Essa era eu
Tons avermelhados pintavam as pessoas ao seu redor, dançando sobre seus rostos e deslizando pelos seus corpos. Como espíritos festeiros, as cores pulavam pelas paredes e então sapateavam pelo chão, fazendo graça aos olhos perdidos de Isabelle, que apenas seguia curiosamente seus contornos e sombreados de modo desfocado. Era muito fácil se distrair vendo aquele documentário.
As imagens passavam lentas pela tela, fotos antigas do último reinado da dinastia Joseon, mal davam para ver se não fosse pelo narrador que explicava com ricos detalhes a história por trás daqueles momentos congelados na eternidade, porém o narrador em si parecia cansado de ouvir a própria voz depois de falar sobre várias guerras, mortes e assassinatos, carnificinas impossíveis de capturar a atenção de boa parte dos alunos, justo na véspera de um feriado...
O tédio fazia das cores que brilhavam para fora do aparelho um verdadeiro deleite para a imaginação.
- Continuaremos na próxima aula. – A senhora Oh se pôs de pé, claramente segurando o bocejo. Isabelle se sentia perdida e envergonhada por não ter prestado atenção no tema que ela mesma havia pedido para a senhora Oh apresentar. Ao ligar a luz da sala todos os olhos piscaram irritados com a claridade, e os dela não saiam de suas mãos vendo seus dedos se enroscarem uns nos outros.
Suas costas doíam pela má postura, ela dizia a si mesma que iria se vigiar para evitar a dor, mas sempre que percebia, lá estava Isabelle, corcunda novamente, se escondendo do mundo como se carregasse um fardo pesado em seus ombros, e em partes ela realmente carregava. Se espreguiçando, sentiu leves fisgadas pela coluna e então soube que havia atingido seu máximo.
Passou a mão pelas páginas do seu caderno aberto, retirando o resto da borracha que usara ao apagar algumas de suas anotações, sentia muito orgulho por saber falar coreano, mas escrever ainda estava sendo a parte mais difícil. Errar fazia parte do aprendizado, mas quem disse que ela conseguia controlar a frustração de errar justamente na escrita? Logo a habilidade que ela dominava em sua língua materna?
- Muito obrigada por terem vindo e um ótimo feriado a todos! – Senhora Oh acenava em sua habitual timidez, suas bochechas levemente coradas pela temperatura do ambiente e os olhos em lua pelo sorriso em seus lábios. – Isabelle, posso conversar com você? – Disse ao começar a ajeitar os aparelhos usados em aula.
Senhora Oh era incrível. Tinha 74 anos de muitas histórias e momentos únicos vivenciados no calor da juventude coreana. Ria de memórias dos anos 60 quando os Beatles haviam alcançado esse país tão distante e ela dançava em segredo na casa de uma amiga, usando saias acima dos joelhos, mas que corria para abaixá-las quando via um oficial pela rua pronto para tirar as medidas.
Desde que encontrara esse Centro Cultural Coreano, a senhora Oh havia a abraçado, como se enxergasse nela algo que era especial, e por mais que doesse admitir, Isabelle não era capaz de reconhecer. Foram 5 anos de estudo, matriculada aos 19 anos estaria recebendo seu diploma de conclusão no final do ano, aos 24 anos de idade. Não sabia como o tempo havia passado tão rápido, mas sabia que a senhora Oh esteve com ela esse tempo todo, às vezes até mais do que deveria.
- Hana? – Suas mãos se apertaram nas alças da mochila em suas costas ao falar o primeiro nome de Oh com intimidade, algo que ela não conseguia com muita facilidade e a professora constantemente pedia.
- Bel, você está bem? Está tão pálida... Comeu? – Estendendo à Isabelle uma barra de cereal, senhora Oh colocava sua bolsa de couro preta nos ombros e passava a conduzir o passo até o corredor, apagando a luz da sala enquanto Bel colocava a barra de limão e mel no bolso traseiro da calça.
- Estou cansada, só isso. Não dormi bem e trabalhei muito hoje. – Só de lembrar a quantidade de pessoas que havia feito o check-in até às 18 horas a deixava completamente tonta. Muitos nomes e rostos, dúvidas frequentes e problemas no pagamento. Trabalhar com aquele público a deixava muito insegura e só continuava ali por precisar do dinheiro. Sentia a ansiedade mais forte que o habitual e isso estava estampado na sua cara, agora pálida e com profundas olheiras.
- Ainda está trabalhando no hotel? – Colocando a franja atrás da orelha, mais uma vez Isabelle parou de pensar ao observar a beleza daquela senhora.
Sua elegância era algo de se invejar: Postura sempre ereta, o corte do cabelo nunca por fazer, seus brincos habituais de madrepérola que combinava com o anel em seu dedo indicador e se encaixavam enquanto ela ajeitava o cabelo. Sem falar de suas roupas, sempre vestidos alegres e florais que a deixavam muito mais nova.
Boatos que Cristiano, um homem de 45 anos, havia a chamado para um encontro ao saber que ela já era viúva, mas pela diferença de idade ela o rejeitou com muita delicadeza. Se a história é verdade ou não, ninguém sabe, todos ficaram muito envergonhados para perguntar a Cristiano, que havia faltado uma semana depois do possível ocorrido.
- Sim, infelizmente... – Bel respondeu soltando todo o ar que restava em seus pulmões por um suspiro longo e cansado, mas logo chacoalhou a cabeça, lembrando que era esse trabalho como recepcionista que bancava o curso e a mantinha perto daquela mulher que tanto se preocupava com ela. – Mas graças a Deus eu tenho esse emprego.
- Entendo. - Ela sorriu, se esforçando ao máximo para não deixar que a tristeza que sentia por Isabelle aparecesse em seus olhos, mas era tarde demais, Bel já havia visto e seu coração sentido. – Vá para casa e durma, amanhã é dia de folga?
- Nossa, sim! Finalmente é! – Sorriu e jogou as mãos para cima, na altura de seu rosto, e as chacoalhou como se estivesse festejando uma vitória. – Vou poder dormir 8 horas como qualquer pessoa normal. – Ambas travaram quando "pessoa normal" saiu de seus lábios, era nítido o desconforto que sua vida causava na senhora Oh.
- Então trate de dormir. – Disse pousando sua mão esquerda nos ombros, agora magros, de Bel. – Por favor, e qualquer coisa me liga, sabe que vou te ajudar sempre, né?
- Sei sim, senhora Oh. – Com sua mão sobre a da senhora, acariciou a pele suave e morna daquela pessoa maravilhosa que havia, com certeza, sido enviada por Deus.
Quando Isabelle e sua mãe haviam perdido tudo no final do seu primeiro ano estudando ali, foi a senhora Oh que as cuidou por alguns meses, dando cestas básicas e ficando de olho em Bel, apelido esse que ela havia colocado na aluna. Até o emprego no hotel foi a senhora Oh que havia conseguido, mas que claramente se arrependia hoje.
O curso de coreano foi a única coisa pela qual Isabelle batalhou para manter. Havia perdido amigos, parentes, a faculdade e até sua mãe, mas não podia perder aquele ambiente e Hana, então mesmo que trabalhasse muito e se sentisse eternamente cansada, foi naquele hotel que tudo começou a mudar.
Ela como recepcionista e a mãe como camareira, ambas se reergueram depois de quase 1 ano de muito suor e horas dobradas. Graças ao seu amor por línguas, Isabelle aprendeu a falar inglês e espanhol, e por mais que odiasse se gabar por receber olhares tortos dos empregadores na hora das entrevistas, Isabelle tinha um orgulho gigantesco dessas conquistas, mesmo não tendo diplomas, foi através do seu esforço que saíra da posição de camareira e fora para a de recepcionista.
- Precisa de carona? – Senhora Oh parou na ponta da escada antes de ir até a recepção entregar a chave da sala.
- Não, hoje não. Muito obrigada. – Ela sorriu sentindo um forte zunido crescer em seu ouvido, a deixando toda arrepiada, uma forte sensação de que deveria aceitar. A verdade é que se sentia sendo um fardo para a senhora que sempre se desdobrava para ajudá-la.
Talvez seja pela solidão que ela enfrenta por ter perdido a filha para o câncer muito nova, se ela bem se lembrava, foi muito antes de Isabelle ter entrado nesse curso. Yea-Ji, filha de Hana, tinha por volta de 25 anos quando foi diagnosticada com a doença, mas infelizmente a luta foi rápida demais e ela acabou perdendo.
Isabelle evitava entrar nesse assunto, mas ouvia pelos cantos através dos funcionários que desde que entrara nesse curso Hana havia melhorado seu aspecto, então ficava feliz por ter tido um dedo nisso, mesmo ainda se considerando um grande fardo.
- Boa noite, Hana. – Disse acenando enquanto saía rapidamente pela porta de entrada do prédio, querendo evitar ser vista indo em direção ao ponto de ônibus.
- Bel! – Quase se esbarrando em Nicolas, levou a mão ao coração pelo medo de ser abordada assim.
- Ficou louco, Nicolas? Quer me matar do coração? – Seus olhos escaneavam a rua em busca de alguém suspeito por já ser noite. Ser roubada era o maior medo de qualquer pessoa, principalmente das mulheres que andam durante a noite sozinhas e temem pelo pior: um roubo virar estupro.
- Mas eu te mandei mensagem! Você que tá louca. – Enquanto Nicolas ficava bravo com a reação de Isabelle, ela buscava pelo celular na mochila. Assim que o encontrou a tela estava preta e por mais que apertasse os botões, ele não ligava.
Por ser velho o medo de ele ter quebrado de vez a tomou, não teria dinheiro para parcelar o celular, não com o aumento do aluguel...
- Desculpa, parece que fiquei sem bateria. – Ela sussurrou ainda tentando ligar, até que desistiu e procurou pelo carregador. O centro cultural iria fechar e não poderia voltar a entrar apenas para dar uma carga no aparelho, o desespero estava apenas crescendo em seu peito.
- Tudo bem, acontece. – Ele disse colocando as mãos no bolso e então olhando ao redor, deixando Isabelle confusa.
- Afinal de contas, por que você está aqui?
- Eu vim te ver, eu te chamei pra sair na mensagem... Só me esqueci que você é da última turma nesse curso e saía às 9 da noite. Tarde, não?
- Parece até que ficou me esperando por muito tempo... – Ela sorriu com a brincadeira, mas os olhos castanhos escuros quase negros do Nicolas pareciam não estar brincando. – Você esperou. – Sussurrou, mais consigo mesma pelo choque daquela realidade, do que falando com ele. – Por quê?
- Eu precisava te contar uma coisa, já que seu aniversário é daqui 2 dias pensei em unir o útil ao agradável.
- Ah, verdade né? 2 dias! – Ao falar em voz alta, parecia que a sua dura realidade era mais fatídica do que em seus pensamentos.
Iria fazer 25 anos no sábado e isso só a desanimava. Aos 18 anos havia planejado muitos projetos, queria alcançar muitos sonhos: Seria uma professora concursada aos 25, teria um salário razoável e iria alugar uma casa para sentir o que era independência, mas então tudo desandou.
Quando completou 19 anos seu pai sumiu, deixando uma dívida muito grande graças às apostas e jogos de azar. Tudo aconteceu em 1 semana: Haviam perdido a casa e tinham que pagar um empréstimo de quase 70.000 reais, empréstimo esse que nem sua mãe tinha ciência.
Viram-se morando de favor na casa da avó materna de Isabelle: sua mãe perdida na depressão causada pelo choque que foi tudo isso, sem notícias do pai que poderia ter apenas pego um ônibus na rodoviária e sumido na vida, ou até mesmo ter sido morto caso tenha outras dívidas secretas e sua avó que cobrava aluguel para a própria família.
Isabelle tentou trabalhar com qualquer coisa, mas nenhuma oportunidade vinha, era não atrás de não, isso quando eles se davam ao trabalho de responder... Chorava escondido pelas ruas, voltava pra casa com o rosto inchado e ia tomar banho.
Um dia acabou chorando no meio da aula da senhora Oh, sequer havia percebido que estava chorando. Foi no dia que teve que trancar a faculdade e tinha recebido 2 "nãos". Via seu mundo ruir e sua vida parar. Ela só queria sumir.
Senhora Oh trouxe um copo de água com açúcar, deu intervalo para a turma e ficou com Bel na sala, esperando que algo saísse da boca dela. Assim que soube de toda a situação, conseguiu um emprego para as duas, mãe e filha, no hotel de uma amiga.
- Bel? – Nicolas a chamou de volta para a realidade e então a ruiva fechou o zíper e voltou a colocar a mochila nas costas. – Tá tudo bem?
- Sim, você só me pegou desprevenida. – Sorrindo, passou a mão nos cabelos curtos e então respirou fundo. – Será que tem algo aberto ainda?
- Bom, acho que podemos tentar não?
Caminhando pela rua, viram vários restaurantes abertos, mas ela não tinha como pagar por nenhum deles e não queria que seu amigo pagasse...
Nicolas trabalhava na cozinha do hotel e em uma reunião com a equipe eles se conheceram. Por terem horários de almoço juntos, acabaram se aproximando. Ele era um rapaz muito bom, tinha 22 anos e vinha de uma família muito boa. Estudava gastronomia e estava trabalhando com o sonho dele. Sempre parecia estar muito feliz, então sua companhia dava ânimo para Isabelle.
- Não estou com fome... – Disse ao pararem em frente de um restaurante de comida japonesa. O local parecia ser badalado já que estava começando a lotar.
Nicolas disse que a comida era muito boa ali e que era um agrado dele à aniversariante, mas mesmo assim a sensação de que era insuficiente para esses momentos de prazer a deixavam sem apetite.
- Não tem nem um café por aqui? Eu aceito beber um chocolate quente.
- Mas é por minha conta, Bel, vamos aproveitar, por favor...
- Nic, não precisa gastar comigo, eu aceito que me pague um café, é o suficiente para mim.
Por mais que ele não quisesse abrir mão do possível plano dele, ele acabou cedendo para agradar a aniversariante. Não demorou muito para verem um café aberto. O cheiro do pó sendo moído na hora abraçava todos os fregueses.
Sentados diante da fachada do estabelecimento, eles podiam ver as pessoas passando a encher aquelas calçadas em comemoração ao feriado do dia seguinte. Elas pareciam felizes e despreocupadas. Por um instante ela se perguntou se aquilo era normal: viver uma vida sem preocupações, sem contar o dinheiro que poderia gastar, o que deveria pagar para o banco, as contas que não podiam atrasar, os remédios que sua mãe deveria tomar e que pareciam cada vez mais caros, o aluguel...
- Vai beber o que? Parece que esse é novo. – Ele disse abaixando o cardápio e apontando para uma bebida em um copo de plástico grande com chocolate, caramelo, chantilly e granulados. Dizia que a base era café, seguro para pessoas com intolerância à lactose e tudo, parecia bem chique por conta disso.
- Pode ser esse, parece ser gostoso.
- Deve ser! – Ele sorriu e então se levantou, levando o cardápio com ele e foi em direção ao caixa.
Enquanto estava sozinha, procurou por uma tomada, encontrando ela bem ao lado da cadeira em que Nicolas estava sentado, ele entenderia o motivo que havia trocado de cadeira.
Ao plugar o carregador na tomada, segurou o aparelho como se fosse um cristal extremamente delicado, contando os segundos para ele dar algum sinal de vida. Demorou, mas depois de um tempo a vibração em sua mão deixava claro que ele ainda sobrevivia.
Mais aliviada, deixou seu corpo se recostar na cadeira de madeira e sentiu o perfume de Nicolas, que estranho... Ela só notara agora seu cheiro, era meio cítrico e a lembrava levemente o aroma de laranjas, provavelmente pela quantidade de suco de laranja que faziam todas as manhãs.
Ao olhá-lo de longe procurou buscar por tudo aquilo que ela sequer tinha se dado o trabalho de observar. Ele era alto, talvez até demais, o que o deixava desengonçado. Seu cabelo preto como a noite se destacava em contraste à sua pele, parecia que ele evitava tomar sol de tão branco que era e isso a preocupou.
Virando para olhá-la enquanto esperava pelo pedido no balcão, ele acenou. Suas mãos eram grandes e seu sorriso largo com lábios finos.
Não era feio, mas estava longe de prender sua atenção. Como uma irmã mais velha, tinha mais olhos críticos do que olhos impressionáveis. Divertia-se na presença dele e o considerava muito sortudo por estar vivendo como vivia, mas isso não a impedia de achá-lo muito inocente.
Voltou correndo para a mesa, ele empurrou o copo de plástico sobre alguns guardanapos e então bebericou da própria bebida. Sentia uma energia alegre demais exalar dele e então lembrou que Nicolas queria conversar com ela, na hora seu celular vibrou por ter carga suficiente para ligar e o nome dele apareceu na tela.
"Quer sair comigo?"
Essa era a mensagem que ele havia enviado e, graças ao acaso do destino, sua resposta havia sido sim para uma coisa que ela não sabia. Como um frio na espinha, sentiu que o polo ártico havia caído sobre ela sem nem mesmo ter posto a bebida gelada na boca.
- O que você queria falar comigo, Nicolas?
- Ah, nada importante na verdade. – Ele sorriu e esperou que ela experimentasse a bebida que havia comprado com êxtase. – Acabei comprando o mesmo que o seu, é muito bom, experimenta! – Empurrou de novo o café, Isabelle segurou sentindo o gelo daquele líquido nas pontas de seus dedos.
O suor gélido escorria pelo plástico assim como começava a escorrer pelas raízes do seu cabelo. Sentia a intuição batendo cada vez mais forte na sua porta, assim como o zunido em seu ouvido, e por algum motivo sabia exatamente o que ele queria conversar, Nicolas havia dado dicas desde que saíram do centro cultural e era ela que tinha sido ingênua demais para perceber.
A ansiedade aos poucos apertou seu peito e a vontade era de simplesmente levantar e fingir que nada estava acontecendo até achar um lugar que poderia ficar sozinha e segura o suficiente para hiperventilar enquanto chorava.
- Parecia importante, você até brotou no meu curso... – Sabia que seus olhos gritavam implorando por mais explicações, queria que ele fosse direto e falasse tudo aquilo que ela não esperava ouvir para acabar com essa situação desagradável da melhor maneira possível. Não deveria ter aceitado que ele pagasse.
- Eu só queria ficar com você, não é nada estranho quando se gosta de alguém.
- Nicolas...
- Que? – Ele sorriu, apoiando o copo na mesa de madeira e cruzando os braços sobre ela, fazendo com que seu corpo inclinado trouxesse seu rosto para mais perto, assim diminuindo a distância entre os dois. Em seus lábios estava a malícia de um homem que entrava em contraste com a imagem que Isabelle havia construído dele. – Eu estava louco para ter um momento assim com você, mas você é meio inacessível, não?
- Desculpa. – Gaguejou, em seus pensamentos desejava simplesmente levantar e deixá-lo sentado sem nem criar uma desculpa, apenas evitar complicações. O coração palpitava com toda a responsabilidade que um relacionamento oferecia.
Como iria trazer alguém novo para a realidade que ela vivia? Uma mãe suicida, um pai devedor foragido e uma avó que não merecia passar por nada disso e repetia constantemente isso? Uma pessoa a mais nessa história seria apenas acrescentar outro fardo e suas costas já se curvaram demais. Ele iria querer a levar em encontros caros demais para quem mal pode pagar por comida de marca, ele iria querer a conhecer melhor depois de tanto tempo fazendo o possível para ser um fantasma no trabalho...
Não saberia lidar com aquilo porque sequer o via como homem e isso a assustava. Por mais que agora buscasse em sua memória por momentos que ele tivesse deixado claro esse sentimento, ela estava confusa demais com tudo.
- Não faça isso, por favor. – Sussurrou porque isso era o máximo que conseguia fazer. – Eu não quero perder a nossa amizade. – Tinha medo de ter que chegar ao trabalho e encará-lo com vergonha, lembrando-se desse momento. Se sentir deslocada na cozinha durante o almoço. Não falava da vida pessoal por não querer uma atenção negativa sobre ela, aqueles olhares de dó que sentia na faculdade... – Não agora.
- Mas você não quer dar nem uma chance? – Isabelle não respondeu, apenas mexeu no celular com sutileza e olhou a hora, quase dez horas, tarde o suficiente para pegar um ônibus que rodaria o mundo até chegar ao ponto final que era onde descia. O zunido estava começando a deixar o barulho ambiente abafado, assim como o suor frio que gruda os fios de cabelo em sua nuca. – Que isso, Bel? É por que eu sou mais novo que você? São só 3 anos de diferença.
- Que? – Seu olhar pousou na mão dele que tentava aos poucos segurar a dela, fazendo com que as movessem indo pegar o celular da mesa, desbloqueando a tela em seu colo e clicando na Uber para poder chamar um carro. Não estava nos planos gastar com isso, mas daria um jeito de alguma maneira.
- Então o que é? Não gosta de mim? Pensei que a gente se dava bem... – Suas sobrancelhas se uniram em sua testa, deixando explícita sua frustração com a reação de Isabelle, claramente fora da curva, o fazendo perder o controle de seus planos.
- Não é isso.
- Então o que é? – A cortando com certa rispidez, seus olhos se encontraram e ela pode ver um misto de sentimentos ali, talvez tristeza com desejo se perdendo em raiva e frustração.
- Você nem me conhece, Nicolas. Você não sabe nada da minha vida... Acredite, você não vai querer se envolver comigo. – Vendo que haviam aceitado a corrida, passou a tirar o carregador do celular da tomada, enfiando sem jeito na mochila. – Você não me quer, Nicolas. Eu sou problema. – Era questão de minutos, 2 para ser mais precisa.
- Você não pode simplesmente falar isso por mim, me dá uma chance pra tentar pelo menos, Bel. Você sabe que eu posso ser bom pra você.
- Eu preciso ir. – Isabelle se pôs de pé, o celular em sua mão indicando que o carro estava virando a esquina. – Obrigada pela bebida, depois a gente se fala.
- Isabelle, que isso... – Se levantando com ela, tentou pousar a mão em seu ombro, mas com uma sagacidade que sequer sabia ter, ela sorriu e se desviou, caminhando apressada para a porta por onde entraram.
Seus olhos leram a placa do carro no aplicativo e o procurou pela rua, encontrando o carro parado um pouco mais a frente. Correu até ele e abriu afobada a porta, vendo o motorista se virar de solavanco.
- Isabelle? – Sua voz soou baixa, baixa demais pelo som abafado gerado por um zunido insuportável. O motorista parecia estranho, a fazendo se lembrar da aparência de alguém que estava muito cansado.
- Eu mesma, boa noite. – Fechou a porta e viu que Nicolas estava na porta do café, a observando ir. O celular em suas mãos discava seu número, fazendo com que o celular dela vibrasse no banco traseiro.
Era uma verdade dizer que sentia muito medo de deixar mais pessoas entrarem em sua vida, afinal de contas, olha como ela estava vivendo! Quem é que gostaria de se envolver naquela situação? Ela não tinha estabilidade alguma! Escolher amar alguém assim era só problema e desde que tudo isso havia acontecido com Isabelle, ela se fechara para pessoas externas, sendo a senhora Oh a primeira a voltar entrar em sua vida.
Muito cedo para relacionamentos, não queria ter que lidar com isso agora. Tinha que cuidar de sua mãe, poupar sua avó de mais preocupações e tentar esquecer seu pai que trouxe bancos raivosos para suas vidas.
Sentia-se com uma coleira em seu pescoço, sendo aprisionada de várias maneiras por donos loucos. Vivia há anos vendo a vida passar diante de seus olhos e doía lá dentro. Talvez ele fosse realmente bom para ela, quem sabe até mudaria o rumo de sua vida, mas e como ficaria todo mundo? Não poderia negar e fingir-se de cega.
Estava aprisionada e não tinha data para se libertar.
- Você é a minha última corrida de hoje. – O motorista disse, as palavras saindo arrastadas de sua boca. – Só aceitei porque você mora perto de mim.
- Legal. – Disse o olhando pelo retrovisor. Seus olhos estavam avermelhados e havia grandes olheiras.
- Tô virado dirigindo, dormi só duas horas e já voltei à ativa, a crise tá estragando muitas vidas. – Riu tristemente, sua cabeça balançando negativamente esperando o farol abrir.
Assim que o carro arrancou, uma luz muito forte iluminou toda a sua parte interna, amarela como a luz de uma lanterna super potente, fazendo seus olhos se perderem diante da antiga escuridão. Não entendia o que estava acontecendo, do nada parecia dia novamente.
Um dia quente e ensolarado de verão.
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