1 - Burguesa
Alguém está tirando o melhor de você?
Ou você se foi e virou outra pessoa?
Best of You - Foo Fighters
A movimentação nas ruas do centro de São Paulo era intensa, mas do décimo andar onde se localizava o escritório de advocacia Andrade & Monteiro apenas o barulho do ar condicionado se fazia presente. Diana estava fechada em sua sala que exalava sobriedade através das paredes brancas e móveis de uma madeira escura e sem graça encarando um processo enquanto massageava as têmporas quando a porta foi aberta em um rompante.
– Amor, vamos almoçar?
Diana deu um pulo em sua cadeira ao ouvir a voz do noivo do outro lado da mesa. Maurício estava com sua postura impecável e feição impassível enquanto a aguardava fechar a pasta em suas mãos e finalmente se levantar. Ela já havia avisado por mensagem que ele não precisava esperá-la para almoçar, mas a presença rara do homem em sua sala entregava que ele não havia lhe dado ouvidos. Com um suspiro, se levantou, pegou sua bolsa o seguiu até o elevador.
Maurício Monteiro e Diana Andrade eram perfeitos um para o outro. Ao menos era isso que todos seus colegas diziam. Eles se conheceram logo no primeiro semestre da faculdade, durante a aula de Ética e Cidadania. Diana queria poder dizer que foi amor à primeira vista, mas o rapaz de vinte e poucos anos que exagerava no gel de cabelo e não tinha um pelo no rosto para chamar de barba era extremamente tímido e um tanto quanto estranho, então ela apenas ignorava sua presença assim como fazia com metade dos colegas de turma.
Ao contrário dela, Maurício se encantou assim que a viu. Diana não tinha uma beleza excepcional ou de parar o trânsito, mas seus olhos grandes se destacavam por conta de sua heterocromia – um era verde e o outro castanho – e seu sorriso arrancava elogios até dos mais reservados.
Foi apenas no terceiro semestre, durante a disciplina de Direito Internacional Público que os dois se aproximaram e se tornaram grandes amigos. Todos seus colegas afirmavam que eles haviam sido feitos um para o outro, e foi se convencendo disso que Diana o beijou pela primeira vez, um beijo rápido e bagunçado dentro do carro após agradecer a carona até sua casa.
Maurício a pediu em namoro poucos dias depois, durante o intervalo das aulas enquanto aguardavam na fila de um foodtruck. O namoro durou pouco mais de três anos, e no dia 15 de setembro, aniversário de 26 anos de Diana, o pedido de noivado chegou em forma de aliança dentro de uma taça de champanhe durante um jantar comemorativo no Terraço Itália.
Foi no fim daquele mesmo ano que ambos se formaram. Assim que passaram na OAB, seus pais os ajudaram a abrir a Andrade & Monteiro – e a família de Maurício questionou inúmeras vezes o porquê do sobrenome de Diana vir primeiro se o rapaz que era o sócio majoritário, até que a moça os convenceu de que desta forma soava melhor.
Desde então Diana e Maurício conquistaram o próprio apartamento – ele ganhou dos pais, ela precisou financiar – e enquanto ele trocou seu automóvel por um modelo zero quilômetro, ela comprou seu primeiro carro onde a antiga dona era sua mãe. E continuaram noivos. Cada um em sua casa, vivendo sua vida, crescendo em suas carreiras. Quando questionados sobre quando marcariam a data, a fala era sempre a mesma: estamos esperando consolidar nossas carreiras. E eles vinham repetindo a mesma resposta automática há 4 anos.
– Sushi? – Maurício perguntou ao sair do elevador e apertar o alarme do carro.
– Eu queria FastFood.
– Princesa, você sabe que FastFood não é saudável – entrou no carro e afivelou o cinto – Você já tem 30 anos, deveria dar mais valor à sua saúde e não ter os hábitos alimentares de uma adolescente.
– Eu não quero ser saudável, eu quero FastFood – Diana deu de ombros e se ajeitou no banco – E você sabe que eu odeio que me chame de princesa.
– Churrascaria então?
Diana deu de ombros e fechou os olhos, sua enxaqueca não daria trégua tão cedo e entrar em um debate com o noivo sobre onde almoçar não melhoraria em nada o seu humor. Não soube quanto tempo ficou dentro do carro e só percebeu que chegou na churrascaria quando Maurício abriu sua porta e a estendeu a mão como um perfeito cavalheiro.
– Qual processo está te deixando assim? – Maurício perguntou quando já estavam aguardando o garçom.
– Nada de novo, pensão alimentícia. O pai diz que duzentos reais por criança é o suficiente, a mãe já entregou diversas notas provando o valor não cobre nem um terço dos gastos dos dois filhos. Agora ele alega que ela gasta o dinheiro com roupa pra ela... – bufou – Mais do mesmo, mas o mais do mesmo que me irrita.
– Vai saber se ela não gasta com ela mesmo né... Eu fico com pé atrás – Maurício deu de ombros e tomou um gole de água com gás.
– Ai Mau, você não pode estar falando sério... – Diana revirou os olhos.
– Eu estou sim! Ainda bem que nós não queremos ter filhos.
– Nós? – Diana precisou controlar seu tom de voz – Quando foi que discutimos isso?
A conversa foi interrompida por um garçom carregando um espeto com picanhas suculentas. Ambos aceitaram e por mais que Diana quisesse voltar no assunto, Maurício não dava abertura. Ele falava sem parar sobre seus novos processos e a importância de cada um deles. Um gritinho estridente foi a única coisa capaz de fazê-lo parar de falar.
– Diana e Maurício, eu nem acredito que estou encontrando vocês depois de tanto tempo!
Diana queria poder dizer que se lembrava o nome da mulher sorridente acompanhada do marido e de uma menina que certamente era sua filha, mas seria mentira. Lembrava sim que fizeram faculdade juntas, mas era tanta gente naquela turma de Direito que ela só se lembrava dos colegas mais próximos – o que não era o caso, já que aquela mulher era considerada turista na sala e ninguém sabia como ela conseguiu se formar.
– Oi! – Diana abriu um sorriso forçado – Quanto tempo!
– Letícia, você não mudou nada! – Maurício lembrou de seu nome, fazendo sua noiva agradecê-lo mentalmente por isso.
– Vocês também não! Aliás, você sim, Maurício! Finalmente sem todo aquele gel no cabelo – a mulher gesticulava exageradamente – E o rosto continua o mesmo! Com quantos anos você está?
– Fiz 35 anos semana passada – ele estufou o peito cheio de si pelo elogio.
– Mas e aí, como você está? – Diana decidiu cortar o noivo antes que ele começasse a falar só de si mesmo.
– Ótima! Esse aqui é meu marido, Luiz – apontou para o homem sorridente ao seu lado – E essa aqui é a Sophia, minha filha – a menina se escondeu no ombro do pai assim que os dois a olharam.
– Linda família – Maurício falou cordialmente – E aí, está advogando onde?
– Ah não, não – balançou as mãos – Eu desisti da carreira. Pouco depois da formatura eu engravidei e quando a Sophia nasceu eu decidi me dedicar somente a ela. Ela já vai fazer quatro anos, então são quatro anos sendo mãe em período integral.
– Eu fico feliz por você! – Diana falou com sinceridade – Está na sua cara que você está realizada!
– Com certeza! Mas e vocês? O casamento saiu? Já tem filhos?
– Ainda não casamos e não queremos ter filhos – Maurício falou e Diana murchou seu sorriso.
– Estamos esperando nossa carreira se consolidar primeiro.
Diana mais uma vez forçou um sorriso ao soltar sua resposta automática, mas sua antiga colega de turma via em seus olhos que por mais que ela tentasse, o riso não era sincero. Com o clima daquela conversa acabando junto da água com gás de Maurício, Letícia se despediu e os dois continuaram almoçando em completo silêncio.
Assim como a ida, o caminho de volta foi feito em silêncio, mas dessa vez ele pesava ainda mais. Nos dez andares até o escritório cada um focou a atenção em seu celular. Diana voltou para sua sala e trancou a porta, não queria mais ser incomodada. Colocou o arquivo que havia deixado sobre a mesa de lado e ligou o monitor do computador, dando de cara com a selfie ao lado do noivo como plano de fundo.
Diana sorriu ao se lembrar daquela viagem ao Rio de Janeiro e de como foi difícil tirar uma foto decente no Cristo Redentor, mas seus olhos umedeceram e uma lágrima escorreu ao se lembrar da fala de Maurício ainda na churrascaria. Não que ela estivesse desesperada para ser mãe, aos 30 anos acreditava ter pelo menos uma década para decisões pela frente, e na verdade nem pensava sobre filhos e nem mesmo tinha certeza de que era isso o que queria, mas acreditava que essa deveria ser uma decisão do casal e não algo unilateral.
Cansada de pensar e com a cabeça latejando de dor, Diana desligou o computador e pegou sua bolsa. Inspirou e expirou vezes o suficiente para se convencer de que estava calma e saiu de sua sala. Foi até a recepcionista e pediu para avisar Maurício que iria para casa por conta da enxaqueca, não queria ter que falar ou explicar nada para ele.
Ainda mantendo a calma elegantemente sobre os saltos altos, desceu até o estacionamento e desejou boa tarde ao porteiro antes de entrar em seu carro. Ligou o ar condicionado para enfrentar aquela tarde quente do mês de janeiro e saiu. Por morar no centro o caminho até sua casa não era tão longo, mas o trânsito de São Paulo não tem hora para começar ou terminar. Parada no semáforo, ligou o rádio e aumentou o volume ao escolher Best of You do Foo Fighters em sua playlist.
– I've got another confession to make, I'm your fool...
Aproveitando que estava sozinha no carro e que seus vidros eram escuros o suficiente para que ninguém a visse, Diana cantou a plenos pulmões. Cantou até o peito doer e as lágrimas ressurgirem em seus olhos e escorrerem em seu rosto. Não queria chorar, era mais forte que isso. Mais forte do que essa decisão unilateral de Maurício, mais forte que toda as cobranças frequentes de seus pais, mais forte que tudo isso. Diana sempre tinha o controle de tudo, então controlaria suas lágrimas. Mas não seus gritos.
– Is someone getting the best, the best, the best, the best of you? – não deixou de cantar mesmo com a voz embargada – Is someone getting the best, the best, the be...
Parou a cantoria no segundo em que viu alguém na frente do carro, mas o pneu cantou ao frear de uma vez. Isso não foi o suficiente para evitar um acidente, já que um corpo bateu sobre o capô branco. Tudo aconteceu tão rápido que quando se deu conta, Diana já estava do lado de fora do carro agachada ao lado do homem caído no chão.
– Meu Deus, você está bem? – Diana perguntou enquanto tentava entender como aquilo aconteceu.
– Eu pareço bem?! – o rapaz gritou e abriu os braços – Você me atropelou na faixa de pedestre!
– Me desculpa, e-eu não sei o que aconteceu!
– Eu sei o que aconteceu! Você ultrapassou o farol vermelho!
– Eu... eu não tenho desculpa para isso... Eu me distraí. Você consegue se mexer?
– Eu tô bem – ele gemeu ao tentar se levantar. Diana estendeu a mão, mas ele ignorou e mesmo com dor, se levantou sozinho – Só quero ir embora.
– De jeito nenhum! Eu vou te levar para o hospital!
– Eu não vou pra hospital nenhum. Com licença moça, mas eu tenho que trabalhar – virou as costas e saiu mancando.
– Não, você não vai! – Diana o segurou pelo braço – Depois você me processa por omissão de socorros e eu me ferro.
– Eu não tenho saco pra advogado não, moça, eu só quero ir trabalhar.
– Por favor, entra no carro.
Diana não desistiria, se aquele rapaz era teimoso, ela era duas vezes mais. Já havia visto processos por omissão de socorros o suficiente para não correr o risco. Depois de muita discussão, ele finalmente aceitou uma carona até o hospital e entrou no carro.
– Quer que desligue o ar? – Diana perguntou ao notar o rapaz inquieto.
– Não, tá ótimo. Carro de burguês é bom por isso né? – ele riu.
– Está me chamando de burguesa? – Diana esboçou um sorriso, mas não desviou os olhos do trânsito.
– Não moça, você tem um carro desses aqui e não é burguesa não – ele riu e estalou a língua – Só o seu salto alto aí deve pagar parte das minhas dívidas.
– Pela sua cara eu achei que você não era do tipo que julgava pela aparência.
Diana desviou o olhar para as tatuagens no pescoço do rapaz que aparentava ter cerca de 30 anos e o desceu até suas mãos igualmente tatuadas. Ele tinha uma barba que Maurício jamais deixaria – e se tentasse, ficaria toda falhada – e um cabelo longo preso num coque feito de qualquer jeito, além da calça rasgada e o coturno surrado. Com um sorriso, ele deu de ombros.
– Touché – ele piscou – A propósito, eu sou o Gael.
– Diana, prazer – ela tirou a mão do volante para cumprimentá-lo e ele riu da formalidade excessiva, mas retribuiu o cumprimento.
– Prazer por me atropelar? – mais uma vez sorriu.
– Eu pagarei por qualquer dano físico ou material.
– Ei, calma, eu estou tentando descontrair. Você é séria assim o tempo todo?
Diana suspirou e não respondeu. Sim, ela era séria o tempo todo. Essa era a maneira como foi criada, seus pais nunca foram muito abertos a sorrisos, abraços ou qualquer manifestação de carinho. Durante a adolescência nunca pode sair para se divertir, já que foi instruída desde cedo a estudar enquanto os outros jovens se divertiam. "Estude para que eles trabalhem para você e não o contrário", sua mãe dizia. Seu lazer consistia apenas em assistir televisão na companhia dos pais enquanto fingia estar estudando ou então ler algum livro da biblioteca da escola sempre com a desculpa de que era para a aula de Língua Portuguesa e Literatura.
Levando em conta o silêncio que pairou sobre carro, Gael desistiu de manter qualquer tipo de diálogo. Olhou de soslaio para a moça e teve sua resposta. Com um coque impecável e sem nenhum fio fora do lugar, um terninho cinza totalmente sem graça e um rosto sem expressões, Diana parecia mais um robô. Um robô que não estava programado para sorrir ou esboçar qualquer reação de felicidade.
•••
Olá meus amores! Como estão?
Finalmente cheguei com o livro que estou enrolando há meses para postar (quem me conhece sabe).
Sei que estamos apenas no começo, mas espero que tenham gostado do primeiro capítulo.
Nos vemos em breve!
Beijinhos ♥
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