Capítulo 08: Oleandro
"Não gostamos de coisas óbvias, se é óbvio não tem graça."
Kurt Cobain
Anos atrás
Ouvia o telefone tocar na sala, mas não poderia atender com as mãos sujas de cebola enquanto cozinhava.
— Filipe, atende para mim — gritei, esperando que ele ouvisse. Mania chata de assistir futebol no último volume.
Larguei as coisas na pia da cozinha e lavei as mãos, correndo até a sala enquanto secava em um pano de prato. Peguei o controle no braço do sofá e desliguei a televisão, indo direto para o telefone.
— Mãe, tudo bem? — dizia enquanto Filipe reclamava, tentando pegar o controle de volta.
— Oi, Mari. Queria saber se vocês vêm almoçar amanhã — disse minha mãe e eu bati em minha própria testa. É claro que eu tinha esquecido.
— Amanhã o Filipe trabalha, mãe — dei a desculpa.
— Eu entrei de férias hoje — ele disse e eu tampei sua boca com a mão, o que lhe deu uma brecha para pegar o controle.
— Ah, tudo bem então. Marcamos para outro dia.
Me despedi rápido, não dando brechas para outros assuntos. Quando ela começava um assunto, surgiam outros vinte. Não estava com a mínima vontade de ir para a casa dela, não quando sabia que me encheria de perguntas desnecessárias e daria sermões que não pedi.
— Por que está mentindo para a sua mãe? — ele andava atrás de mim até a cozinha enquanto perguntava.
— Porque eu não quero, Filipe — respondi. — Já conseguiu o controle da televisão, volte para o seu futebol.
— Marina, que saco! Eu estou cansado de você — ele pegou o capacete em cima da mesa, depois de socar a parede, e saiu.
Sexta-feira, 20 de maio
Dirigia o carro ainda pensando no que tinha acontecido na floricultura e no modo estranho como Matheus tinha agido. Não tínhamos nada, qual o motivo para ele agir daquele jeito? E, ao mesmo tempo em que pensava nele, antigas memórias vinham em minha mente.
— Se continuar dirigindo desse jeito, você vai bater o carro e matar nós dois — alertou Vinicius, me trazendo de volta à realidade.
Murmurei um "desculpa" e tentei me concentrar para não passar por nenhum sinal fechado, fazendo com que nossa morte ocorresse bem mais cedo do que pretendíamos. Estacionei o carro na garagem do prédio e Vinicius desceu, seguindo para chamar o elevador enquanto eu terminava de travar o carro.
— Por que ele agiu daquele jeito com você? — ele perguntou, arrumando seus cabelos pretos no espelho do elevador.
— Como se eu soubesse, Vini. Mas você viu o jeito como ele te encarou?
— Minha beleza é demais para os pobres mortais — ele disse enquanto me abraçava e eu só conseguia rir. O que fiz para merecer um amigo com o ego tão inflado assim?
Entramos no apartamento e Vini se jogou no meu sofá. Eu não sei como ele não tinha trazido todas as suas coisas para cá, já que vivia mais na minha casa do que na sua própria. A rotina dele era, praticamente, da minha casa para o trabalho e do trabalho para a minha casa.
— O que acha de pedirmos comida? — perguntei enquanto voltava do quarto, onde tinha ido deixar minhas coisas.
— Você consegue ser mais preguiçosa que eu — ele respondeu. — Posso te perguntar algo?
Sentei do seu lado e ele passou um braço ao redor dos meus ombros, me encarando sério antes de respirar fundo para falar.
— O que está tirando sua concentração? — perguntou. — E não vem me falar que é aquele executivo, porque eu sei que não é. Foi aquele sonho, não foi?
Era impossível esconder as coisas de Vinicius. Depois de tanto tempo comigo, tanto tempo cuidando de mim e lutando para que eu ficasse bem, era óbvio que ele iria reparar que algo estava errado.
— Eu queria não pensar nele, Vini — falei, já podendo sentir o choro entalado na garganta. — Já faz dois anos, eu sei, mas ainda está aqui, sabe?
— Eu sei, Mari. Eu sei... — Vini dizia, mas eu não consegui ouvir o final pelo choro que saiu.
— Eu ainda sinto falta, muita falta. São dois anos! Dois anos vencendo crises, dois anos de tristeza e superação, mas são dois anos. Dois longos anos...
Sábado, 21 de maio
Acordei, depois de muito revirar na cama e enrolar para levantar. Ao lado da cama, na pequena mesa de cabeceira marrom, repousava um buquê de Oleandros rosas. Ao lado dele havia um papel amarelo com a caligrafia perfeitinha de Vini.
"Bom dia,
[Insira aqui a sua mensagem de bom dia com uma foto de flor, paisagem, pôr do sol ou um animal fofinho.]
Seu café está na mesa. Também fiz panquecas com chocolate (mentira, só fiz pão com ovo, mas vamos deixar o bilhete mais bonito).
Quando voltar do trabalho, passo aí.
Vini"
Ri com o bilhete e me sentei corretamente na cama. Corretamente não, eu sou um ser humano e minha coluna é horrível, mas tudo bem. Peguei o buquê e retirei a carta, a cera do selo era da mesma cor das flores e havia o desenho de uma rosa no meio.
"Querida Mari,
Estas flores representam beleza e graça, mas eu não queria fazer o papel da pessoa que sabe apenas elogiar outra pela aparência, pelo que ela é por fora, levando em conta os vários rótulos que podem ter sido colocados em volta dela por muito tempo. Eu queria conhecê-la para elogiá-la pelo que é por dentro.
Elogiar suas criações, pensamentos (que algumas pessoas dizem ser loucura), até mesmo perguntas - não tão - filosóficas como, por exemplo: por que a cadeira se chama cadeira e não mesa?
Queria poder falar coisas que não envolvessem aparência exterior ou rótulos impostos por essa sociedade ridícula em que vivemos. Ao menos, quero poder, um dia, falar de coisas que realmente importam.
Com amor,
Seu admirador secreto."
Terminei de ler o bilhete e dei um longo suspiro, encarando o relógio ao meu lado. Maldito relógio.
É claro que eu estava atrasada.
Levantei e me apressei o máximo que consegui para não chegar atrasada na floricultura. Meu guarda-roupa bagunçado me impossibilitou encontrar uma roupa decente rápido e o trânsito horrível daquela cidade ainda me rendeu bons minutos dentro do carro. São Paulo não é uma cidade onde você pode prever o tempo, o que faz com que eu carregue sempre um casaco dentro do carro, nunca se sabe quando vai começar a esfriar. Hoje, porém, o sol apareceu e esquentava cada pedacinho da cidade. Parei o carro em frente à floricultura, vendo Fernanda e Rafaela sentadas nos degraus da entrada, com óculos escuros no rosto e suas bolsas ainda nas mãos.
— Fernanda esqueceu as chaves — despejou Rafaela quando me aproximei das duas.
— Se você não tivesse me apressado, talvez eu lembrasse de trazê-las — se defendeu. — Aliás, não sei nem se fechei a porta. Se me roubarem, a culpa é sua.
Fui até a porta e abri, ligando as luzes e tentando não me importar com a briga das duas logo atrás de mim, enquanto terminavam de colocar os vasos do lado e fora. Deixei minha bolsa na sala e voltei para o balcão, ligando o computador e me sentando no banco.
— Será que vocês podem me explicar o porquê dessa briga? — falei um pouco alto, fazendo as duas pararem de falar e me encararem.
— É culpa da Fernanda.
— Ah, claro, porque sempre é culpa minha — ela disse, cruzando os braços e se sentando em frente ao balcão. Ela me olhou e a única coisa que fiz foi levantar uma sobrancelha enquanto a olhava. — É por causa daquela pessoa.
— Todo mundo apareceu com problemas com homens? Essa semana?
— É isso que os homens fazem, não é? Causam problemas.
— Sim — concordei com um suspiro. — Muitos e muitos problemas...
Fernanda se levantou, dizendo que ia ao banheiro e Rafaela se sentou em seu lugar, apoiando as mãos no balcão enquanto se inclinava para sussurrar.
— Ela está assim desde ontem — explicou. — Ele mandou mensagem, esse é o motivo.
Fernanda voltou e Rafa se pôs ao trabalho, como se nada tivesse acontecido. Ele era um assunto extremamente delicado, ninguém o mencionava em nenhuma conversa, do mesmo modo que não mencionavam Filipe, que tinha voltado dos mortos para me assombrar. O que parecia é que todos nessa floricultura, exceto Rafa, tinha um passado do qual não queria lembrar e evitava ao máximo. Mas esse passado resolveu voltar, tudo de uma vez e todos ao mesmo tempo.
— Você sabe, é aquela frase que você me disse anos atrás: eu sou sua amiga, pode contar comigo — disse quando ela estava próxima.
— Eu sei, Mari — ela falou e sorriu para mim. — Só não estou pronta para falar disso ainda.
...
Estava no balcão terminando de fechar minhas coisas para ir embora, o relógio já marcava duas da tarde e eu estava sozinha para fechar a floricultura. Dispensei as meninas um pouco mais cedo, já que elas ficaram me esperando pela manhã. O computador terminava de desligar quando eu ouvi a porta da frente ser aberta, devido ao soar do sino.
— Está fechado — eu disse sem olhar para cima, pegando uma papelada que iria organizar em casa.
— Não consegui vir antes — a voz de Matheus soou perto e eu o encarei. Ele não sorria. — Pode me fazer um buquê? Eu preciso mesmo.
Suspirei e fui atrás de flores para montar o buquê. Ele me encarava a cada movimento, observando tudo que eu fazia, desde pegar as flores até juntá-las para formar o buquê, sem dizer uma palavra. Por fim, entreguei a ele e peguei o dinheiro. Levantei e peguei minha bolsa, dando a volta no balcão.
— Eu precisava me explicar — ele falou, ainda sem parar de me encarar.
— Você tem meu número, pode me ligar, mas agora eu preciso ir para casa — falei, tentando não soar rude demais.
— Não queria ter agido daquele modo, Mari, de verdade. Aconteceram muitas coisas ontem, só não queria que ficasse magoada por minha causa.
— Não estou, mesmo. Só... me dê um tempo para pensar.
NOTAS
O que vocês acham que aconteceu de tão importante assim com o Matheus para ele agir assim com a Mari?
Eu fiz alguns aesthetics dos personagens, mas como alguns têm detalhes que não apareceram na história ainda, vou mostrando aos poucos pra vocês. Hoje é o da Fernanda.
O que estão achando da história? Comentem e deixem aquele votinho. Até semana que vem!
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