saturada das flores que desabrochavam em forma de coração, vermelhas como o manto que eu vestia.
Nas últimas horas, estive entregue ao tédio em meu gabinete provisório, sufocado pelo cheiro repulsivo de tinta exalando dos manuscritos sobre a mesa, assistindo ao tempo passar naquele cômodo abafado enquanto ponderava a respeito de minha imensa ineficácia.
Ao meu redor, janelas parcialmente fechadas por cortinas pesadas permitiam a entrada de finas fatias de luz crepuscular, iluminando parcialmente a placa com os dizeres DEUS DIPLOMATA, MEHRON sobre a escrivaninha. Aquele era o único item apresentável em meio a uma bagunça de livros, pergaminhos e flores secas.
Eu ri, sem humor. Estava há tanto tempo nas terras do sopro que minhas comodidades já pareciam uma residência fixa.
Faziam-se dias e dias desde que parti de Gallas, as terras do canto, e a saudade de casa alfinetava minha voz sempre que uma melodia incerta vagueava por meus lábios afora.
Desejava voltar, mas não podia. Não enquanto Courta ocupava cada vez mais espaço no território de Ka'ter.
Era meu dever, não só como Deus da Diplomacia, mas também como um simpatizante das terras do toque, impedir os avanços do deus ganancioso que iniciara aquela invasão injustificada.
Sabia, desde o início, que eu teria uma missão trabalhosa, mas o Deus das Mitocôndrias se provou uma criatura particularmente difícil de convencer.
Era possível, eu temia, que estivesse lutando pelo fim de uma guerra inelutável.
Contemplei o antúrio, ainda se espalhando à medida que fixava raízes sob a pele.
Claro, as flores não precisavam do meu sangue. Sendo o último deus nascido e ainda vivo nas terras élficas de Gallas, eu poderia fazer com que brotassem de qualquer objeto, e mantê-las vivas até que me cansasse disso.
Era fascinante, contudo, fazê-las a partir de meu próprio cerne.
Na palma suspensa de minha mão, o antúrio finalmente parou de crescer. Eu logo o arranquei e me livrei dele. Não tinha muito interesse em corações inteiros. Gostaria mesmo de cultivar um coleus, a planta dos corações desfeitos.
Com um suspiro, movimentei as mãos no ar em gestos elaborados, afastando os longos fios negros do meu cabelo e ajustando com as pontas dos dedos a amarra que segurava o manto vermelho no meu pescoço.
Eu era o tipo de deus que não possuía um corpo físico — tirando a cabeça e as mãos. Dependia de amarras elegantes ou capuzes feitos sob medida para manter minhas capas e mantos bem fixos no lugar.
Aquela era longa o bastante para a barra arrastar no chão, mesmo quando minha cabeça flutuava a quase 2 metros de altura, e sua coloração elegante me deixava com um aspecto aristocrático que, precisava admitir, me agradava bastante.
Já estava prestes a enfeitá-la no colarinho com um pequeno arranjo de begônias quando ouvi batidas na porta.
— Mais papéis? — esmurrei os punhos flutuantes na madeira maciça da mesa, me arrependendo em seguida. Incrivelmente, a falta de terminações nervosas não me impedia de sentir dor.
Para meu infortúnio, a pessoa do outro lado da porta entendeu minha imposição como um convite para entrar, e não me surpreendi ao ver que se tratava de Arwin, minha assistente.
Ao menos suas mãos estavam vazias. Nenhum sinal de mais documentos para preencher ou solicitações para efetuar.
Arwin encarou o dourado de meu olhar sobre os óculos de aro grosso que usava.
Seus olhos arregalados naquele tom de azul característico das hortênsias, junto com a expressão apreensiva em seu semblante normalmente calmo, me causaram calafrios até os fios da nuca.
— Igh, o Deus das Mitocôndrias, enviou uma convocação. Uma escolta nos espera próximo à entrada — disse ela, sem rodeios.
— Por que agora, tão de repente? — gesticulei furiosamente com as mãos. — Ele vem adiando as reuniões que solicito desde minha chegada.
— Como eu saberia? — Minha assistente petulante respondeu.
Se é que a jovem elfa de cabelo cor de ouro rosé à minha frente poderia ser chamada de assistente. Arwin se parecia mais com uma mula de carga. Um serzinho diminuto que vivia ajustando seus óculos e olhando por cima de pilhas de pergaminhos envelhecidos.
Era engraçado, eu não podia negar. Por isso a mantinha ao meu lado, apesar de suas constantes crises de insolência.
Jovens! Sempre petulantes demais para seu próprio bem.
De qualquer maneira, era possível que minha influência como Deus Único da Diplomacia estivesse fazendo Igh se sentir pressionado.
Talvez, enfim, eu pudesse resolver aquela questão e encerrar os planos dele.
Caso contrário, bem, eu não saberia dizer até onde sua ganância o levaria.
E foi com aqueles pensamentos em mente que parti do buraco em que fui instalado, subindo lances intermináveis de uma escadaria atrás da outra, como se eu, o último deus de minha linhagem, não fosse mais do que qualquer mero soldadinho de infantaria da Courta!
Em Fiei, a hierarquia se mostrava clara desde as fundações de sua arquitetura.
A capital, construída nos alicerces do que eu poderia chamar de poço interminável, não era mais do que uma cratera onde os sem importância sobreviviam nas profundezas escuras, enquanto aqueles agraciados por prestígio e poder respiravam o ar limpo soprado pela brisa do vento na superfície.
Igh, o governante de toda aquela milícia, descansava em seu castelo de jade no topo de tudo.
Como eu flutuava, não me cansei durante a subida, assim como o soldado que nos guiava degraus acima em um silêncio amistoso, acostumado a fazer tal percurso.
Arwin, por outro lado, parecia lutar contra suas pernas curtas para manter o ritmo.
— Admiro sua perseverança, jovem Arwin! — eu disse a ela, sorridente, assim que finalmente atravessamos uma das pontes, também feitas de jade, que davam acesso ao imenso palácio. — É uma pena que não tenhamos tempo para fazer uma pausa.
— Na verdade, tudo bem se precisarem de algum descanso — o soldado respondeu.
— Como eu disse, uma pena — tomei a frente e prossegui, ignorando-o.
Felizmente, Igh já nos esperava quando entramos pelas portas duplas da entrada, os suaves sons das flautas e clarinetes flutuando até os meus ouvidos através das janelas arejadas.
A figura esguia de longos cabelos ruivos caminhou até mim com um sorriso bonito no rosto, exalando confiança felina a cada passo calculado.
Ao contrário de mim, Igh tinha um corpo tangível, de aparência quase humana. Eram os seus movimentos, vaporosos em meio aos tecidos ricos em tons de verde e vermelho, que deixavam claro o seu status de divindade.
Com aquelas roupas e a cinesia graciosa do corpo, ele me lembrava o antúrio que fiz brotar da palma. Só esperava que não fosse tão venenoso quanto, ou pior.
— Mehron — ele me interrompeu quando tentei fazer uma reverência. — Dispense as formalidades, temos assuntos urgentes que, temo, eu demorei demais para tratar.
Franzi as sobrancelhas, um tanto desconcertado. Apesar de sua presença imponente como um rei altivo, o Deus das Jóias e Mitocôndrias se mostrou um sujeito bastante razoável.
— Agradeço pela disposição de seu tempo — falei com ele, Arwin ainda curvada atrás de mim e do soldado da escolta. — Imagino o quanto deve estar ocupado.
— De fato! Os deveres só aumentam desde que minha causa começou a ganhar força. E confesso, o convidei até aqui sem aviso prévio assim que consegui uma breve pausa, pois preciso mostrar-lhe algo que o fará compreender o real cenário que enfrentamos aqui em Courta.
— É mesmo? — perguntei, surpreso. — Seria algo relacionado à sua repentina rixa com as terras do toque?
Desde o início, eu supus que Igh era movido apenas por ganância, mas talvez tenha sido ingênuo.
Ka'ter era governado por uma regência oportunista, eu tinha que admitir, e talvez o rei dessas terras me tenha ocultado alguma informação crucial que Igh poderia revelar.
O deus assentiu com a cabeça, confirmando as minhas suspeitas.
— Você entenderá quando vir com os próprios olhos — disse ele, acenando para que o soldado se retirasse.
Foi quando o homem atravessou um umbral cercado por mais de meia dúzia de soldados, que também se foram, que senti o clima esfriar vários graus à medida que uma tensão invisível se instalava no ambiente.
Era como se um vento frio varresse minha pele, apesar de meu cabelo e capa permanecerem imóveis, e por mais que Arwin parecesse despreocupada atrás de mim, não pude deixar de desconfiar das intenções daquele deus.
— Pode me adiantar do que se trata? — acabei por perguntar.
— Vou lhe mostrar agora mesmo — ele pareceu notar minha hesitação, exibindo um sorriso apaziguador no rosto.
Eu estava prestes a perguntar mais detalhes quando Arwin gritou.
Foi um grito horrível e agudo, com o ar faltando no final. Tentei ampará-la, mas ela já estava de joelhos quando minhas mãos alcançaram seus ombros agudos, e logo meus próprios lábios também se abriram em um guincho de dor.
Oxigênio. Mesmo que eu não tivesse um corpo e consequentemente pulmões, ainda precisava de oxigênio. Minhas células não funcionariam sem isso, e de repente me senti privado do ato de respirar.
O mesmo parecia acontecer com Arwin, que me fitava com olhos angustiados enquanto se contorcia no chão.
Voltei meu olhar para Igh, o responsável por aquela traição. Era inaceitável que um diplomata fosse atacado durante uma missão neutra, mas ele não parecia preocupado com as consequências.
— Imagino que você não apreciará o que estou prestes a fazer, Deus Diplomata. Peço desculpas pelo incômodo, mas é um mal necessário — seu sorriso pareceu aumentar ainda mais. — Preciso ter alguém para usar como exemplo na próxima vez que tentarem interferir nos avanços do meu exército.
— Minha assistente não tem nada a ver com isso — lutei contra a falta de ar para exercer a minha influência sobre a mente dele. — Ao menos deixe-a ir.
Ele pensou por um momento, mas logo ficou claro que nem sequer levava aquela possibilidade a sério.
— Eu acho que não — disse por fim, deixando claro que meus esforços eram inúteis.
Arwin gritou, com raiva e com medo, e eu assisti, também sufocado, ela asfixiar até a morte.
Ela não morreu rápido. Se debateu por longos minutos, sons borbulhantes de pura agonia escapando da boca enquanto a vida se esvaía de seus olhos lacrimejantes.
— Não se preocupe — disse Igh, voltando sua atenção para mim enquanto eu era afligido pela visão dos últimos momentos de Arwin. — Tenho planos melhores para você. Não planejo simplesmente matar o último deus de Gallas.
Era isso. Eu me tornaria um refém e seria usado contra meu próprio povo, a menos que conseguisse escapar daquela situação.
Continuei tentando exercer minha influência sobre Igh, mas percebi que era inútil. Aquele que tinha o título de Deus das Jóias era muito ganancioso para se render à minha diplomacia.
Quando finalmente perdi as forças, tombei a cabeça diretamente nas mãos dele.
O deus estalou a língua, me fitando com um brilho de divertimento em seus olhos verdes.
— Não podemos permitir que você cause problemas com seus poderes divinos, podemos? Felizmente, tenho a solução para isso.
Antes que eu pudesse reagir, senti as mãos dele apertarem minhas têmporas.
Seus dedos frios provocaram, de imediato, um tipo de dor que nunca experimentei antes. Como se me doesse a alma, que parecia prestes a virar cinzas.
Não conseguia me soltar. O deus segurava meu crânio com firmeza entre suas palmas, e minha respiração falhava ao ponto de ver pontos escuros.
Fiquei imóvel, em desespero, enquanto minha essência e tudo o que eu representava eram arrancados de mim, como se Igh quisesse me dissolver desde meu âmago, sugando minhas forças junto ao ar que me faltava.
E quando Igh terminou, os olhos fechados e o sorriso ainda amplo na cabeça jogada para trás, eu já não me sentia mais uma divindade.
Notas da Autora:
Obra escrita em parceria com o maravilindo Niko-Harkuss
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