12 - Noah
Tem uma mancha no teto, bem acima da minha cama. Ela parece com uma nuvem e a claridade que entra da janela a ilumina. Foi para ela que olhei por horas depois da conversa com Hillary. Esse quarto deveria ser de hóspedes quando a minha tia Lucy ainda morava aqui. Agora entendo como foi "sorte" que ela estivesse se casando e fosse mudar para outra cidade bem quando o meu pai ganhou uma "promoção" e teve que se mudar para Charlotte. Claro que o casamento não foi por esse motivo, mas veio a calhar uma casa vaga e uma filial da empresa de carros que Allan trabalha, bem aqui. Foi a sua chance de pedir transferência e trazer toda a família para recomeçar. Trazer o filho problemático para recomeçar.
Me sinto como se tivesse passado por um furacão e depois sido jogado em um canto, a ermo. Raiva e dor se misturam em proporções iguais em meu peito e não sei como controlar. Eu não sei o que pensar sobre isso. Quero gritar, socar alguma coisa, extravasar de alguma forma. Porque ao mesmo tempo que me sinto enganado, me sinto... bem, por saber que eles ainda se importam comigo.
A porra da nossa vida poderia ser bem mais simples, as coisas poderiam ser pretas no branco. Entretanto, tudo precisa ser complicado, as pessoas precisam ser complicadas, os sentimentos, o mundo.
Vovô sempre me disse que há momentos que marcam a nossa vida, pequenas ações que fazem tudo mudar de figura. Como em uma ferrovia, quando se muda a direção do trilho, é um ato pequeno se formos pensar, mas que causa algo grande. Imagine que esse trem está indo direto para uma parede e você aciona uma alavanca que o faz continuar por outro caminho, até parar em um local seguro. Uma pequena ação diante de uma consequência imensa. Assim é com a nossa vida, tudo muda constantemente e é uma questão de segundos para que você mude o seu destino, a sua história e quem você é.
Eu sei qual foi o meu momento, sei exatamente o ponto em que deixei de ser um garoto inocente para me tornar alguém capaz de tirar a vida de outra e jamais sentir remorso. Também sei que foi nesse ponto que escolhi não deixar que as pessoas conhecessem esse meu lado, pessoas que me amam e que eu amo. Depois de tudo o que aconteceu, parecia a única coisa certa a fazer. Mas, agora, eu não tenho mais certeza de nada.
Só os tolos têm certeza de tudo, meu avô costumava dizer. E quando me lembro disso, tenho certeza que sou tolo porque até horas atrás eu tinha certeza do que estava fazendo.
"Mantenha todos longe, você não é o mesmo. Não sofra e os faça sofrer ainda mais." repeti milhões de vezes na minha cabeça, nos últimos tempos.
Quando me afastei de todos eu só queria proteção, para eles e para mim. Emoções são para os fortes e eu não sou, não mais, é mais fácil não sentir, quando você não sente não pode se machucar.
Justamente por isso, hoje sai de casa mais de uma hora antes do que de costume, para não ter que olhar para os meus pais, para não ter que me questionar se o que a minha família se tornou é reflexo das minhas atitudes e não da sua falta de amor ou medo do que eu sou capaz de fazer. Tento puxar na memória se logo após o que aconteceu as coisas eram assim ou se tudo foi ficando estranho com o tempo, com a minha falta de confiança nas pessoas e a vontade de me manter afastado de todos.
Como a gente sabe que está fazendo ou não a coisa certa? pergunto-me enquanto caminho pelas ruas quase vazias de Charlotte. Vejo um pai e uma filha que entram no carro, os dois sorriem e a mãe acena sorridente da porta. Uma família feliz, como a minha foi um dia.
A escola ainda está vazia quando chego, há apenas o carro de alguns professores no estacionamento e poucos alunos que chegam mais cedo para estudar. Sigo para a minha sala secreta, em dias que estou de bom humor posso brincar que é a minha Batcaverna, com a diferença de que não sou o Batman e muito menos um super-herói.
Sento-me na minha mesa de costume a acendo um cigarro, a fisgada em meu pulso por conta do movimento me lembra que preciso mesmo ir ao médico ver se foi apenas uma torção ou algo mais grave, também me faz lembrar do motivo: Melissa.
Suas bochechas vermelhas pela evidente raiva que estava sentindo durante a nossa pequena discussão, me fazem sorrir. Aquela garota com olhos de oceano parece mesmo ser diferente, ela não me olhou da mesma forma que os outros sempre olham.
"Ah, minha alma, prepare-se para encontrar Aquele que sabe fazer perguntas", posso ouvir a voz do meu avô recitando mais um verso em uma tarde fria, enquanto tomamos chá e observamos as chamas da lareira. Hillary e eu sentados no tapete, mais perto do fogo, e ele em uma poltrona.
Para uma criança aquelas palavras não faziam sentido algum, na verdade, eu jurava não lembrar de nenhuma delas minutos depois. Até que vovô se foi e tudo o que meu sobrou foram as lembranças da sua voz mansa e acalentadora recitando poesias, versos e contando histórias. Fiz questão de guardar cada livro seu e ler e reler milhões de vezes, até decorar um bocado de coisa. O senhor Joan ficaria orgulhoso de mim.
Abro o gasto exemplar de The Last Night of the Earth Poems e começo a ler e viajar para uma época feliz. Isso me acalma e quase posso sentir a presença da pessoa que mais amo na vida, mesmo que ele não esteja mais fisicamente ao meu lado.
— Mas eu não choro, e tu? — Leio em voz alta o final do poema O pássaro azul. Uma ideia me passa pela cabeça e apesar de parecer maluca e sem nexo, de algum jeito eu sei que vai dar certo.
Em uma folha em branco, começo a transcrever as palavras do poema. De certa forma, elas exprimem a forma como me sinto agora, como se o meu outro eu fosse o pássaro azul. Acrescento um pedido de desculpas e o meu nome antes de dobrar em forma de envelope e escrever o nome da garota de olhos de oceano.
O corredor está praticamente vazio quando enfio o envelope pela fresta do armário da Melissa, quando ela abrir sei que a folha vai cair e não terá como ela não ler. Só espero que aceite o meu pedido de desculpas.
Um tremor se infiltra na minha barriga e minhas mãos tremem um pouco com o pensamento de que ela venha falar comigo. Com toda certeza ainda não estou preparado para uma interação. Tenho vontade de retirar o bilhete do seu armário e não dizer nada, mas agora já é tarde demais.
Covarde.
Esse sou eu.
A minha especialidade se tornou fugir de tudo e todos, por isso sigo para a saída com a desculpa de que não vou assistir aula para ir ao médico.
O caminho até a saída do colégio já começa a encher de alunos, eles conversam em rodinhas e riem alegres. Adolescentes normais em suas vidas normais.
Na rua acima da escola há um ônibus que passa em frente ao hospital e é para lá que sigo. Os fones em meu ouvido bloqueiam o mundo ao meu redor e sinto uma falsa sensação de segurança.
O hospital fica a uns quarenta minutos do colégio, durante o trajeto meus pensamentos fervilham com os acontecimentos das últimas horas. Gostaria de ter o poder de ser invisível, ficaria assim até que tudo se encaixasse. Eu não sei como tratar meus pais, como tratar a Melissa, a única pessoa que tentou se aproximar sem me julgar, e até mesmo com a Hillary as coisas parecem estranhas. Eu me sinto completamente perdido.
Na sala de atendimento há poucas pessoas e depois de fazer a ficha o atendente me pede que espere até que o meu nome seja chamado. Aproveito o tempo de espera para voltar a minha leitura de mais cedo. Cada verso lido me traz uma porrada de lembranças e me pego ansiando para que as coisas voltem a ser como antes. Um anseio por carinho a atenção aperta o meu peito, eu pensei que estava bem ficando isolado, mas a verdade é que a solidão dói como uma facada na boca do estômago.
Quase uma hora depois e estou entrando na sala do médico, ele é relativamente novo e tem um sorriso contido.
— Noah Hughes?
— Sim. — Assinto com a cabeça e adentro a sala.
— O que o traz aqui? — O homem aponta uma maca para que eu me sente. Faço o que pede e ele se aproxima.
Minha respiração acelera pela sua aproximação e o medo do seu iminente toque faz com que minha barriga se contraia com o pavor. Sinto uma gota de suor escorrer pela lateral do meu rosto.
— Você está se sentindo bem? — ele indaga, encarando-me.
— Estou. Eu acho que torci o pulso — explico rapidamente.
O homem afirma com a cabeça e me olha por alguns instantes.
— O meu nome é Roger, Noah. Eu vou precisar examinar a sua mão, tudo bem para você? — pergunta, a sua voz tem um tom cauteloso.
Não respondo, a minha garganta está fechada. Estendo o braço e ele hesita um instante antes de pegá-lo. O doutor Roger é cauteloso ao examinar a parte do meu pulso e a mão. Ele toca apenas nas partes necessárias.
— Como aconteceu isso?
— Uma... uma briga na escola.
O homem ergue os seus olhos para mim e sorri.
— Espero que tenha sido por um bom motivo. — Solta a minha mão e pega o meu prontuário.
— Eu acho que sim.
— Você teve apenas uma leve torção, nada demais. Vou receitar um anti-inflamatório, uma faixa no braço e compressa com gelo. Em poucos dias não vai sentir mais nada.
— Obrigado, doutor Roger.
O médico prescreve uma receita e anota algumas coisas no meu prontuário.
— Aqui está, Noah. — Estende a receita e junto com ela um cartão. — Esse é o cartão de um Centro de ajuda que sou voluntário. Tratamos pessoas com traumas de situações complicadas — diz, pesando as palavras usadas. — Se um dia se interessar, será muito bem-vindo.
— Por que está me dando isso? — indago, mesmo sabendo do motivo.
— Depois de tantos anos trabalhando com isso a gente aprende a ler os mínimos sinais — esclarece.
— Obrigado, mas acho que se enganou, doutor — digo.
Quero sair dessa sala e fingir que nunca encontrei com esse médico. Eu não quero ir em um lugar cheio de pessoas marcadas por coisas horríveis, por momentos que nunca saem da mente. O que eles podem fazer para mudar o que essas pessoas sentem? Nada.
— Leve mesmo assim, quem sabe um conhecido precise. Costumamos ajudar os amigos também — insiste, pacientemente.
— Já posso ir?
— Claro, melhoras.
— Obrigado.
Abro a porta rapidamente e saio praticamente correndo, preciso de ar para respirar. Será que de repente eu sou tão claro de se ler?
Aperto com força o botão do elevador, por sorte, quando ele para no meu andar está vazio. Quando as portas se fecham as paredes ao redor parecem se comprimir e fecho os olhos para tentar regular a minha respiração. A caixa para dois andares abaixo e sinto alguém entrar. Mantenho os olhos ainda fechados, mas eles são abertos por um choro lamurioso.
Ao meu lado, uma garota chora descontroladamente, com as mãos nos olhos. O seu corpo treme e ela soluça. O meu cérebro parece pifar e não sei bem o que fazer, alguns segundos se passam até que consigo tocar de leve o seu ombro.
— Posso te ajudar em alguma coisa? — pergunto. Pensei em usar o famoso "você está bem?", mas seria idiotice da minha parte. Ninguém que está bem chora descontroladamente em um elevador de hospital.
A garota soluça mais alto e em um movimento rápido se agarra a mim, as suas mãos seguram o meu moletom e sua cabeça se encosta ao meu peito. Os meus braços pendem para o lado e fico estático enquanto ela encharca o tecido com lágrimas.
Sou obrigado a me mover quando o elevador para no térreo e outras pessoas querem entrar, elas nos olham com pena e dão passagem quando reboco a garota para fora. Ela parece alheia a tudo e me segura como se sua vida dependesse disso. Tento ignorar a horrível sensação por ser tocado por alguém e focar em como fazê-la se acalmar.
Consigo afastá-la para o lado e caminho com ela ainda grudada a mim até a saída do hospital. Em frente há algumas árvores e bancos. Sigo até um vazio e sento, com a garota ainda agarrada a mim.
— Ei — chamo e ela soluça mais alto. — É... qual o seu nome? — indago, sem saber o que dizer.
Instantes se passam e nenhuma palavra sai da sua boca, então ela lentamente se afasta. O seu rosto está de um cor-de-rosa forte e os olhos e nariz estão inchados pelo choro.
— Me... me desculpa — pede. Ela leva as mãos ao rosto e limpa as lágrimas com as beiradas da blusa que usa.
— Você quer que eu chame alguém?
Ela pensa por um momento e nega com a cabeça. Fico em silêncio e ela também, as suas lágrimas parecem ter secado e agora a garota apenas olha para o lado, perdida em pensamentos.
— Você já confiou tanto em alguém e essa pessoa usou isso para te destruir? — pergunta de repente. Ela não me olha e fico em dúvida se a pergunta foi para mim ou para o nada.
— Sim — respondo mesmo assim.
Olho para o alto e tento imaginar a história dessa garota. Eu sei perfeitamente o quanto é duro depositar sua confiança em alguém e tê-la jogada ao vento.
— Ele disse que me amava e eu acreditei. — Pausa um momento e solta um riso desgostoso. — Agora estou grávida e sozinha porque ele disse que o máximo que pode fazer é arrumar dinheiro para resolver o "problema". Ele chamou o nosso filho de problema, disse que era uma pedra no sapato que eu deveria remover. — Os seus olhos voltam a marejar e lágrimas descem silenciosas pelas suas bochechas. — Como eu pude ser tão burra? — indaga.
Raiva exala dos meus poros. Como alguém pode ter coragem de fazer uma coisa assim? Na verdade, não sei como ainda me espanto com as pessoas, aprendi que elas podem ser piores do que jamais imaginamos.
— Eu sinto muito — sussurro. Queria poder dizer que tudo vai ficar bem e que isso vai passar, mas não gosto de iludir os outros. Eu não sei nem sobre a minha vida, como vou afirmar algo sobre alguém. — Você não foi burra, só acreditou na pessoa errada.
— Eu não sei o que fazer. A minha família vai me matar. — Os seus olhos recaem sobre mim, desesperados e perdidos. Posso imaginar exatamente como ela está se sentindo, sem rumo, quebrada. Mesmo que por diferentes motivos, algumas dores acabam sendo iguais.
— Você coloca a barriga na frente e grita "o bebê" — uso o sarcasmo para não ficar em silêncio.
Um pequeno sorriso surge em seus lábios e ela suspira, resignada.
— Boa ideia. Eles nunca fariam mal a um bebê inocente — concorda. Sua mão vai para a barriga e ela acaricia o local. — Meu Deus, eu vou ter um bebê.
As suas palavras me trazem alívio, por um momento pensei que ela pudesse pensar em tirar a criança, como o maldito sugeriu.
— Que bom que você não vai fazer o que o imbecil sugeriu, eu fico aliviado por saber.
— Confesso que por alguns minutos eu até pensei nisso, por isso eu vim até aqui — diz envergonhada —, mas esse ser que está aqui não tem culpa.
— Dê uma chance aos seus pais, eles te amam — digo, usando a minha experiência como exemplo.
— Eu sei, só não queria ver aquele olhar de decepção. Acho que vai ser o que mais vai doer.
— Não somos perfeitos e eles sabem disso.
— Obrigada... — pausa para que eu diga o meu nome.
— Noah.
A garota se levanta e estende a mão, hesito um segundo antes de aceitar. Ela cobre minha mão com as suas e me encara.
— Obrigada, Noah. Eu sou Branah, não costumo chorar no ombro de desconhecidos, mesmo assim isso me ajudou muito.
— Fico feliz de ter ajudado — digo sinceramente. — Você vai ficar bem?
— Vou, não quero mais alugar o seu tempo. Eu vou para casa pensar em como contar para os meus pais e para o meu irmão.
— Você consegue.
Ela assente com a cabeça e se afasta.
— Até um dia — diz.
— Até.
Branah se afasta e eu permaneço no banco por mais um tempo, pensando em como a vida pode ser complicada.
***
Obrigadinha pelos comentários, estou muito feliz de voltar com as postagens e assim que der vou responder a todos.
A partir de hoje, as postagens serão feitas uma vez na semana, as sextas pela manhã.
Beijinhos
Frase de T.S. Eliot
Livro por Charles Bukowski, no português .
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