A carpincho
A habilidade de Antônio em conectar um assunto ao outro, fazendo com que as conversas nunca se esgotassem, era uma das coisas que Davi mais apreciava no amigo. Ainda que muitas vezes se perdesse no meio das explicações, costumava voltar para a conversa quando encontrava uma brecha em que pudesse pontuar comentários.
Seguiram conversando e tentando se distrair pela estrada.
Com os corações acelerados, peles suadas e pernas dormentes, atravessaram a linha de araucárias e continuaram pela trilha da floresta. Um princípio de fome e ansiedade levou os estômagos a reclamarem.
Chegaram a uma construção na beira da estrada, um local semelhante a uma fortaleza, com um portão e duas torres. Tiveram certeza de que do alto delas alguém os observava. De acordo com Antônio, as descrições do lugar batiam com a prisão Lacerda Braga, o destino de pessoas como o maníaco do pé-de-cabra e a mulher dos gatos pretos, um ladrão de animais e uma bruxa.
— Uma bruxa? — perguntou Davi.
— Sim, é tudo o que eu sei, ninguém gosta de falar sobre isso.
— Tem guardas aí? Como os do vilarejo?
— Sim, só que bem armados, imagino.
O assunto migrou para armas. Davi falou de Tereza e dos tropeiros que vira empunhando facões, arcos e espingardas, ao passo que Antônio complementou discursando sobre o que já lera a respeito. Depois falaram de guerras do passado, veículos de combate e outras engenharias perdidas.
O dia se aproximava do fim e o céu cor-de-rosa se transformou em azul-escuro. Cinco horas se passaram desde o início da viagem. Antônio sugeriu que parassem e montassem acampamento. Davi considerou que ele estava indo bem. Havia aguentado mais tempo que o esperado sem se queixar de fome ou cansaço. Pensou que Matheus, no lugar dele, teria se arrependido de não ter ficado em casa há horas.
Saíram da estrada, largaram as mochilas no chão e esticaram as costas. Davi começou a limpar o terreno, levantando as pedras para evitar de se instalarem perto de cobras peçonhentas, enquanto Antônio estendia os pelegos. Acima deles, a Lua cheia clareou. Por sorte seria uma noite de céu limpo.
Para Davi tornara-se impossível pensar a respeito da Lua e não se lembrar do irmão. Devia respostas a ele. Após ver o livro que Mariana mostrou, aprendera algo que talvez satisfizesse algumas de suas dúvidas. A Lua era simplesmente uma rocha, grande e redonda, girando ao redor da Terra. Percebera que isso, na realidade, não esclarecia coisa alguma.
— Antônio?
— Sim.
— É verdade que a Lua é uma rocha girando sem parar?
Antônio parou de bater no pelego e o encarou de um jeito engraçado.
— Olha... simplificando bastante as coisas, pode se dizer que sim.
Davi pensou em Matheus e tentou imaginar que tipo de coisas o irmão lhe perguntaria, caso essa fosse a resposta que recebesse.
— É uma rocha no céu, tá. Então por que ela não cai na gente?
Agora o olhar que Antônio lançou para ele foi de pura surpresa. Davi não costumava questionar as coisas tão a fundo.
— Essa é uma boa pergunta, na verdade. Veja... — Antônio se agachou, tirou o cadarço do tênis e amarrou uma pedra na ponta. — A lei da gravidade é uma coisa complexa, mas vou tentar explicar de um jeito que faça sentido.
Ele pegou outra pedra, esticou o braço, e a soltou. Prosseguiu:
— A pedra caiu porque a gravidade do planeta Terra atraí os corpos menores para o seu centro. Podemos assumir que isso acontece porque sim e pronto. Mas não seria um jeito bom de aprender física.
— Tá bom — disse Davi fazendo um gesto com os dedos para Antônio prosseguir. — Então por que isso acontece?
— Já se sentou em uma rede ao lado de alguém?
Davi fez que sim, pensando em como Matheus gostava de se balançar junto com ele, até quase caírem.
— A pessoa mais pesada afunda a rede com mais força, de modo que a mais leve acaba caindo pro lado dela. Certo? A força da gravidade tem o mesmo princípio, o Sol é muito pesado, então os objetos menores, como a Terra, são atraídos para ele. A mesma coisa acontece entre a Lua e o nosso planeta.
Davi mostrou a palma da mão, pedindo uma pausa.
— Tudo bem, mas na rede, a pessoa mais leve é atraída pela mais pesada até se baterem uma na outra. Então, a Lua deveria cair na gente. Eu, você e essa pedra somos atraídos para o centro da Terra, por que a Lua não é?
— Que boa observação. — Antônio coçou o queixo, claramente orgulhoso. — Por causa do movimento. Estamos parados em relação à Terra, a Lua não. Vou te demonstrar com um exemplo prático, mas vai ter que usar um pouco de imaginação.
Ele segurou a ponta do cadarço e girou a mão até que a pedra amarrada na ponta orbitasse o seu punho. Prosseguiu:
— Imagine que a minha mão é a Terra, e a pedra é a Lua. — Levantou a outra mão com cara de quem vai pedir desculpas. — Como eu disse, agora vamos ter que usar a imaginação. Se eu parar de girar, a pedra vai diminuir o giro também, até ficar caída, alinhada a minha mão. Imagine que, ao invés de cair em direção ao chão, porque afinal de contas a Terra ainda é maior que a minha mão, ela colidisse com o centro da minha palma.
Davi franziu o cenho, se concentrando e então assentiu. Antônio continuou:
— Pois então. — Ele voltou a girar a pedra. — Quando giro com força, a pedra vai demorar mais tempo para colidir com a minha mão do que se eu girasse fraco. Isso é o que acontece com a Lua, só que ela gira tão rapidamente em torno da Terra, e a Terra em torno do Sol, e o Sol em torno do centro da galáxia, e a galáxia em torno... — Fez um círculo com a outra mão para explicar que o clico continuava. — Que o giro nunca acaba e, por sorte, a Lua nunca cai na gente.
A expressão de maravilhado, perplexo e impressionado que Davi fez foi uma recompensa para Antônio.
Os dois voltaram a ajeitar as coisas para dormirem.
— Tô tão cansado... — disse Antônio, bocejando — Que até ouço meu pai roncando.
— Quê?
— Sabe quando a gente tá lá em casa, quase caindo no sono, daí meu pai dorme antes? Parece que eu tô ouvindo ele roncar.
Davi reunia pedras para fazer uma fogueira. Ficou em silêncio por um momento e entendeu o que Antônio dizia.
— Tô ouvindo também! Parece um zangão chegando perto da gente.
Os dois se levantaram e olharam o horizonte. Um foco de luz clareou o vão entre dois morros. O brilho foi se intensificando conforme o volume do zunido aumentava, até que um objeto inusitado apareceu na estrada. Davi e Antônio se olharam, tapando as bocas de incredulidade.
— Isso é...? — perguntou Davi.
— Uma motocicleta! — confirmou Antônio.
— Meu chapéu!
O veículo barulhento reduziu a velocidade, virou em uma trilha no campo e seguiu por ela, adentrando o bosque. Havia uma caçamba de palha presa na traseira que lembrava um carrinho de mão artesanal.
Antônio se abaixou, puxando Davi com ele, e a motocicleta passou a poucos metros de onde estavam.
— Como é possível? — perguntou Davi com os olhos arregalados.
Antônio balançou a cabeça. Davi começou a recolher os pelegos e guardar suas coisas de volta na mochila.
— O que está fazendo?
— Você já viu uma coisa dessas antes, Antônio?
— Funcionando, não!
— Exatamente! Vamos descobrir por que nunca vimos algo assim funcionando lá no vilarejo. Aquilo vai deixar marcas na trilha, vamos ver onde vai dar!
— Davi, não viemos para isso! Está ficando escuro, não sabemos onde essa trilha vai dar. Pode ser perigoso.
— Aquela caçamba de palha não foi feita para ser chacoalhada, não acho que a pessoa vai longe. Eu quero saber por que não temos veículos assim no vilarejo, você não?
Antônio concordou.
A noite caiu depressa conforme avançavam pela trilha, no rastro da motocicleta. Aquela busca lembrava Davi das caçadas com seu pai, onde aprendera a se guiar no escuro, usando as mãos como escudo e os ouvidos como radares.
Antônio, por outro lado, não tinha a mesma destreza. Dava gemidos de pavor a cada vez que pensava ter se enroscado em teias de aranha ou ouvido morcegos sobrevoando sua cabeça.
Uma fogueira surgiu diante deles. A motocicleta estava apoiada em uma árvore e pouco à frente, uma mulher de cabelo vermelho puxava a caçamba para a luz. Alguém surgiu na escuridão atrás dela e furtou um objeto. Davi avançou, querendo avisá-la de que estava sendo roubada, mas algo o agarrou pelo braço.
— Me solta, Antônio...
— Eu não fiz nada!
Mãos fortes taparam suas bocas e os seguraram com firmeza. Os dois se debateram, mas não conseguiram se soltar. A mulher de cabelo vermelho, percebendo que havia algum movimento suspeito na mata, carregou a caçamba com maços de cana-de-açúcar, voltou a prendê-la na motocicleta, deu a partida e foi embora.
Davi e Antônio foram levados para perto da fogueira, braços ao redor de seus pescoços, corações quase saindo pela boca.
Na claridade, viram uma jovem de cabelo longo, preto e liso. Sua pele era clara, seus olhos, mortais, as pupilas grandes círculos negros. Com um gesto ordenou que os soltassem.
— Vocês são ladrões! — disse Davi. — Nós vimos que alguém roubou aquela mulher.
— Grande coisa — riu a jovem. — Comparado ao trabalho que nos forçam a fazer, um pouco de milho é o mínimo.
Ela falava de um modo que soou familiar, mas Davi não soube o porquê. Mesmo sendo tão jovem quanto ele, os demais pareciam respeitá-la como a líder do grupo.
A fogueira foi alimentada e uma labareda se levantou. O alcance da iluminação revelou mais pessoas ao redor deles: uma mulher e duas crianças, pelo que podiam contar.
A jovem avançou para eles empunhando uma faca. Ela vestia uma calça suja e uma camiseta rasgada, em cuja estampa havia um homem velho de cabelos desgrenhados, sobrancelhas elevadas e língua para fora.
Duas questões ocorreram a Davi: como ela havia desenhado aquilo na camiseta e o que significava. Desejou perguntar, mas havia assuntos mais urgentes. Ela estava, afinal, armada e furiosa.
— Quem são vocês? Por que estavam nos espionando?
— Viemos do vilarejo seguindo a estrada — disse Davi. — Estávamos indo para a antiga capital. Precisamos encontrar uma pessoa.
As pessoas do acampamento se olharam e a agressividade da jovem se atenuou. Davi continuou:
— Estávamos montando acampamento quando ouvimos um motor... meu Deus! Nunca vimos um veículo funcionando antes. Era uma motocicleta mesmo, com barulho e fumaça. Ficamos curiosos e seguimos ela até aqui.
A jovem suspirou.
— São só dois pé-vermelhos se aventurando na terra das capivaras — disse e se afastou.
— Você viu aquilo? — perguntou Davi a Antônio.
— O quê?
Ele apontou para o peito.
— Bem aqui, na camiseta dela!
Antônio fez que sim e enrubesceu.
— Vamos embora daqui, Davi!
— Não! É melhor passarmos essa noite por aqui. Eu ainda quero fazer perguntas pra essa gente.
— Você vai nos colocar em perigo, isso sim!
— Se fossem nos fazer mal, a essas horas já estaríamos gelados no mato. Você a ouviu, somos apenas caipiras — Davi deu risada. — Me chamar de caipira até entendo, mas você? Essa foi boa.
— Davi, eles são carpinchos, nos chamar de caipira e pé-vermelho é só o que sabem fazer.
— Carpinchos? — perguntou Davi.
Uma mulher que passava perto deles ouviu essa palavra e o encarou uma careta.
— Shi! Fala baixo. Não vão gostar que passemos a noite aqui.
— Deixa comigo!
Davi se aproximou de um homem que deveria ter a mesma idade que seu pai. Ele tinha o cabelo raspado, uma postura arqueada e um caminhar calejado, os olhos eram como os da jovem. Ele golpeava tocos de madeira com um machado. Pelo visto, tinha mais força do que aparentava.
— Olá, senhor — disse Davi. — Podemos passar a noite aqui? Sabe, já está um pouco escuro e não sabemos o caminho até a estrada. Podemos ficar aqui perto da fogueira?
O homem estava sisudo. Esticou a coluna e atirou o machado no chão, cravando-o em um toco de madeira.
— Se fôssemos nós em suas terras, faria o mesmo? — disse ele.
— Claro! — respondeu Davi, animado. — A minha família mora perto da ponte Passa Dois. Se estiverem por perto e precisarem de um lugar para dormir, desde que tenham boas histórias, o meu pai os receberá contente. Não temos colchões para todos, mas damos um jeito quando aparece alguém.
O homem riu ao perceber que Davi falava com sinceridade.
— Que seja. Pegue esse machado e corte a própria lenha.
Davi e Antônio encontraram um bom lugar e estenderam seus pelegos. Estavam quase desmaiando de fome. Dividiram pães, maçãs e água. Davi notou que uma criança os observava cheia de interesse.
— Você quer? — Davi estendeu uma maçã para a criança.
— O que está fazendo? — disse Antônio. — Não temos nem o suficiente para nós.
— Para hoje temos. Amanhã daremos um jeito.
A criança se aproximou, aceitou a maçã e saiu contente.
Depois de comer, se deitaram. Exausto, Antônio dormiu no mesmo instante. Davi se levantou e foi alimentar a fogueira.
— O nome daquela fruta é maçã, não é? — disse a jovem surgindo atrás dele. — Dei uma mordida, é tão boa quanto dizem.
Davi não entendeu por que não conheciam uma fruta comum, respondendo-a com um gesto no chapéu. Os olhos dele encontraram o desenho do homem velho mostrando a língua.
— Sou acostumada a ficar aqui olhando para o fogo enquanto o sono não vem. Geralmente não tenho companhia.
— O meu sono vem rápido, assim que fecho os olhos. Mas posso ficar um pouco se quiser, esperando o seu chegar. Me chamo Davi, como é seu nome?
— Rafaela.
Ficaram em silêncio. Davi desejou ser bom em puxar conversa, assim como Antônio.
— Pensei que motocicletas eram coisa do passado — ele comentou com os olhos grudados na camiseta dela. Naquele instante percebeu que pouco acima do cabelo desgrenhado do homem havia um rasgo.
— Por que você olha tanto pra cá? — perguntou ela, esticando a camiseta. O rasgo se expandiu deixando visível parte do seio. — Ah, entendi!
Davi empalideceu, arregalou os olhos e balançou a cabeça.
— Eu não estava olhando para... eu... vi o seu desenho... não o seu, o desse homem ai no seu...
— Meu Deus! — Ela riu, debochada. — Vocês pé-vermelhos realmente vivem no século passado. O que tem de mais? Quer ver? Eu mostro!
Ao dizer isso, segurou a borda da camiseta na cintura e puxou para cima. Davi entrou em pânico, fechou os olhos e saiu correndo, tropeçando em tocos de madeira, até chegar em seu pelego. Deitou-se, fechou os olhos e dessa vez o sono demorou a chegar.
** Eu estava em dúvida se deveria fazer uma interrupção bem aqui. Mas agora que já fiz, queria dizer como é bom a inocencia da infância e como geralmente as nossas primeiras experiências com o sexo oposto — pelo menos foi o meu caso, para muitos pode ter sido diferente — nos marcam profundamente, não é? A gente nem sabe o que está acontecendo, só sabe que é bom, apesar de talvez errado, aquela euforia nos dá vontade de repetir seja lá o que tenha acontecido, apesar de isso dar um certo medo. Que saudades. Ainda bem que não preciso ter saudades de você, que sempre está por aqui sendo amável com seus comentários gentis. Ok, vamos continuar que no capítulo seguinte o bicho pega. **
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