Seu breve retorno à realidade
Sentia o rosto molhado pelas lágrimas. O vento trazia o pó seco do chão e da terra, tornando o ar difícil de respirar e a sujeira colada nos rastros salgados de sua pele.
Ainda não conseguia acreditar que ele havia a desprezado daquela maneira, pegado o pedido de apoio e o jogado no chão com olhos de escárnio.
Um leve formigamento tomou seu braço direito, um misto de coceira com insensibilidade, mas estava tão distraída que sua preocupação durou segundos.
O caminho até a Residência Park estava despovoado, os servos do palácio haviam se retirado para dormir e recuperar as energias para o amanhã atarefado. A princesa gostaria de ser capaz de fazer o mesmo: Ver o sol se pôr, pegar suas coisas e retornar para a sua casa, no campo, longe dali.
Voltara a chorar sem nem mesmo perceber, caminhava em seu desfoque, vendo tudo com um filtro borrado. Queria gritar todo o ar que seu pulmão acumulava. Gritar até não ter mais voz.
A mente parecia estar pregando peças em seu coração e gerando sentimentos e conflitos tão profundos que ela sequer era capaz de decifrá-los. Um acúmulo de sensações e dores, muitas dores causadas por sentimentos e que doíam como se fossem machucados físicos.
- Princesa! – Os guardas se aproximaram e ela nada disse, não havia forças para buscar pelas palavras certas ou para apenas os mandar embora. – Está tudo bem? Veio sozinha? – Hee-Ah os olhava sem os ver, suas vozes não eram altas o suficiente e não conseguiam sequer competir com a sua mente.
Passando por ambos, caminhou lentamente até a casa, subindo os degraus com dificuldade. Uma dor de cabeça mordaz a tomou e tudo girou, a fazendo se desequilibrar e bater contra um dos pilares. Seu ombro esquerdo doía com o choque, ela se segurou na madeira e então olhou para sua mão direita, vendo sangue vivo ali, escorrendo pelo seu braço, contornando seus dedos e então gotejando no chão.
O que era isso? Piscou algumas vezes e então engoliu em seco, erguendo a manga da jaqueta com rapidez e buscando pelo ferimento, apenas encontrando sua pele macia e inteira. Olhou para a mão novamente e nada, nenhum sinal do sangue.
- Eu estou ficando louca... – Sussurrou, sentindo o coração acelerar. E se eles estivessem certos? E se sua mãe realmente fosse louca e isso passasse para a filha? Desde que chegara, incidentes como esses aconteciam! O que deveria fazer?
- Princesa! – A voz de So-Yong soou imediata e arfada, fazendo com que Hee-Ah se virasse para olhá-la.
- Por que demorou tanto? – Sua visão estava ficando mais clara e o formigamento sumira. Olhava para sua mão e não via nada. Tinha sido um mero devaneio?
- O médico não se encontra no palácio há 5 dias, parece que recebeu uma carta da família, seu filho passou mal e ele teve que retornar a aldeia dele.
- E como a Rainha está sendo cuidada?
- Em sua ausência a enfermeira chefe assume suas responsabilidades, eu descobri onde ela mora.
- Vamos.
- Agora? – A dama da corte arregalou os olhos e olhou ao seu redor. – E se te virem?
- Sairemos pelo meu jardim, preciso das suas roupas So-Yong.
- Das minhas... C-Certo. – Correndo para a lateral da casa, sua amiga sumiu na noite, deixando a princesa voltar aos seus pensamentos, sentindo sua cabeça voltar a latejar, sentia-se mole e confusa, mas aquele borbulhar de sentimentos havia diminuído, era como se sua solidão a levasse para longe e ao mesmo tempo sentia que era um lugar que conhecia.
Se estava realmente começando a ficar louca, precisaria de um diário para anotar o que acontecia e poder aprender a esconder os sintomas. Não deixaria o nome da família ser amaldiçoado.
Em seu quarto, passava a se despir enquanto aguardava por So-Yong, iria se disfarçar e assim ninguém repararia nela, enquanto sua dama continuasse com roupas de nobre, ela seria apenas um vulto que a seguia.
- Princesa.
- Aqui, precisamos ser rápidas. – Se vestiu rapidamente e fez um coque baixo em seu cabelo, mostrando sua classe social inferior. – Vamos. – Disse e saíram novamente.
Correndo até o seu jardim pessoal, viram o pequeno morro se erguer sutilmente da madeira do chão até conectá-lo ao bosque do palácio. Pedras e rochas decoravam o caminho, três árvores foram plantadas dentro da Residência Park, troncos finos e altos, suas folhagens verdes pareciam escuras pelo céu noturno. A terra era coberta por grama e musgo, principalmente ao redor das rochas, deixando o terreno um pouco escorregadio. Durante o dia parecia ter um ar místico que acelerava seu coração, mas durante a noite parecia ser um local assombrado.
- Vamos passar pela cerca e ir para o bosque, de lá sairemos perto da rua do comércio. – Sussurrou e viu os olhos de sua dama se arregalar.
- Como a senhora sabe do caminho?
- O príncipe me ensinou. – Lembrar-se dele vindo buscá-la machucou já que dessa vez ele a fez ir. – Vamos.
Não foi difícil subir, mas assim que atingiram o topo se depararam com guardas plantados pelo bosque a mandado de seu irmão, ele havia dito que estava de olho nas possibilidades de ataques...
- Droga. – Sussurrou.
- Droga? – So-Yong repetiu e estranhou a palavra, o que fez a princesa não reconhecer mais o que havia acabado de falar.
- Preste atenção aonde pisa, não podemos ser vistas. Silêncio absoluto. – Disse passando a andar meio agachada, sempre olhando para trás para ver se sua dama estava conseguindo acompanhá-la.
Um caminho lento e assustador. Sentia seu coração bombear na sua garganta, fazendo os sons serem abafados e a assustar sempre que dava um novo passo.
Os guardas permaneciam parados, conversando entre si, as mãos pousadas em suas armas, prontos para qualquer luta. Havia muitos para o medo de seu irmão, sentia que segredos rondavam o palácio, coisas que ninguém queria que ela soubesse, mas que faziam o possível para proteger.
- So-Yong. – Pararam de caminhar e então se agacharam frente a frente. – Me conte a verdade, o que está acontecendo no palácio?
- Como assim, princesa?
- Olha a quantidade de guardas! Algo está acontecendo! Não pode ser apenas pelo incidente da minha vinda até aqui. Tem algo a mais.
- Princesa...
- Não minta. – A cortou e então sua dama abaixou a cabeça, olhando para as mãos que seguravam o vestido.
- Tentaram matar o Rei durante a lua de sangue.
- E ninguém pensou em me contar isso?
- Não podíamos, o Rei mandou fingir que nada disso havia acontecido, o povo não podia ficar sabendo que existia uma ameaça ao reino. – Olhando para os guardas, se inclinou mais para a princesa e a olhou nos olhos. – Desde então o príncipe Sejong redobrou as guardas e depois da emboscada sua paranoia crescera.
- Como assim?
- Ele tem vigiado os servos, um por um, investigando suas vidas, ações e famílias... Ele acha que há um inimigo entre nós.
- Quem está aí? – Um guarda gritou calando as duas mulheres, a princesa puxou So-Yong, se arrojando pelo chão até ficarem cobertas por um tronco caído.
Esperaram os passos diminuírem, os corações palpitando no peito, o medo de serem descobertas e levadas até Sejong era aterrorizante, o que ele falaria? O que ele faria com So-Yong? Arrependida de tê-la colocado nessa enrascada, Hee-Ah não podia errar, ou a açoitariam para ensinar à princesa uma lição.
- Deve ter sido um animal, vamos voltar às nossas posições. Não baixem a guarda! – O homem gritou e então os passos se afastaram, fazendo Hee-Ah cair sentada no chão, levando as mãos ao rosto. Estaria ela perto do ápice? Sua cabeça doía muito, como se alguém estivesse a pressionando...
Que loucura é essa? O palácio estava cheio de segredos e problemas, como conseguiram esconder tudo dela assim? Por que fizeram isso? Sentia-se abandonada, um fardo! Ela era a princesa e seu pai havia sido atacado! Como não acharam importante avisar a filha dele? Respirou fundo e olhou seus sapatos sujos de terra e folhas. Primeiro iria resolver o problema de sua mãe e então buscaria por mais respostas sobre o ataque ao Rei. Tinha que manter uma ordem, não conseguiria fazer nada se quisesse cuidar de tudo ao mesmo tempo.
- Vamos. – Disse se pondo de pé, segurando o vestido e passando a andar. Quando não eram mais capazes de ver os guardas, passaram a correr, dando na lateral da rua do comércio, a saída do vilarejo do reino.
- Mostre o caminho. – Disse à So-Yong que rapidamente passou a correr entre as casas e Hee-Ah apenas a seguia.
Não podiam a ver assim, sem escolta. Se o palácio estava com inimigos, eles poderiam estar em qualquer lugar e seu irmão estaria certo, ela corria perigo sozinha... Mesmo vestida como plebeia, seu rosto era conhecido por todos.
Chegando ao outro lado do comércio, bem na entrada do vilarejo, So-Yong apontou para uma casa pequena e escura. Telhado de sapé e paredes brancas sujas. As janelas estavam fechadas, mas a porta estava entreaberta.
- Isso é estranho, não? – Sussurrou para sua dama, dando um passo à frente, mas tendo seu pulso segurado por So-Yong, o que poderia ser classificado como desrespeito, mas Hee-Ah não ligava para isso.
- Não entre, princesa. – Sussurrou, seus dedos gélidos sobre sua pele. – Não estava assim quando saí.
- Se alguém a atacou é nosso dever ver se ela está bem. – Olhou para a porta novamente e tentou dar mais um passo, mas sua dama não a soltou, balançava a cabeça em negação pedindo para não fazer. – So-Yong, se alguém a machucou a culpa é minha, fui eu quem a coloquei nessa posição. Por que a realeza estaria entrando em contato com ela?
- Vamos embora princesa.
- Não. – Puxou para si seu braço e caminhou até a porta, a empurrando com força e vendo a casa perdida numa bagunça. Tudo que estava no armário fora derrubado no chão. Suas roupas e arranjos de cama pisados e sujos.
- Oi? – Sussurrou e então entrou. Seus olhos se ajustavam pouco a pouco à falta de luz. – Enfermeira chefe?
Aproximou-se dos livros que ficavam ao lado da porta sobre uma mesa retangular, mas agora metade estava no chão. Lia os títulos, vendo que eram todos sobre medicamentos e técnicas de medicina, pareciam velhos e usados. Pegando um nas mãos, folhas de anotação caíram sobre seus pés, ela estava pesquisando sobre algo em específico, algo relacionado à cura de venenos.
- O que isso quer dizer? Alguém está sendo envenenado? Ela pretendia envenenar alguém? – Dobrou o papel e o guardou entre suas vestes, dando passos para trás e então tropeçando em algo.
Hee-Ah havia caído sobre as cobertas da enfermeira. Sentiu medo de se mover, era como se sua intuição soubesse exatamente o que encontraria se se movesse. Um enjoo subiu pelo seu estômago até a garganta, queria vomitar só com a ideia.
As mãos tremendo se ergueram do chão e seu corpo se inclinou para frente, bem aonde havia tropeçado, segurando com a ponta dos dedos a coberta suja. Era necessário saber o que estava embaixo da coberta, era sua responsabilidade.
Erguendo o tecido devagar, parecia que seus olhos eram capazes de olhar melhor ao seu redor, as coisas foram ficando mais vivas e coloridas. Seria o medo?
Assim que foi capaz de ver de relance o pé da enfermeira, abaixou a coberta e se virou, vomitando. O medo havia a tomado, queria gritar, mas estava paralisada no chão, tremendo como um animal no inverno.
Ela estava morta! Por quê? Olhou a casa e tudo parecia brilhar, como isso era possível? Respirou fundo e o cheiro de fumaça a chocou. Tentou se pôr de pé, mas não conseguia, suas pernas tremiam em fraqueza.
- Princesa! – So-Yong gritou e então ela olhou para a porta, ela havia se fechado? Em que momento? Com certeza não foi Hee-Ah...
Olhou para onde o ponto de luz surgia e viu as chamas tomarem o teto, fazendo o feno cair em brasa no chão, alastrando a queimada pelos objetos. Pela primeira vez havia sentido o cheiro de álcool pela combustão que aconteceu.
A casa iria sumir em cinzas em questão de minutos, haviam criado uma nova emboscada e a princesa caíra como uma criança inocente.
- A enfermeira... – Segurou seus tornozelos pela coberta e tentou a puxar, mas seu braço direito doeu, como se estivesse gravemente ferido. Ela gritou.
Soltando os tornozelos, seus olhos viram o sangue gotejar de seu braço mais uma vez, erguendo a manga da jaqueta e vendo seu osso exposto, quebrado ao meio. Havia rasgado sua carne e pele.
Só podia sentir dor, muita dor. Ela se alastrava pelo seu corpo e tudo parecia girar, a visão ficou turva e negra. Estava cega e imobilizada.
- Os bombeiros estão a caminho. – Ouviu ao longe. Lutava contra seus próprios olhos, desejando abri-los.
- Consegue ver quantos são?
- Dois, mas acho que o motorista não sobreviveu.
- Consegue me ouvir? – Essa pergunta havia sido para ela? – Ei! – Um de seus olhos havia aberto e a luz a tomou momentaneamente. – Consegue me ouvir?
Estava em um carro, sentada. O cinto a enforcava e parecia a pressionar com força, tudo em seu corpo doía. Não conseguia se mover, estava presa.
Olhou para seu corpo e não foi capaz de ver sua perna direita, quanto mais subia seu olhar, mais medo sentia. Estava desesperada. O que tinha acontecido? Seu braço estava torto e quebrado, partido ao meio e o osso exposto.
- Não se mexa! Os bombeiros chegaram.
- Abram o caminho! – O som ao fundo era das sirenes que gritavam em alerta.
- Consegue me ouvir?
- Socorro! – Hee-Ah gritou e começou a chorar. – Socorro, por favor!
- Nós estamos aqui pra te ajudar, vamos afastar a caminhonete, procure não se mexer.
- Me tira daqui, por favor! – As lágrimas a inundavam, a dor era tamanha que não sabia reconhecer de onde vinha, apenas a tomava por inteiro e a deixava mole e fraca.
- O que está sentindo?
- Eu não sinto minha mão.
- Só isso?
- Nem minha perna. Eu não consigo abrir o olho direito.
- Se sente tonta?
- Sim.
- Tente conversar comigo o máximo que puder.
- Tá... – Tentou parar de chorar, mas parecia ser impossível.
- Qual é o seu nome?
- Hee... – "Não, esse não é meu nome." – Eu me chamo...
- Consegue se lembrar?
- Está difícil, dói...
- Certo, mantenha a calma, isso é normal. Consegue contar até 10? – Fechou os olhos e começou a contar em voz alta e então seu nome aos poucos veio surgiu em sua memória.
- Isabelle.
- Isabelle do que?
- Isabelle Bento Melo.
- Quantos anos você tem, Isabelle?
- 24. – Ouviu o carro se movendo e então tudo se mexeu e a dor aumentou. – Tá doendo! – Ela gritou e então o carro se mexeu de novo, fazendo as ondas de dores aumentarem e Isabelle apagou.
Sentia seu corpo ser movido, como se estivesse nos braços de alguém. O calor humano era confortável e ela se sentia segura.
Por mais que soubesse que precisava descobrir quem era, afinal poderia estar sendo levada por um desconhecido. Brotou nela o desejo de simplesmente, talvez, ter sua vida roubada e então ela se veria livre desse bombardeio constante de sentimentos.
Era um desejo fraco, egoísta e completamente ridículo.
- Hora de acordar, princesa. Mereço meus reconhecimentos por ter te salvado das chamas. – A voz da mulher soou tão próxima dela, estava no colo dela? Ela teria tamanha força? – Eu sei que já está me ouvindo, abra os olhos antes que eu me irrite.
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