Capítulo 6
Narradora on
Stella estava mais à frente junto aos três de sempre, Jason olhava para todos os cantos, afinal, nunca tinha visto uma casa tão grande e tão aconchegante, chegava a ser engraçado a disparidade entre aquele lugar e onde morava. Alec ao seu lado mantinha o sorriso no rosto, depois de ter mirado todos os cantos da casa rapidamente, aquele sim era um ótimo dia, mas seu sorriso diminuiu um pouco ao lembrar da primeira consulta com a nova psicóloga, abanou um pouco a cabeça e acabou mirando o garoto ao seu lado, que estava parecendo uma criança quando vai ao parque de diversões pela primeira vez e não pode conter que um pequeno riso escapasse de seus lábios. Os corredores da casa os levaram para a cozinha, onde mais alguns empregados estavam trabalhando, todos foram cumprimentados pelos gêmeos maravilha, Stella, Dylan, Roosevelt e McCartney, os dois últimos o fizeram mais timidamente e foram apresentados aos presentes. A mesa para o almoço estava sendo posta e os adolescentes tomaram seus lugares à mesa e dando início a refeição.
- A comida da Michelle é simplesmente incrível e dá pra notar que todos concordam só pela cara de vocês. - Oliver se pronunciou com um sorriso doce enquanto passava os olhos por todos os presentes.
- Não dá pra negar o quão incrível isso tá, se um dia a Michelle magicamente vier a desaparecer eu assumo a responsabilidade pelo sequestro. - Jason respondeu sorrindo para o mesmo e recebendo algumas gargalhadas dos outros.
O almoço seguiu em um clima agradável e cheio de trocas de olhares que em sua maioria carregavam muito significado, acolhimento, carinho, felicidade, amor e alguns olhares indecifráveis, aquele era um lugar seguro para aqueles que não tinham refúgio. A comida era muita, mas é claro que os garotos conseguiram dar conta de uma boa parte dela. Poucos instantes depois a sobremesa foi servida e naquele momento Ashley estava tão presa em seus pensamentos que não interagiu mais com os outros, mas aquilo não era estranho então os garotos continuaram a comer o bolo até que em algum momento Oliver e Dylan iniciaram uma conversa sobre estarem próximos ao seu aniversário de namoro. Todos estavam em seus mundinhos, com a exceção de Jason e Alec que sorriram um para o outro e engataram em um assunto qualquer, mas em algum momento da conversa os olhos e o rosto por completo do garoto a frente de cada um se tornou muito mais interessante, não sabiam a quanto tempo tinham seu olhar focado no outro. O primeiro a quebrar o contato visual foi Alec que olhou para o lado e forçou uma tosse chamando a atenção de todos os presentes.
- Bom, eh, deu meu horário, eu vou indo agora, depois eu venho pra cá. - Se levantou mesmo com os protestos de seus amigos e os abraçou um por um, quando foi abraçar a Jason sentiu um pequeno choque correr por toda a sua pele, mas por algum motivo aquilo foi estranhamente bom. Colocou a mochila sobre um dos ombros e seguiu até a porta. - Tchau, até mais tarde. - E então a porta se abriu, deixando que o corpo bonito de Alec passasse por ela e voltasse a fechar tão rápido quanto foi aberta.
- Então. - Ash chamou a nossa atenção enquanto abria um sorriso de criança que vai fazer besteira. - O que vamos fazer antes do Alec voltar? - Questionou passando seus olhos por todos nós.
- Eu nunca? - Dylan sugeriu enquanto puxava o namorado para mais perto. Quando as palavras escaparam de seus lábios leves e sem pretensão o rosto de Ashley se contorceu em uma expressão maliciosa, algo havia passado pela mente daquela garota e aparentemente não ia ser nada bom.
- Sem o Alec a gente faz com suco, mas quando ele chegar, a gente podia fazer com vodka ou tequila, qualquer coisa que deixe o jogo realmente emocionante. - Disse sorrindo e lançando um olhar discreto a Dylan e a seu irmão, que passou despercebido pelo mesmo, mas não por Oliver que sorriu com a irmã. - Ou quando ele chegar podemos só jogar verdade ou desafio, mesmo que sem querer as coisas sempre ficam mais divertidas jogando isso. - Constatou recebendo afirmações de todos ali presentes, mas ninguém naquela sala podia prever o que aquele jogo guardava para si.
Saíram da sala e foram até a cozinha pegando três garrafas de suco sob o olhar atento de Stella, ela não faria nada para impedi-los, a menos que as crianças fossem fazer algo que pudesse prejudicar a si ou a seu emprego, sabia que apesar daqueles gêmeos serem completamente desmiolados, eles eram extremamente responsável e esse era um dos maiores motivos pelo seu apreço por eles. Os quatro já haviam se perdido dentro de um universo só deles que nem perceberam ter criado, estavam tão distantes que todos ao seu redor eram praticamente invisíveis, as longas escadas silenciosas e pouco ocupadas da casa foram preenchidas por quatro adolescentes com níveis elevados de serotonina e gargalhadas não tão comuns. Jason estava praticamente no céu com aqueles três, só faltava o Alec ali, mas estava tão feliz que mal se lembrava dele. É impressionante a mudança que algumas poucas pessoas podem fazer na vida uma das outras em tão pouco tempo, para o bem ou para o mal e uma única vez em tantos anos, McCartney estava experimentando aquilo para o bem. O sorriso verdadeiro e lindo no rosto daquele menino que antes vivia com uma expressão morta ou com lágrimas correndo suas bochechas era algo simplesmente impressionante, se Jasmin o visse naquele momento não acreditaria que era o mesmo garoto que estava chorando compulsivamente em sua sala no dia anterior, se Jasmin pudesse saber de tudo ela riria muito ou choraria horrores ao descobrir que seu novo paciente tão deprimido era quem ajudou seu antigo paciente a apresentar uma melhora significativa em apenas algumas horas. Mas também diria que aquele poderia ser apenas um falso avanço, um pico momentâneo de serotonina e endorfina, nada pelo que se deva comemorar e sim temer, porque é o mesmo efeito das drogas, porém com pessoas, tornando-o inseguro com a possibilidade de um abandono.
Apesar de estar extremamente animado ele sabia que logo estaria na sala de Jasmin e apesar de ter coisas incríveis para contar, sabia que ali todas as suas inseguranças, em relação às pessoas de quem havia se aproximado em apenas um dia, iriam desabrochar tão depressa quanto os botões de flores na primavera e sabia que não estava pronto para lidar com tudo isso de uma vez. Sabia que tudo aquilo poderia ser só um surto repentino, que no próximo dia Alec poderia ter se resolvido com o McCauley, tudo isso poderia ter sido uma aposta e se fosse, ele estava caindo como um patinho.
Confiança, o significado literal dessa palavra é crer em outra pessoa, na sua moral, lealdade ou qualquer coisa do gênero, mas para Jason, aquela era apenas mais uma palavra no meio de tantas outras presentes em seu vasto vocabulário, uma que tinha perdido seu significado ao longo dos anos, apenas Jasmin lhe lembrava o que aquela palavra queria dizer, somente naqueles curtos encontros que eles tinham. Dentro da sala da psicóloga era diferente do resto do mundo, o único lugar onde nada de ruim lhe aconteceu, o único lugar ao qual era bem vindo. Alec, Ashley, Oliver e Dylan lhe davam vontade de voltar a entender aquela palavra, mas apenas algumas horas não cobrem marcas de uma vida inteira, poderia estar ao redor deles, rir com eles, e adorá-los, mas não poderia deixá-los entrar tão facilmente em sua vida, não depois do que aqueles desgraçados haviam feito, por mais gentis que fossem as pessoas, ainda podiam ser uma ameaça escondida, reprimida e sabia bem disso.
Humanos são cruéis, independente de tudo, sem motivo, sem razão, sem porque, eles simplesmente são e pessoas são falsas, teatrais, para dizer o mínimo, sabem se esconder bem atrás de máscaras e sabem melhor ainda machucar umas as outras pensando apenas no benefício próprio. Apesar de todos serem criativos, são extremamente previsíveis e ridículos. Jason sabia bem o mal que as pessoas podiam fazer, só não tinha noção de que Alec sabia melhor ainda, não sabia que Roosevelt era um mentiroso nato, um ator fantástico, tudo isso ele teve que aprender apenas pra viver, mas isso McCartney não sabia, justamente pela qualidade de Alec, só era possível se notar as inúmeras rachaduras daquele menino se o próprio lhe deixasse ver, caso contrário, veria apenas um garoto bonito, feliz e corajoso, um grande equívoco e como todos os outros Jason estava o cometendo. Após algumas rodadas de eu nunca seu celular vibrou, um indício de alguma mensagem chegando, um acontecimento um tanto quanto raro. Assim que viu de quem era a mensagem apenas ignorou, era seu pai, o garoto obviamente pensou que ele só estava lhe pedindo desculpas por ter de estender sua viagem por mais um mês, outro equívoco, o celular voltou a vibrar algumas vezes, se cansou de tanta insistência, então pediu para ir ao banheiro e rumou até o lugar, onde parou para realmente ver o que seu pai tanto queria com ele.
"Oi, filho, sei que eu e sua mãe não temos falado com você essas semanas, desculpe por isso, mas saiba que nós sentimos sua falta."
A mesma ladainha de sempre, agora ele vai pedir desculpas por terem que ficar mais tempo e o garoto vai passar praticamente um mês tendo notícias apenas nas revistas.
"Nós sabemos que é difícil para você ficar tão sozinho."
Se sabem por que ficam tanto tempo sem nem mandar uma mensagem? Por que simplesmente me abandonam como se ele fosse lixo ou simplesmente descartável?
"Enfim, eu trouxe notícias boas dessa vez, vou ter que passar um tempo em São Francisco por causa do meu emprego, estamos chegando em casa em dois dias."
Sabe quando uma bomba é jogada no seu colo do nada e o seu mundo desaba? Foi exatamente assim que Jason McCartney se sentiu naquele exato momento. Os merdas dos seus pais iriam voltar pra casa para passar bastante tempo por causa da porra de um emprego, claro que não voltariam por um filho insignificante como ele pensava ser. Toda vez que seus pais voltavam para casa, ele ficava completamente preso, não podia fazer nada, seus pais não o conheciam e não ligavam para conhecê-lo, afinal, dinheiro deveria ser suficiente para suprir as necessidades de seu filho. Nesse tempo que eles passassem na cidade, ele teria de forçar sorrisos, fingir ser hétero, fingir que tudo estava bem na escola, fingir tudo, forçar tudo, calcular cada passo, cada respiração, um passo em falso e seu trabalho de anos poderia ser destruído, um passo em falso poderia acabar com tudo. Porém ao mesmo tempo que seria difícil mentir tanto, fingir tanto, ele mal veria os pais, a menos que inventassem aquelas festas ridículas em que ele tinha que passar à noite fugindo do Josh em segredo quando os pais de ambos queriam que fossem próximos e achassem que eles só não se davam, mal podiam imaginar o que o McCauley fazia com o pobre garoto.
"Que legal, pai, mal posso esperar pra ver vocês"
Assim que clicou no botão de enviar sentiu um choro preso em sua garganta e soube que não dava mais pra segurar, seus pais estavam voltando e pelo tempo que eles estivessem aqui, Jason McCartney teria de ser alguém que ele não era de verdade há anos, o menino alegre, extrovertido e cheio de amigos que seus pais achavam que ele era. Mas no fundo do seu coração, ele queria falar a verdade pra eles, queria ter coragem pra isso, xingá-los, gritar tudo que guardou por anos, mas não sabia se conseguiria encarar toda a dor que isso iria causar. As lágrimas salgadas corriam pelo seu rosto aos montes, praticamente atropelando umas às outras, mal dando tempo para o garoto respirar, o choro é engasgado e sofrido de uma forma que doeria no coração de qualquer um que tivesse visto a cena, a dor que ele demonstrava sentir era grande demais para apenas uma pessoa carregar. Após algum tempo lá trancado ele finalmente conseguiu cessar o choro e disfarçar que passara os últimos dez minutos chorando no banheiro, apareceu de volta com um sorriso no rosto e para sua tristeza ou felicidade, ninguém suspeitou de nada quando ele deu apenas uma desculpa do porquê de sua demora.
E assim ele se perdeu dentro do seu mundinho mais uma vez...
[Flores das Pedras]
Nervoso. Era exatamente assim que Alec Roosevelt se sentia naquele momento. Enfrentar uma nova cidade onde podia fingir que nada do que havia acontecido era real é uma coisa, mas ir para uma sala onde teria que encarar tudo aquilo de uma vez junto a uma desconhecida era outra bem diferente. Tudo que ele havia passado ainda era muito vivo em sua mente e apesar das psicólogas do centro de adoção terem lhe ajudado era horrível ficar mudando tanto a pessoa que devia auxiliá-lo a passar pelo trauma, muitas vezes não dando tempo suficiente para que fosse criada uma confiança real com o ou a profissional ou então para que ele não sentisse nenhuma intimidade ou aproximação com a pessoa em quem devia realmente confiar. Alec podia ser o jovem mais incrível que muitos psiquiatras e psicólogos já viram, por conseguir não só sobreviver ao trauma como fazer de tudo para não deixar que aquilo o consumisse, mesmo que a segunda parte fosse composta apenas por tentativas falhas já era um avanço muito maior do que se ele entrasse em algum tipo de estado de auto piedade, que era exatamente de onde muitos não saiam.
- Alec Roosevelt? - Após alguns minutos que se passaram como horas em sua cabeça, ele finalmente havia sido chamado. Apesar de todo o nervosismo presente em seu interior tentava transparecer uma imagem calma e feliz, apesar de isso ser só um papel, já tinha o representado tantas vezes que eram raras as pessoas capazes de distinguir quando o garotinho que escapou realmente estava bem e quando estava mais oco do que o normal porém tentando escapar da realidade. Após uma curta caminhada finalmente achou a porta a qual deveria adentrar e foi aí que seu corpo simplesmente não quis mais, tentava levantar a mão, mas era como se fosse pesada demais para si, ele não conseguia, não conseguia mesmo, alguns pacientes o encararam com dúvida, mas quem eram eles para julgarem o garoto? As únicas coisas que conseguia sentir naquele momento eram o suor que escorria por todo o seu corpo, tomando cada centímetro dele e as fortes e aceleradas batidas do seu pobre coração. Alguns segundos se passaram e a porta foi aberta por uma mulher latina, linda, cabelos longos e escuros presos em um coque perfeito e olhos castanhos como chocolate ao leite brilhando, uma feição calma e um sorriso sem mostrar os dentes dando destaque ao seu batom nude, abriu a porta e se encostou nela dando espaço para que passasse.
- Oi, Alec, seja bem-vindo, eu sou a Jasmin. - Falou lhe ofertando um sorriso maior ainda, apesar de já saber o nome dela ele sabia que era apenas uma mera formalidade. - Pode entrar. - Então finalmente saiu de seu mundinho de tensão pra enfrentar aquele mais novo desafio, ofereceu a ela um sorriso e um aceno de cabeça simples, apenas para agradá-la e ser educado, mas seu sorriso foi vacilante e aquilo não passou despercebido pela mulher que apenas deixou de lado enquanto o garoto entrava em sua sala. Instantes depois ambos estavam sentados frente a frente, Jasmin se encontrava claramente tranquila e confortável enquanto observava-o tentando captar cada detalhe e cada reação apresentada por ele, o mesmo se encontrava extremamente inquieto e tenso, sem nem conseguir olhá-la nos olhos e aí ela sabia que tinha muito mais coisas do que a própria mãe, psicólogos anteriores e polícia haviam lhe passado, aquele menino viveu um inferno. Não bastasse o inferno que viveu, foi obrigado a sobreviver e se culpou pela morte do irmão, ele tinha tudo tão evidente e escondido ao mesmo tempo e era exatamente isso que preocupava-a, o que ele tanto escondia?
- Bom... Acho que você já leu os relatórios, certo? - Perguntou apesar de ter plena certeza de qual seria a resposta, apenas uma parte desnecessária do protocolo que nunca conseguiu se livrar. Quando a mais velha finalmente confirmou, todo o ar que nem sabia que estava prendendo escapou de seus pulmões com grande facilidade e agilidade e seu olhar apenas se direcionou mais para baixo. - Então por que não pergunta o que quer saber ou fala o que pensa? Eu sei que depois de ler aquilo tudo pelo menos alguma dúvida ou constatação você fez, para se dizer o mínimo do que eu espero... - E ali estava o garotinho frágil que não conseguia olhar nos olhos das pessoas, que fugia dos valentões, que dependia do irmão e que abruptamente teve seu irmão arrancado de si por nada, que viu seu irmão morrer e não pode fazer nada para ajudá-lo, a criança que precisava de todo cuidado e amor do mundo e nem assim seriam suficientes para suprir aquilo que lhe aconteceu.
- Claro, você tem toda razão. - Disse olhando-o e vendo que finalmente seu olhar havia sido devolvido. - Mas que psicóloga eu seria se só acreditasse em registros feitos por outras pessoas ao invés de perguntar diretamente para você o que aconteceu? - E foi nesse momento em que viu a surpresa estampada na face do pobre garoto, acho que poucas pessoas haviam realmente o perguntado diretamente o que aconteceu e apesar de ser algo extremamente doloroso, se ele mesmo não confia em nela para contar lhe algo desse calibre, não vai confiar o suficiente para contá-la grande parte das coisas que não falou para ninguém e do que acontecer de agora em diante. Hesitante e inseguro, nada poderia descrever melhor alguém do que aquelas palavras descreviam Alec no momento, ele entendia mais ou menos o que ela queria com aquilo, mas isso não fazia ser mais fácil.
- Ok, você tem razão, é você tem razão. - Falou mais tentando se convencer daquilo do que realmente concordar com ela. Após isso ficou alguns minutos em silêncio perdido na própria mente, afinal era o único lugar em que podia se perder sem ninguém notar. Passados exatos quatro minutos desde que ficou estático por fora e correndo por dentro puxou uma quantidade significativa de ar antes de começar a falar.- Bem, tudo começou cedo demais e aconteceu rápido demais, uma hora meu pai era o melhor do mundo, meu herói, uma das pessoas que eu mais amava e na outra ele me odiava de um jeito que nunca entendi e por muito tempo já que... - Ali estava, a maior trava emocional dele, provavelmente era o irmão e mais compreensível que isso era impossível, naquele momento as lágrimas surgiram rapidamente em sua face e começaram a cair com mais velocidade ainda, logo Jasmin o oferecia uma caixa de lencinhos, para que soubesse que podia continuar. - Desculpa, falar do David ainda é muito difícil, ele não viveu a vida dele, passou ela toda tentando me proteger do Adam e conseguiu na grande maioria das vezes, quando ele ia finalmente ter uma chance, quando nós íamos finalmente ser livres daquele... Monstro. - Em todos os seus anos como profissional da área nunca ouviu algo ser falado de maneira tão sombria, ao ponto de seus próprios ossos se arrepiarem apenas com a menção a aquela palavra. - Ele tirou tudo da gente, tudo e nossa "mãe" - Fez as aspas com as mãos. - Só assistiu e aceitou, ela ficou do lado dele, ela o deu a razão, disse que éramos errados, que éramos o problema, eu posso até ter sido o maior problema da vida de David, ele se colocou em coisas terríveis pra eu ter a melhor vida possível, mas nem por isso ele me fez mal, ele nunca encostou um dedo em mim e tudo de ruim que ele me falou foi quando ele surtou porque ele também era humano e agora ele está enterrado do outro lado do país enquanto eu tô numa sala de uma psicóloga reclamando da vida e falando dos meus problemas. - Falou praticamente num fôlego só e Jasmin corria para fazer suas anotações a respeito dele, a respeito de tudo e de fato, aquele menino é um sobrevivente, porque tudo que ele já passou faz com que realmente duvide da capacidade humana de amar ao mesmo tempo que a confirma pelo que o irmão de Alec fez pelo mais novo.
- Eu não mereço viver enquanto David está morto, ele morreu por mim, morreu por nós, morreu para eu poder escapar daqueles dois e ir para um lugar com amor, ele morreu para eu ter a vida que sempre desejamos mais que tudo. - Deu apenas uma pequena pausa para respirar. - Eu não consigo viver sabendo que ele nunca vai ter tudo aquilo que sempre precisamos, eu não acredito que meu irmão realmente precisou morrer pra verem que algo acontecia na minha família. - Agora ele estava exaltado e a psicóloga só esperava que ele colocasse para fora de fato. - A PORRA DO MEU IRMÃO PRECISOU MORRER PRA AQUELES DOENTES IREM PRESOS. - Respirou um pouco antes de continuar. - Você sabe o que é ser estuprado, Jasmin? Ser espancado? Você sabe o que é ver alguém violentar a pessoa que você mais ama, a pessoa que fez de tudo por você bem na sua frente? - Parou apenas para esperar a resposta da mais velha que veio em um aceno negativo e continuou, dessa vez com a voz quase inaudível. - Você sabe o que é ser marcado? Marcado como a porra de um animal. O que é ser tatuado à força? - Até que finalmente voltou a um tom bem mais alto, apesar de não chegar a serem gritos. - Toda vez que eu vou me trocar ou me lavar em um lugar com espelho sou obrigado a relembrar de tudo aquilo, então não, eu não superei e nem vou superar, eu posso um dia conseguir conviver com isso, mas mesmo que eu viva eternamente, eu nunca vou conseguir superar a porra dos primeiros dezesseis anos da minha vida, em especial o caralho da morte do meu irmão, eu nunca vou conseguir saber que aquele animal ainda está vivo e David está morto. De todas as quase oito bilhões de pessoas do mundo, ele era uma das que não merecia morrer de uma forma que não fosse natural, ele merecia tudo. - Parou para tentar conter as lágrimas, apesar da dificuldade o garoto conseguiu respirar fundo e se acalmar pelo menos um pouco, sem escapar por nenhum mísero segundo do olhar da mulher.
- Você teria gostado do David, bem mais do que o pouco que gostou de mim, eu sou um erro, eu sempre fui um erro, talvez sem mim ele tivesse tido uma ótima e longa vida, mas não foi assim que aconteceu... - As lágrimas pararam de pedir licença para cair fazia bastante tempo, mas agora ele só assumiu a tristeza, a tristeza pura, sem raiva, sem ódio, só a mais profunda e simples tristeza. - Ele era um gênio na escola, popular, lindo, incrível, meu irmão era uma espécie de protótipo de perfeição, eu nunca esperei nada dele a não ser amizade e um pouco de amor e ele sempre estava disposto a fazer mais e ser melhor, porque sabia que eu precisava dele, mesmo que ele não precisasse de mim tanto quanto eu precisava dele, ele sempre esteve comigo, fazendo o possível e impossível por mim, eu não seria capaz de acreditar no amor se não fosse por ele, até com ele tendo passado pela minha vida eu acredito pouco no amor, sem ele eu não teria sentido e provavelmente nunca viria a crer nele. - Após aproximadamente vinte segundos de um silêncio frio e sombrio Jasmin entendeu que ele havia despejado pelo menos parte daquilo que precisava falar, sabia que ele ia se arrepender porque soltou tudo num surto, ele nunca havia contado a ninguém sobre aquilo, não naquela proporção, tinha que tratar pra ele não se arrepender de ter falado para si e sim aliviado, porque se ele não falasse tudo aquilo ou iria explodir ou iria surtar ou faria alguma besteira muito grande, se é que não tinha tentado fazer.
- Alec, olhe pra mim. - Pediu em uma voz calma e tranquilizadora, fazendo com que o mesmo obedecesse rapidamente, quando seus olhos encontraram os do menino viraram uma dor, uma tristeza e uma angústia tão fortes que podiam ser sentidas apenas olhando para aquelas orbes escuras tão carregadas. - Eu de fato não sei o que é passar pelas coisas as quais você citou, mas fazem anos que eu estou nesse ramo e como profissional de uma área tão humana e tão diversa, eu já tive tantos pacientes que passaram pela maioria das coisas que você falou separadamente ou algumas delas juntas, mas nunca conheci alguém com tantos traumas quanto você e ainda vou precisar ler mais e te conhecer mais pra poder fazer o meu melhor por você. - Pausou e viu uma esperança brilhante no olhar dele, a atenção que dedicou a aquela mulher foi extraordinária. - Apesar de ainda precisar entender mais sobre você e sua situação, eu sei que você merece viver, muito, se seu irmão era a pessoa que era e abriu mão até da própria vida pelo amor que tinha por você, você foi o amor da vida do seu irmão, não de forma romântica, longe disso, foi de você que ele cuidou, foi você que ele amou, então me diga, Alec, como você se sente sabendo que seu irmão te amava tanto assim? - O garoto não respondeu nada, só caiu em um choro engasgado e continuo indo em direção a Jasmin para abraçá-la e apesar do susto inicial ela aceitou tranquilamente e ficou ali fazendo carinho em seus cabelos até o fim da sessão. - Eu sinto muito Alec, mas nosso tempo acabou, eu vejo você na terça? - Ele apenas se levantou e a enxugou as lágrimas e acenou para ela enquanto saia pela porta. Jasmin só lembrava de Jason ao vê-lo, dois jovens maltratados pelas pessoas de quem precisavam tentando sobreviver a si mesmos.
Apesar de todas as lágrimas que ele derramou dentro daquela sala, saiu de lá se sentindo muito mais leve do que achava que poderia, mal podia acreditar que alguém não achava que ele tivesse culpa de nada ou que não tivesse apenas pena dele, nenhum dos profissionais anteriores afirmaram ter esses sentimentos, mas como bem dizem, os olhos são as janelas da alma e por eles nós acabamos transmitindo bem mais do que nós queremos ou mais do que pensamos, afinal ninguém consegue controlar totalmente os sentimentos, algumas pessoas apenas sabem disfarçar melhor que outras, mas não existe uma pessoa que consiga detê-los por completo, afinal eles são como água, sempre transbordam por alguma fresta.
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