14 - Noah
SÊ O MELHOR DO QUE QUER QUE SEJAS...
Se não puderes ser um pinheiro, no topo da colina,
Sê um arbusto no vale — mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um arbusto, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um arbusto, sê um pouco de relva,
E dá alegria a algum caminho.
Se não puderes ser almíscar, sê, então, apenas uma tília —
Mas a tília mais viva do lago!
Não podemos ser todos capitães; temos que ser tripulação.
Há algo para todos nós aqui.
Há grandes e pequenas obras a realizar,
E é a próxima a tarefa que devemos empreender.
Se não puderes ser uma estrada, sê apenas uma senda.
Se não puderes ser Sol, sê uma estrela;
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso —
Mas sê o melhor do que quer que sejas!
Apenas se me desculpar também.
Melissa.
As palavras mais uma vez entram pelos meus ouvidos e criam um caminho até o meu coração. Releio o bilhete que estava no meu armário hoje cedo, várias vezes, tentando de alguma forma reproduzi-lo pela voz da garota de olhos azuis, como se ela estivesse recitando para mim em uma tarde qualquer.
Uma sensação quente se apodera da boca do meu estômago e quando fecho os olhos posso vê-la sentada ao meu lado, sorrindo. Os seus cabelos estão bagunçados pelo vento e quero colocá-los no lugar com a ponta dos meus dedos. Porém, quando abro os olhos a minha realidade me bate e o que o vento bagunça são as folhas no meu quintal. Não há ninguém ao meu lado e mais uma vez percebo que fui tão bom em manter todos fora que agora não sei mais como deixar ninguém entrar.
Talvez se eu não tivesse simplesmente faltado a todas as consultas com o terapeuta que fui indicado, para ficar isolado em um canto, hoje eu saberia como seguir a partir daqui. Eu não me sentiria tão perdido e sem rumo, sem perspectivas de ter uma vida onde as coisas são mais fáceis. Eu fiz a minha escolha e aceitei que tinha que lidar com ela, mas será que só pode ser dessa forma?
Eu não me arrependo do que me levou a isso, mas estou começando a me arrepender de como fiz as coisas depois disso.
Acendo o cigarro e dou uma tragada em busca de acalmar o meu coração acelerado, mas nem isso surte efeito.
— Noah — a voz da Kristen ecoa pelos meus ouvidos.
Estou há um tempo sentado nos dois degraus em frente de casa, olhando para o nada, perdido em pensamentos desconexos. Rapidamente amasso o cigarro no degrau e o deixo lá.
— Oi — sussurro de volta.
Ela me olha e penso que vai se sentar ao meu lado, colocar os braços ao meu redor, beijar os meus cabelos e dizer que tudo vai ficar bem, que toda a dor vai passar. Foi exatamente isso o que ela fez quando eu tinha cinco anos, cai de bicicleta e ralei o joelho, depois aos sete quando o nosso cachorrinho morreu. Depois disso, aos oito quando Hillary ficou de cama e eu achei que ela ia morrer. Aos nove quando o meu melhor amigo precisou se mudar. Aos dez quando eu fiquei de cama por conta de uma pneumonia. Aos treze quando perdi o meu avô e a dor parecia não ter fim. Acho que essa foi a última vez, mas, em todas, as coisas realmente ficaram boas e a dor um dia passou. Então, quando ela não fez isso depois daquele maldito dia e em alguns antes dele, eu soube que as coisas não podiam ficar bem e a dor não ia passar.
Acho que foi um dos motivos que achei que os meus pais não me amavam mais. Eu não recebi um abraço e uma certeza de que ficaria tudo bem.
— Ligaram da escola para informar que você não foi a aula nem ontem nem hoje — diz, a sua voz é uma mistura de incerteza e repreensão.
— Eu fui ao médico por causa do meu pulso — conto uma meia verdade. O real motivo é que ainda não estou pronto para encarar a garota de olhos de oceano, não estou pronto para olhar em seus olhos e sentir que ela pode enxergar por de trás do muro que construí para manter todos longe. Então fugi novamente depois de encontrar o seu bilhete no meu armário.
— Você deveria ter nos avisado, eu teria te levado — o seu tom deixa claro que ficou chateada.
Será que isso realmente importa para ela?
Kristen continua parada a alguns metros de onde estou sentado, suas mãos seguram duas sacolas de cada lado e seus olhos encontram os meus. A minha mãe parece ter envelhecido vários anos e sinto uma enorme vontade de pular em seus braços e implorar que me diga que as coisas vão ficar bem e que a dor de alguma forma vai passar. O meu peito grita para que eu sente com ela e coloque para fora tudo o que sinto, que pergunte se ela ainda me ama? Se eu ainda posso ser o seu filho querido mesmo depois de tudo o que aconteceu?
Mas ao contrário do que meu coração grita, o meu cérebro bloqueia a minha respiração e me diz que tudo o que preciso é sair daqui e respirar. Automaticamente as minhas pernas se levantam, descem o degrau e param ao lado da mulher que me deu a vida. Uma batalha entre razão e sentimento é travada e meu coração dói, perdido na angústia pela falta de coragem de tomar uma atitude.
— Noah — Kristen sussurra e vejo quando solta as sacolas e levanta os braços.
Eu quero tanto fazer o mesmo, é apenas um passo. Um movimento pequeno e tudo muda, mas eu não consigo. Não ainda.
— Eu... vou dar uma volta — as palavras saem estranguladas pelos meus lábios.
Em menos de dois segundos eu já estou na calçada, os meus olhos queimam para que eu olhe para Kristen, que sei ainda está parada no mesmo local, com lágrimas nos olhos. Entretanto, o que faço é correr, correr o mais rápido que posso. Correr até a dor no meu corpo ser maior que a dor no meu coração.
Maldita hora em que nos mudamos e aqueles olhos de oceano me fizeram sentir algo, maldita hora que ela foi me afrontar e me levou a ter uma conversa com a Hillary. Maldita hora que a minha irmã foi abrir a boca e me fazer enxergar que eu estou fazendo tudo errado. Perceber que eu não estou bem sozinho, como me fiz acreditar, é uma droga e agora eu não sei como consertar as coisas.
Tudo o que fiz achando que estava protegendo a mim e a minha família, só trouxe mais dor e sofrimento. É tão claro agora.
O problema é que não sei como tratar os meus pais ou as pessoas ao meu redor, não sei como continuar daqui. Não sei de nada.
Mas sê o melhor do que quer que sejas! diz o final do poema que a Melissa me mandou. Nos últimos anos eu fui o pior do que quer que eu estava sendo.
Como mudar algo que parece não poder ser mudado?
Não posso chegar nos meus pais e fingir que não os ignorei por mais de um ano. Não posso querer que a nossa família volte a ser o que era antes, porque eu não sou o mesmo e isso não vai mudar. A diferença é que talvez eu possa ser aceito pelo que eu sou, sem julgamentos. Eu só preciso aprender como.
Me tornei tão especialista em estar sozinho que não sei mais como estar acompanhado.
Quando pego o caminho de volta para casa já é fim de tarde, o sol está se pondo e o horizonte tem uma mistura de rosa e laranja. Sem pressa dessa vez, caminho lentamente, adiando mais um confronto. Talvez eu ligue para a Hillary, ela sempre sabe o que fazer nas piores situações, ela se tornou a nossa ponte de ligação.
— Noah, Noah — uma voz animada chama o meu nome.
Estou quase na frente de casa quando vejo os garotos de uns dias atrás, John e Heath, se não me engano, vindo na minha direção.
— Oi — respondo, parando de caminhar.
— Você está chegando? — John pergunta. Ele carrega um sorriso feliz no rosto e me pergunto se é por minha causa, já que parece empolgado por falar comigo. Não posso dizer o mesmo do seu amigo.
— Estou. E, vocês?
— Não estamos chegando não. — Ri. — Heath e eu estávamos brincando de corrida, mas ele só perde.
— Mentira — Heath grita, irritado. — Você trapaceia.
— Não trapaceio nada, não — John rebate. — Noah, você pode ficar olhando para ver quem ganha? E falar para esse bobão que eu não trapaceio? — pede.
O seu sorriso é pidão quando me olha e não sei o motivo, mas digo sim. Esse garoto de alguma forma me causa uma sensação boa, sem contar que os seus olhos me lembram o oceano, iguais aos da Melissa.
— Posso.
— Eu disse que ele ia aceitar — provoca o amigo e mostra a língua.
— Vamos para a nossa marca, então — Heath resmunga com um dar de ombros.
John se aproxima e pega a minha mão de forma natural, como se fossemos amigos de longa data. O costumeiro incomodo me toma, mas não chega a causar falta de ar ou acelerar os meus batimentos.
— Vem, você vai ser o nosso juiz e tem que ficar em um lugar que consiga ver bem. — Faz impulso para frente e leva a nós dois para dentro do jardim.
John para ao chegarmos próximo a árvore que peguei a bola no outro dia.
— Você fica aí, dá para ver toda a pista — explica.
— A gente começa daquela risca, até a árvore — Heath aponta, mostrando as marcar que fizeram. A "pista" não chega nem a cem metros. — A gente corre com um pé só para ficar mais difícil, não pode pôr o pé no chão.
— Entendi.
— Se um de nós colocar o pé no chão — Heath começa e olha de cara feia para o amigo —, você grita.
— Eu não coloco o pé no chão. — John balança os ombros, ignorando o amigo. — Vamos começar logo.
John me lança um sorriso e começa a caminhar para a marca de início, Heath o acompanha.
Durante a próxima meia hora, observo dois meninos discutirem para ver quem estava roubando por ganhar e logo começarem mais uma partida em busca do que conseguia vencer mais vezes. Eles caíram, gritaram, riram e me encheram de perguntas, mas, acima de tudo, os vi se divertirem e me incluírem nessa diversão.
Quando Heath disse que não aguentava mais e queria entrar, eu estava com um sorriso no rosto e sentindo em um cantinho do meu peito, que eu não queria parar de ser o juiz daquela brincadeira. Depois de muito tempo, eu havia conseguido, mesmo que por pouco tempo, esquecer de tudo e apenas viver.
— Você espera um minuto aqui? Eu quero te dar uma coisa — John pede.
— Espero, mas não demora.
— Eu vou correndo.
Assinto com a cabeça e os dois correm para dar a volta e entrar pela porta dos fundos da casa. Fico observando o jardim bem cuidado e pensando em como coisas simples podem fazer você se sentir tão bem.
Poucos minutos se passam quando John volta correndo e me entrega um pedaço de papel dobrado.
— Eu fiz pra você — conta, meio sem jeito.
Desdobro o papel e levo um soco na boca do estômago. De forma simples e colorida, John desenhou a mim como uma capa de super-herói, voando para pegar uma bola em cima de uma árvore enquanto dois meninos me olham do chão, ele e Heath.
— É só um desenho bobo — diz, quando vê que estou feito um idiota, olhando para o papel com a boca aberta.
Olho para cima e John desenha o chão com os pés, a cabeça está baixa e ele parece envergonhado.
— Eu... eu... — Os seus olhos me encaram ansiosos, o seu pé para e ele fica esperando as minhas palavras. — Ficou incrível, eu adorei — consigo finalmente dizer.
John dá alguns passos para frente e seus braços rodeiam a minha cintura. Ele bate abaixo do meu peito, então sua cabeça fica encostada na minha barriga. Uma mistura de coisas boas com angustiantes sobe pela minha garganta e um bolo se forma.
— Quando eu crescer quero ser igual você — diz em alto e bom som.
A minha respiração fica presa e só consigo mover minha mão até a sua cabeça e fazer um afago de leve. São muitos sentimentos para um dia só, meu coração está comprimido no peito e lágrimas ameaçam cair dos meus olhos. Faz tanto tempo que eu não as deixo cair que não sei mais qual a sensação.
John se afasta, ainda com um sorriso de orelha a orelha, e me encara.
— Você ficou triste? — pergunta, agora preocupado.
— Não... Eu... eu... é... preciso ir — digo e ele assente, parecendo triste.
— Eu também tenho que entrar. Obrigado por brincar com a gente, Noah.
John se vira para ir embora e reúno forças para fazer o mesmo, ele já andou vários passos quando consigo chamar o seu nome. Ele se vira e me encara receoso.
— Eu gostei muito do desenho. Obrigado.
Um enorme sorriso se abre no seu pequeno rosto, ele acena com o braço e começa a correr, pulando de um lado para outro, realmente contente.
Neste momento, tenho a certeza de que fazer alguém feliz é o mesmo que ser feliz.
Entro correndo em casa e vou direto para o meu quarto. O meu corpo afunda o colchão quando me jogo na cama e levanto a folha com o desenho, a observo por vários minutos, até que sinto lágrimas molharem o meu rosto. Elas são salgadas e um pouco geladas no início. Deixo que elas rolem soltas, porque mesmo que pareça impossível, são de alegria.
Sê o melhor do que quer que sejas – Douglas Malloch
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