08 - Noah
Sinto pena dele.
Sinto pena dele.
Sinto pena dele.
Sinto pena dele.
Sinto pena dele.
As palavras daquele maldito pedaço de papel ficam se repetindo infinitas vezes na minha cabeça. E eu achando que realmente pudesse ser diferente. No fundo, ela é igual a todo mundo, só sabe usar uma máscara que disfarça melhor os seus sentimentos. E é por isso que não deixo que se aproximem de mim, não dá para confiar em ninguém.
Por sorte não temos mais nenhuma aula juntos hoje, não quero ter que olhar para aqueles olhos de oceano que acreditei poderem me entender. Idiota, isso que eu sou. Me apegando a esperança de que as coisas finalmente podiam ser diferentes. Agora entendo porque Kristen consegue acreditar nisso, outras pessoas a fazem acreditar. Coitada da minha mãe.
Olho para uma das portas de saída do prédio e me sinto tentado a simplesmente cair fora e me trancar no meu quarto, acender um cigarro e ficar ouvindo música até toda essa merda sair da minha cabeça. Não tenho mais idade para ficar com esse drama, já estou acostumado a ter uma vida patética.
Começo a caminhar em direção a saída, mas as palavras do Allan me vêm à mente. Por favor, tente não se meter em confusão. Então dou meia volta e entro na merda da sala de inglês.
Escolho um lugar ao fundo, coloco meus fones de ouvidos e os cubro com a touca da blusa. A senhora Harts é uma mulher já de idade e não está nem aí para o que os alunos fazem na sua aula. Ela é o oposto do senhor Jensen.
Ligo uma música baixa, de forma que ainda posso ouvir a voz nasalada da senhora Harts. Ela fala algo sobre um poema e pede que um aluno recite em voz alta.
— Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor; Aqueles que atravessaramDe olhos retos, para o outro reino da morte Nos recordam – se o fazem – não como violentasAlmas danadas, mas apenas Como os homens ocosOs homens empalhados."
Homens ocos - T. S. Eliot, quase posso me lembrar da voz do meu avô lendo para mim em uma tarde ensolarada, enquanto observávamos os pássaros e tomávamos um chá horrível que vovô insistia em nos preparar dia após dia. Ele era britânico e estava no sangue consumir uma quantidade excessiva de chá no fim da tarde. Eu nunca soube muito bem do que era feito, mas me lembro da sua cor escura e do sabor amargo. No começo eu fazia uma careta e enrolava para beber, mas com o tempo fui me acostumando e virou a nossa tradição. O meu momento preferido do dia. Hoje, eu daria um braço para ter o meu avô comigo, com as suas xícaras de chás amargos, as poesias de T.S. Eliot, Dylan Thomas, Bukowski, Elizabete Bishop, Yves Bonnefoy e tantos outros, e os seus conselhos sábios.
Ouvindo agora um trecho do poema, por uma voz diferente em uma vida diferente, o seu peso sobre mim também é totalmente diferente. É exatamente como me sinto. Como os homens ocos, no meu caso, um garoto oco.
Naquela época, quando vovô recitava versos com a voz grave, mas ao mesmo tempo serena, eu não entendia direito como era a vida e pensava que o meu avô seria eterno. Eu já havia lidado com a morte da minha avô, porém, não de uma forma que entendesse o seu real significado.
Quando vovô partiu, ele levou grande parte de mim com ele. Meus pais eram atenciosos e Hillary a minha melhor amiga, éramos uma família feliz. Mas o vovô, ele me entendia como ninguém, ele sabia o eu sentia e pensava e eu me sentia protegido. Eu sei, não sei como, mas sei que se ele estivesse vivo as coisas seriam diferentes, ele teria me protegido e ninguém jamais iria tocar em mim de um jeito asqueroso e errado. Se ele estivesse vivo, eu não teria me aproximado de outra pessoa, não teria sido enganado e nunca teria sido...
— Noah.
Sinto um toque no meu ombro e pulo na cadeira. Eu odeio que me toquem, me sinto inseguro e invadido. Meu cérebro me leva há tempos diferentes e minha respiração trava.
Levanto a cabeça e os olhos da senhora Harts me analisam, isso me traz alívio. Estou na escola, apenas na escola.
— Gostaria de dividir conosco qual o vazio que Eliot trata no poema? Você ouviu, certo? — A sua expressão é de repreensão e sei que, de alguma forma, ela sabe que estou com fones de ouvido, o que é proibido em sala de aula. Entretanto, ao invés de me repreender ela quer algo a mais e não sei o que é.
— Esse vazio é uma metáfora para a quantidade excessiva de coisas inúteis que são tradadas com opulência, sendo que são apenas aparências e acabam por transformar o ser humano em pessoas sem vida, "empalhadas".
A senhora Harts esboça o que parece um sorriso seguido de um pequeno aceno, antes de caminhar para o outro lado da sala e questionar outro aluno.
Não entendo bem o que aconteceu, mas decido desligar a música e prestar atenção a aula. Pelo menos é algo que me lembra que um dia a vida foi boa comigo, por alguns minutos finjo que a minha alma não foi jogada de um precipício sem fim.
***
A hora do almoço quando se está no ensino médio é dividida de duas formas. Hora de ter um tempo para jogar conversa fora com os amigos e paquerar ou hora de se sentir em uma selva com vários animais à sua espreita. Sem dúvida, me encaixo na segunda opção. Eu não tenho amigos e não me interesso em dar uns amassos em garotas fúteis. Desde que o meu avô morreu, cada vez que dei minha confiança a alguém ela foi amassada e jogada em uma lata de lixo. Então acho que aprendi a lição.
É engraçado como as pessoas são iguais e previsíveis, você muda de cidade, de colégio, até de nome se for possível, mas no fundo é tudo a mesma coisa. Diferente da concepção do magnetismo, na escola, os opostos se repelem e os iguais se atraem. Os caras do time estão sempre juntos, assim como os nerds, as líderes de torcida, os roqueiros e todos os outros que são semelhantes.
Enquanto espero na fila para comprar uma Coca, observo o refeitório. Alguns riem, outros cochicham, estudam, entre outras coisas. Por um breve segundo, sinto vontade de saber a história por trás de cada rosto, saber se há alguma trágica e estranha igual a minha ou se eu fui o único escolhido para "sair da rotina" da adolescência. Por breves segundos, sinto saudade de ter com quem conversar, de apenas gastar o tempo com baboseiras e ser normal. Mas como fazer isso sem ter que explicar por que tenho aversão a ser tocado? Por que matei alguém e estou livre? Por que a minha família é tão desestruturada e os meus pais parecem me odiar? Simplesmente não dá.
Chega a minha vez e deixo os pensamentos de lado. Não adianta imaginar como as coisas poderiam ser, elas apenas são como são.
Pego a minha Coca e vou em direção a porta que dá para o pátio externo, rota até o meu esconderijo. É lá onde passo toda a hora do meu almoço, com meus cigarros, minhas músicas e meu espaço vazio. É lá onde me recarrego para a segunda parte do inferno que é frequentar a escola. Onde me blindo para os olhares curiosos, até ofensivos, e as palavras sussurradas quando passo.
Antes de ir para a faculdade, Hillary disse para eu não ligar, que logo eles acham outro assunto para comentar. Na minha antiga escola, ela se meteu em várias brigas por isso. E apesar de pedir que não fizesse nada, de certa forma eu me sentia bem por alguém se importar comigo.
Eu não me importo muito com o que as pessoas pensam ou dizem, desde que não venham me encher de perguntas, estou de boa. Entretanto, é meio difícil ser invisível quando se é o centro das atenções. Justamente por isso não posso ir direto para o meu esconderijo, preciso parar em um local próximo e fingir que estou esperando o sinal tocar.
Sento-me em uma mesa afastada de todos, vou esperar que os olhares saiam de mim, me esgueirar até a porta do esconderijo e finalmente ter paz.
Os fones no meu ouvido cortam os barulhos externos e só reparo que alguém se aproximou quando uma sombra me cobre. Apenas levanto um pouco a cabeça e encontro olhos de oceano me inspecionando. Melissa morde a bochecha internamente e está meio perdida.
— Não preciso que ninguém tenha pena de mim — esclareço, sendo mais rude do que costumo ser.
Ela se espanta e quando vai abrir a boca para retrucar, o seu corpo é puxado para trás com força.
— Me solta — resmunga.
— Relaxa, gata, estava te procurando para continuar de onde paramos no sábado — Calum diz e puxa Melissa para mais próximo dele.
O momento é a minha deixa para sair de fininho e deixar que o casalzinho se resolva.
— Eu não tenho nada para falar com você. — Ela faz uma careta e tenta se soltar.
— Qual é, gata, para de se fazer de difícil.
— Eu não...
— Ah tá, entendi, o esquisitão ali faz mais o seu tipo?
Mesmo de costas para os dois, sei que o esquisitão sou eu. Também sei que já deveria estar longe, mas algo me impede de dar mais um passo.
— Calum, você está me machucando. Me solta.
Fecho os olhos e respiro fundo.
"Isso não é problema meu, eu não tenho que me meter.", repito mentalmente, mas antes de me dar conta, o meu corpo já fez meia volta e está a centímetros dos dois.
— Você não está ouvindo o que ela disse? — digo com a voz irritada e olho diretamente para os olhos do idiota à minha frente.
— Talvez eu seja surdo — ele refuta e puxa Melissa para mais perto.
— Calum, você ficou maluco? — ela choraminga. — Está me machucando — diz mais alto.
— Para de bancar o idiota ou...
— Ou o quê? Vai me matar? — diz pausadamente. Ele cintila raiva e está fazendo isso para me provocar, mas eu também estou com ódio desse imbecil e não vou deixar que as suas palavras me espantem.
Aproximo o meu corpo do seu e sussurro as palavras:
— Acho que sabe que eu não teria problemas com isso.
A sua pose vacila um pouco, mas ele não se acovarda.
— Pode vir. — Empurra Melissa para o lado e ela por pouco cai no chão. — Acha que eu tenho medo de você.
Sinto as suas mãos baterem no meu peito e o meu corpo é empurrado para trás. Antes que eu possa reagir, um soco atinge o meu maxilar e fico tonto por alguns segundos.
— Para! — Ouço um grito e consigo desviar a tempo de evitar outro golpe.
Antes que ele reaja novamente, desfiro um soco que atinge o seu estômago, seus braços apertam o local e ele curva um pouco o corpo. Espero sua próxima reação e rapidamente ele vem para cima de mim. Socos, chutes e golpes são trocados e posso ver que uma multidão se forma ao redor.
Não sei quanto tempo se passa até que sinto minha blusa ser puxada e meu corpo arremessado para trás.
— Mas que merda está acontecendo aqui? — o senhor Dellaira, nosso professor de educação física, berra, ele olha de mim para Calum e não parece nada feliz com a cena.
— Esse assassino — Calum acusa e recebe um olhar feroz do senhor Dellaira.
— Se eu fosse você tomaria cuidado com as palavras, garoto. Já está metido em encrencas demais.
— Senhor, Dellaira, a culpa não foi do Noah, ele só estava...
— Melissa, você está no meio dessa confusão? — ele inquere e ela assente, baixando a cabeça.
"Garota idiota, por que não fica quieta."
— Os três, me acompanhem. O restante, pode ir cuidar das suas vidas, o sinal já vai bater.
Com medo da reprimenda do senhor Dellaira, os alunos rapidamente dispersam. Sem mais nenhuma palavra, o homem alto, capaz de dar medo em qualquer um pelo seu tamanho e porte, começa a caminhar em direção ao interior do prédio.
Pego a minha mochila e apresso o passo para acompanhá-lo.
— Você está bem? — Melissa diz ao meu lado, olho para ela e sua feição está carregada de preocupação e culpa.
— Sim.
— Obrigada. Você não... não precisava fazer aquilo — sibila. — Eu vou explicar que foi o Calum que começou e pedir que eles não te castiguem.
— Ele te machucou? — indago, de repente me lembrando porque de toda essa confusão.
Vejo que Melissa alisa o braço onde ele segurava.
— Eu vou ficar bem, não se preocupe — diz contida.
Suas palavras me dão vontade de parar e quebrar a cara daquele imbecil, pelo menos consegui dar uns bons socos nele.
— Olha, eu sei que não é da minha conta. — Pauso um momento e encaro os seus olhos de oceano, ela parece ver através de mim e isso me assusta. Volto a prestar atenção no caminho à minha frente. — Você é uma garota muito bonita, Melissa, merece coisa melhor que esse imbecil.
— Eu não tenho nada com ele — diz ultrajada e posso dizer até, irritada. — Esse idiota que se acha e não sabe aceitar um não.
— Isso não vai ficar assim, babaca. — Calum passa por nós e bate seu ombro no meu ao tomar a frente. Ele corre um pouco e alcança do senhor Dellaira.
— Apenas o ignore — Melissa pede e continuamos a andar, em silêncio.
O senhor Dellaira nos deixa aos cuidados do diretor Cole, depois de explicar o que houve e se retira.
— Senhor Cole, o Calum estava me segurando pelo braço e me prendendo junto a ele, mesmo quando pedi que me soltasse, o Noah foi ajudar e ele começou uma briga — Melissa desata a falar.
Estamos os três sentados em cadeiras de frente para a mesa do senhor Cole. O homem passa o olhar por nós e para no Calum.
— Isso é verdade?
— Esse assassino ameaçou me matar...
— Cuidado com as palavras, senhor West. Eu perguntei se o que a senhorita Holden disse é verdade. — O diretor o encara, sem paciência.
— Eu só queria conversar com ela.
— E te passou pela cabeça que talvez ela não quisesse conversar com você? Preciso falar com o seu pai?
— Não... — Calum responde rapidamente à menção do pai.
— Espero não ver mais o senhor aqui por esse tipo de problema.
— Sim, senhor — cospe.
— E quanto a você, senhor Hughes, ameaçou o senhor West de morte?
— Sim.
Mel suspira exasperada ao meu lado.
— Senhor Cole, não foi bem assim. O Calum provocou o Noah com isso, por causa... de um... — sua voz vai ficando falha.
— Já entendi, senhorita Holden. Já chega desse assunto. Os três vão ficar uma hora a mais no final da aula. Encontrem a senhora Harts na biblioteca e a ajudem com os livros novos.
— Mas, senhor Cole, eu não posso ficar... — Calum reclama.
— Pensasse antes de se meter em confusão — o diretor rebate. — Já acabamos, voltem para as suas salas e agradeçam por não chamar os seus pais e aplicar uma suspensão.
Perfeito, uma hora a mais nesse inferno.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro