Alexandria
Quando Davi foi encarregado de transportar mensagens, ficou claro para ele que o conteúdo de tais comunicados era sigiloso. Sabia que fora escolhido para essa tarefa pois não perderia tempo tentando descobrir o que as mensagens diziam. Isso não significa que estivesse livre de curiosidade. Logo no primeiro dia, ficou tão interessado em saber o que estava escrito no bilhete que fora pego tentando ler os lábios do destinatário e precisou se desculpar.
Os dias passam mais rápido quando se está atarefado. Davi conhecia essa sensação, pois o trabalho no milharal era intenso.
Entretanto, entregar mensagens era uma tarefa cheia de pausas. A primeira semana durou uma eternidade. Havia dias em que caminhava muito, de uma extremidade a outra do vilarejo, tendo que pedir ajuda para chegar ao destino desejado, às vezes acabando no lugar errado. Em outros dias, sentava-se no conselho e aguardava longas horas até alguém requisitar os seus serviços.
Sua rotina consistia em ir bem cedo para o conselho e transportar recados pelo vilarejo da manhã até o fim da tarde. Fazia uma pausa na cantina para o almoço e voltava para a casa de Larissa ao anoitecer. Jantava em silêncio com a família de Antônio e depois, sozinhos no quarto, contava a ele como foram as expressões das pessoas ao receberem os recados para juntos tentarem adivinhar o que a mensagem dizia. Dormia, acordava e começava tudo de novo.
O modo como Davi era recebido variava. A maioria das pessoas do vilarejo, por viverem sempre entretidas, não o perceberam. Mas para alguns, a figura de um menino de chapéu, que atravessava as ruas entregando mensagens a serviço da governadora, se tornou familiar. Davi cumprimentava cada um que cruzava seu caminho com uma inclinada no chapéu.
Nem todos o ignoravam ou o recebiam com simpatia. Havia também os que se incomodavam. O rapaz magro de olhos esbugalhados, que Davi conhecera em seu primeiro dia no conselho, era um desses. Ele se chamava Aluízio e costumava ser o "garoto-correio" antes dele. Ele não trabalhava para Cleonice, pois era um mensageiro não oficial, utilizado por qualquer pessoa no vilarejo que quisesse transmitir comunicados pagando menos que um décimo de prata. O jovem possuía uma memória invejável e uma capacidade de tagarelar incrível. Era comum que transmitisse até mais informações do que seu contratante havia solicitado, por isso construíra certa fama. Aluízio não aprovara a concorrência. Pelo menos era o que dava a entender toda vez que bufava ao cruzar com ele.
Davi sentia-se satisfeito em passar despercebido a maior parte do tempo. Ainda assim, algumas de suas atitudes não eram ignoradas. Em uma tarde ensolarada, sem que ninguém pedisse, preparou a sala antes da reunião do conselho. Abriu as janelas com antecedência, pegou água fresca do poço e encheu um copo para cada um dos membros. Ao final os conselheiros saíram da sala menos irritados do que o habitual. Davi acreditou que as duas coisas estavam relacionadas e fez disso um tipo de jogo, cujo objetivo era competir consigo mesmo, e o prêmio, a sensação de ser alguém mais importante do que na verdade era.
A ideia não veio do nada, aprendera isso em casa. Olívia sabia ser útil e encontrava boas maneiras de fazer a diferença. Essas eram palavras que Davi ouvia de seu pai a respeito de sua mãe. A mulher nunca parava, era a primeira a acordar e a última a se deitar, garantia que todos estivessem hidratados e alimentados, que a casa estivesse em ordem, que datas importantes, como a vinda dos tropeiros, não fossem esquecidas, e tornava a vida de todos mais fácil de inúmeras outras formas.
— Preciso que encontre Mariana e entregue isso a ela — disse Cleonice, entregando um bilhete a Davi. — É importante que seja discreto, cuide para que ela esteja sozinha quando receber.
Davi assentiu. Talvez tenha lançado um olhar curioso para Cleonice, pois ela sentiu a necessidade de se explicar:
— É um assunto pessoal, Davi. Eu poderia esperar anoitecer e falar eu mesma pra ela, mas já que posso confiar em você, prefiro resolver isso o quanto antes.
Davi sabia que Mariana, assim como Antônio e outros jovens do vilarejo, passava as tardes com a Dona Nair, a professora. Já havia espiado uma de suas explicações sobre a história do vilarejo, pela qual a turma não pareceu interessada, exceto Antônio, que nunca acharia uma coisa dessas desinteressante.
A sala de aula era uma construção antiga, feita de madeira, próxima à praça, a cinco ruas do conselho e duas da casa da governadora. Davi se aproximou, ouvindo risos e conversas. Não pareciam estar em aula. Entrou em busca de Mariana, Antônio ou alguém conhecido.
— Hei, você de amarelo! — disse um menino ao notá-lo na sala.
Davi não respondeu. Sabia quem tinha falado mesmo sem conhecer o garoto. Pelas descrições de Antônio, aquele era Joaquim, filho de Bajo, namorado de Mariana, um menino conhecido por fazer piadas e divertir a turma, as vezes às custas de Antônio.
— Veio ver seu namorado? — perguntou Joaquim.
Ele e os outros meninos começaram a rir. Joaquim continuou:
— É verdade que você e Antônio dormem juntos?
Davi se esforçou para ignorar. Percorreu o lugar e não encontrou Mariana, Antônio ou Dona Nair.
— Antônio saiu com a professora — provocou Joaquim. — Se eu fosse você ficaria esperto com Dona Nair. Ela é velha, mas Antônio parece gostar.
— Por mim, tudo bem — respondeu Davi, cedendo às provocações. — Você é quem parece incomodado aqui, basta saber se os ciúmes são por Antônio ou pela professora.
Alguns alunos disfarçaram o riso, deixando Joaquim vermelho de ira.
— Com essa camisa mamãe-me-ache, era de se esperar que goste de chamar a atenção. — Joaquim se aproximou de Davi e tomou o bilhete de suas mãos. — Ouvi dizer que não sabe ler, então me deixe te ajudar.
Davi avançou para cima de Joaquim, mas outro garoto impediu que ele recuperasse o bilhete. Joaquim leu, deu uma gargalhada e passou o papel para seus amigos. Em pouco tempo todos eles estavam rindo e questionando para quem era o recado.
— Pelo visto tem alguém precisando de ajuda — começou Joaquim. — Uma mulher "naqueles dias". Por que não diz quem é para ajudarmos?
Davi lutava contra dois garotos que seguravam seus braços.
— Tudo bem. Se não quer dizer, vou ler em voz alta — Joaquim continuou. — "A Natália lavou os panos pra você, passe lá para pegar antes que escureça. Tem chá de lavanda na garrafa caso esteja com cólica. Beijos, mãe".
Dona Nair entrou na sala, acompanhada por Mariana e Antônio. Ambos estavam com os braços carregados de cadernos. Antônio ficou assombrado ao reconhecer Davi sendo imobilizado. Dona Nair os repreendeu. Mariana colocou as anotações sobre uma mesa, olhou para Davi irritada e saiu correndo. Ele se desvencilhou dos garotos e foi atrás dela.
— Me desculpe! A sua mãe me pediu para te entregar quando estivesse sozinha — disse Davi tentando alcançar os calcanhares de Mariana. — Eu deveria ter esperado você lá fora...
— Que ódio! — bufou Mariana.
— Foi culpa minha! Me desculpe.
Davi continuou a seguindo. Ela desceu a rua da escola em direção à sua casa, parando de súbito. Davi a alcançou, acompanhando o olhar apavorado e atônito de Mariana. Diante deles, uma nuvem de fumaça se estendia da casa dela até o céu. O cômodo de madeira, anexo à casa, estava sendo consumido pelo fogo. Ela correu em direção às chamas e Davi foi atrás, segurando-a pelo braço. O calor era intenso, fazia com que a pele ardesse e gotas de suor se misturassem às lágrimas.
Não havia o que pudessem fazer para conter a tragédia. Mariana caiu de joelhos no gramado. Joaquim, Antônio e os outros, seguindo os gritos e o cheiro de fumaça, chegaram até o lugar.
Quando a governadora surgiu com seu pai, o idoso desabou. Cleonice mal pôde contê-lo, pois também chorava, desesperada ao ver tamanha destruição.
Desde o fim da tarde, até o anoitecer, todo o vilarejo se mobilizou no combate ao incêndio. Mulas carregaram baldes de água do poço até a casa, pessoas sacrificaram seus cobertores na tentativa de conter o avanço das chamas pelo gramado e até uma fila para conduzir pequenos objetos com água se formou. Uma chuva de fim de tarde apagou as últimas brasas, terminando de controlar o fogo. Davi estava próximo de Mariana e Cleonice. Queria dizer algo, oferecer algum conforto, mas não havia palavras.
— Essa foi a pior tragédia que já aconteceu nesse vilarejo — disse Antônio à Davi quando se deitaram aquela noite.
— Pelo menos ninguém estava dentro da casa — comentou Davi.
Antônio inclinou o corpo para ele e se sentou na cama.
— O que estava naquela casa era o que tornou a governadora quem ela é. O que tem tornado nosso vilarejo o mais forte dos vilarejos conhecidos.
— O que tinha lá?
— A última biblioteca. Era lá que o conselho buscava referências do que fazer diante de diversos problemas. Era de onde Dona Nair extraía o conhecimento para nos ensinar e onde novos escritos estavam sendo armazenados. Agora tudo se perdeu e sabe o que é curioso? Todo esse tempo em que a família Nassau está no comando, temos sido obrigados a manter livros de cópia única exclusivamente com eles, sob o pretexto de que assim estariam mais seguros. Se pudéssemos emprestá-los, ou possuir alguns, imagine só quantos teriam se salvado.
Davi nunca lera um livro. Ansiava pelo momento em que teria ao seu dispor a sensação de conhecer mais sobre o mundo. De fato, a tragédia era pior do que imaginava.
— E agora? — perguntou aflito. — Como vai ser?
— Não sei. Talvez comece uma nova idade das trevas.
— Quê?
— Houve um tempo, Davi, em que bibliotecas concentravam todo o conhecimento dos nossos ancestrais. Um desses lugares ficava em Alexandria, uma cidade que obrigava as embarcações a deixarem seus livros para que fossem copiados assim que aportavam. Então criaram o que deve ter sido a maior biblioteca da história. Isso foi há mais de 2 mil anos. Inúmeros mistérios já tinham sido revelados e outros estavam sendo estudados. Então a biblioteca foi incendiada e tudo isso se perdeu. A humanidade levou séculos até se recuperar.
— Foi incendiada? — perguntou Davi, levantando-se do colchão. — De propósito? Por que alguém faria isso?
— Bom... é difícil entender. Mas nesse mundo existe de tudo, até gente que tem medo de livros.
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