Capítulo 01: Begônia
"Ser cordial será sempre avant-garde, vanguarda, a frente do nosso tempo."
Karla Rondon Prado
Sábado, 14 de maio
Já passava de meio-dia e eu esperava minhas duas funcionárias voltarem do almoço para que eu fosse almoçar, como foi combinado hoje de manhã.
Hoje, como era sábado, a floricultura fechava às duas da tarde. Como não estava tão movimentado, eu poderia cuidar da floricultura sozinha, por duas horas, sem problema algum. Só foi eu pensar que estava vazio demais, porta foi aberta, fazendo soar o sino, e Matheus entrou sorridente.
Matheus era o cliente mais fiel que já tive desde que herdei a floricultura de minha mãe. Ele era um homem bonito, estava sempre vestido em algum terno e com o cabelo sempre perfeitamente arrumado. Seus olhos claros refletiam a luz do ambiente.
— Oi, Mari, preciso de um buquê de margaridas hoje — disse enquanto verificava como estava seu terno no espelho que ficava à esquerda do balcão.
— Pode deixar — disse sorrindo para ele.
Sábado, pelo visto, não é dia para flores, que costumam sair mais nas segundas-feiras, depois de um fim de semana sossegado ou conturbado, e nas sextas-feiras, antes desse mesmo fim de semana. Mas Matheus aparecia todos os dias, nunca deixava passar nenhum. Quando ele não conseguia vir pessoalmente, pedia para algum amigo passar ou que entregassem para ele. Como no domingo nós não abríamos a loja, nas segundas-feiras ele passava e levava dois buquês, eu achava que era para compensar o dia anterior. O destinatário das flores? Eu nunca soube quem é, mas que deve ser uma pessoa amada incondicionalmente, isso eu sabia.
— Obrigada, Mari — disse enquanto pegava o buquê das minhas mãos e saía. — Está linda hoje!
A última parte ele disse após abrir a porta de vidro da loja, sua voz tornou-se quase inaudível misturada ao caótico trânsito da cidade. A floricultura era um ponto de cor em meio a tanto cinza, que era natural dos grandes prédios do centro de São Paulo. O arco-íris durante um dia nublado.
Estava verificando a tabela de lucros da semana passada quando Fernanda, uma das funcionárias, entrou carregando um buquê de begônias. Ela sorriu para mim e depositou as flores no balcão à minha frente.
— Está me traindo com o concorrente gato que fica a duas ruas daqui, Nanda? — perguntei, tentando não rir, enquanto cruzava os braços na altura do peito.
— Claro que não, Mari. Mas que o Hugo é lindo ninguém pode negar — ela riu e sentou-se em um dos bancos ao meu lado. Pegou o avental que estava em cima do balcão, estampado "Mari Flores" na frente, e o vestiu. Eu ainda brigava com a minha mãe pelo trocadilho com meu nome, que era o mesmo da floricultura.
Sim, eu herdei o nome da floricultura. E ela também. De acordo com a minha mãe, que era a antiga dona, ela sempre amou o nome Marina, então o colocou na loja. Nenhum dos clientes entendia o porquê de "Mari" e só entenderam quando eu nasci.
— Então o que são essas begônias? — perguntei, já começando a estranhar a situação nada comum que se passava ali. Nanda sorriu mais uma vez.
— Eu, se fosse você, leria o cartão.
Ela levantou-se e foi arrumar os armários do estoque de ferramentas de jardinagem, como eu pedi que ela fizesse mais cedo. Olhei para as flores na minha frente e fiquei refletindo se leria ou não o cartão que sobressaía do meio das flores. Seria estranho demais se algum cliente chegasse na loja e encontrasse um buquê de begônias dentro do lixo? Ainda com o cartão fechado?
Espantei esses pensamentos e peguei o cartão, o abri, encontrando uma mensagem que não foi escrita à mão, mas impressa. Pelo menos, se tivesse a caligrafia, eu teria meus palpites sobre quem enviou as flores. Mas o que posso fazer?
"Querida Mari,
Neste momento, deve estar perguntando a si mesma quem poderia ter enviado tais flores. Não, você não vai adivinhar. E não, não vou me apresentar.
Por mais que seja tentador acabar com esse suspense, que começou não faz dez minutos, eu preciso ser forte. E você também. No momento certo, saberá quem é.
É irônico que eu mande flores para uma florista? Talvez. Espero que aceite, e goste, das Begônias. Veja estas flores como um símbolo do que elas significam: cordialidade. Ainda há muitas outras por vir. Especificamente, mais vinte e nove.
Com amor,
Seu admirador secreto."
— Uau, begônias — disse Rafaela aparecendo atrás de mim e me dando um susto com sua chegada repentina. — Está devendo, Mari? Não sabia que vendíamos esse tipo de begônias.
— Porque não vendemos — falei enquanto pegava as flores do balcão e levava para o escritório, deixando-as junto da minha bolsa, para lembrar de levá-las comigo quando fosse embora. Não que tivesse como esquecer algo assim.
— Desde quando você tem um admirador secreto? — ela perguntou, parada na minha frente.
— Há dez minutos, mais ou menos — disse e nós rimos. Por fora eu estava rindo, mas por dentro estava preocupada. Imagine que tipo de pessoa pode estar por trás desse lindo buquê e esse cartão muito bem escrito? — Eu vou falar com a Nanda no estoque e depois vou almoçar, tudo bem?
— Sem problemas, chefe! — disse Rafa, batendo continência.
Segui até o estoque, que ficava nos fundos da floricultura e Fernanda estava na escada enquanto arrumava a última prateleira. Ela desceu assim que me viu.
— Não, Mari, não vou contar — falou antes que eu pudesse dizer uma única palavra.
— Nem uma dica? Iniciais do nome, apelido no Facebook, data de nascimento, mapa astral? — disse e ela balançou a cabeça em negação.
— Nada, Mari. Você leu o cartão, vai saber no tempo certo.
— Isso é um complô contra mim! — eu dizia enquanto saía do estoque e, logo em seguida, pegava a bolsa e o buquê e saía da floricultura.
Deixei Rafaela e Fernanda tomando conta de tudo e segui para o restaurante em que almoçava quase sempre. Minha barriga já reclamava pelo tempo que fiquei sem comer e olhava a cada segundo para o relógio, desejando que ele andasse mais devagar e o trânsito, mais rápido. Era mais fácil fazer uma caminhada de dez minutos, do que passar meia hora dentro do carro, o problema é que se fosse a pé, depois teria que voltar para buscar o carro.
Depois de rodar atrás de uma vaga para estacionar, entrei no simples restaurante e escolhi uma das mesas próximas à janela. Gostava, apesar de tudo, de poder olhar para fora e ver o céu, que, daquele ponto onde ficava o restaurante, tinha uma vista perfeita. O garçom chegou e eu fiz o meu pedido: panquecas de carne moída. Enquanto aguardava sua volta, peguei o celular para mandar uma mensagem ao meu amigo. Melhor amigo, no caso.
"Adivinhe quem recebeu flores hoje?", digitei e aguardei a visualização.
"Alguém que morreu?", ele respondeu e eu ri, mesmo sabendo que era errado.
"Que horror, Vini! Fui eu!"
"Ai meu Deus, o mundo vai acabar! Espera, deixa eu ligar pra NASA e mandar eles olharem se não tem nenhum meteoro vindo na nossa direção!"
Dei risada um pouco alto, fazendo o garçom, que chegou com meu prato, me olhar com uma cara como quem diz que eu sou doida. O celular começou a vibrar na mesa e era Vini.
— Que história é essa de flores? — perguntou e eu dei risada novamente.
— Flores, Vini. Ganhei flores. Mais especificamente, um buquê de begônias. Simbolizam cordialidade. Veio um cartão também.
— Nossa! Quem diria... Mariana Flores recebendo flores. Chega a ser engraçado — ele diz e posso ouvir sua risada do outro lado.
— Poxa, Vini. Nem assim vocês me levam a sério — falei e ele riu mais ainda.
— Prometo tentar, Mari. Agora eu vou desligar porque sei que é seu horário de almoço e eu estou aqui ocupando seu precioso tempo. Depois passo na sua casa e a gente discute a origem dessas flores.
Nos despedimos e eu passei a me concentrar no meu almoço, que estava pedindo para ser comido, bem na minha frente. Enquanto almoçava, olhava as notícias do dia, um hábito que minha mãe sempre recriminou. Apenas mais corrupção, mais violência e mais desemprego, ao menos o futebol estava indo bem. O menor dos problemas do país era eu, depois de dois anos sozinha, receber flores de um admirador secreto.
...
Estava em casa, colocando a mesa para o jantar, quando bateram na porta. Vinicius estava atrasado. Fui até a porta e abri, dando de cara com ele, sua face demonstrando pleno cansaço. Passou por mim e depositou a sacola com um refrigerante e um suco de laranja na mesa.
— Boa noite para você também, Vini — falei enquanto ele puxava uma cadeira para se sentar, retirando o boné e apoiando-se na mesa. — Tudo bom contigo? Que bom. Comigo também, mil maravilhas.
— Oi, Mari. Espera.
Fechei a porta fui buscar o jantar na cozinha enquanto esperava a madame se recompor. Quando voltei à sala, ele já tinha uma cara um pouco melhor.
— Agora sim — disse me encarando. — Acho que você esquece que eu sou sedentário. Por que não me avisou que o elevador estava quebrado?
Dei de ombros e ele reclamou mais um pouco, até que se calou e foi até a prateleira, pegando um caderno, que eu deixava ali para anotar qualquer coisa, e uma caneta. Voltou para a mesa e me encarou.
— Eu vou montar uma lista, isso ficou na minha cabeça desde que saí de casa — ele dizia enquanto abria na primeira página em branco, depois de todas as receitas que anotei e nunca fiz. — Vamos colocar aqui todos os suspeitos de mandar os buquês. Com o tempo, você vai adicionando mais, ou tirando alguns.
Lista de – possíveis – admiradores secretos da Mari
(Não necessariamente nessa ordem)
1. Matheus Teixeira
2. Hugo Barbosa
A lista ia apenas até o número 2 e o resto da folha estava em branco. Vini me olhava sorrindo e eu não contive o riso enquanto olhava as minhas limitadas opções de admiradores. A situação era trágica, só restava rir.
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