O Viajante - Capítulo XXXIV - Wolfgang - Abril de 1973
Minha mãe sorriu. Ela tinha covinhas ao sorrir, assim como eu. As lágrimas marcavam suas bochechas e seus olhos estavam inchados de tanto chorar.
Rosa se aproximou e olhou para mim e depois para o bebê. Seus braços se ergueram e a mulher pegou a criança, aninhando-a contra o peito.
— Você tá bem. — Falou ao olhar para o bebê. Sua voz era tão doce. Sempre supliquei ouvi-la. Por toda a minha vida, procurei desesperadamente qualquer rastro da minha mãe e não encontrei nenhum.
Os olhos dela foram até mim.
— Você tá bem, Wolfgang.
—
— Mãe, o que aconteceu? — O sussurro saiu da minha boca antes de eu abrir os olhos.
Vi o rosto do meu pai acima de mim. Wilhelm estava sentado no chão e eu deitado com a cabeça sobre suas pernas.
— Wolfgang. — O pavor estava estampado no rosto do austríaco. — Do que você tá falando?
Dei-me conta que, provavelmente, eu tive uma convulsão. Toquei minhas narinas e não foi surpresa sentir sangue em meus dedos.
Tentei me levantar, mas meu pai impediu, colocando a mão contra o meu peito.
— Não! Fica deitado. Você acabou de ter uma convulsão. — Assenti. Minha cabeça estava explodindo de dor. — Você tá bem?
— Tô, eu tô…
— Vou te levar pro hospital.
— Não, pai.
— Você teve uma convulsão e seu nariz tá sangrando. — Ao invés da rispidez, o que percebi em sua voz foi um choro contido. — Você precisa de um médico.
Não pude o contrariar mais uma vez. O seu rosto estampava muita dor e desespero.
—
O processo até chegarmos ao hospital foi penoso. Meu pai foi até a casa da nossa velha vizinha e usou o telefone dela para chamar o Roberto, o marido de Norma. Ele alegou estar ocupado, então Wilhelm ligou para o Silva.
O patrão nos deu carona até o hospital São Francisco de Assis e esperamos na recepção. Meu pai pediu para falar com o Mikael e o loiro ficou muito preocupado ao me ver ali. O enfermeiro se certificou que iria tentar conversar com o médico para que ele me atendesse o mais rápido possível.
Apesar dos esforços do Mikael para agilizar o meu atendimento, esperei por três horas. O hospital estava muito cheio.
Minha consulta foi com o doutor Antônio, o plantonista que me atendeu no dia em que fui ao pronto socorro por conta de convulsões incessantes. Ele me pediu um exame de sangue e outros mais complicados que envolviam o meu cérebro. O médico disse que eu era epilético, o que eu sabia que não era verdade.
Ele também mandou eu tomar mais um comprimido, do remédio para convulsões, todas as noites e receitou um tônico como suplemento de nutrientes, pois talvez eu estivesse anêmico por conta dos sangramentos.
O Mikael foi quem colheu meu sangue para o exame que o doutor Antônio pediu. O enfermeiro aproveitou a minha ida ao hospital para dar pontos no corte do meu dedo.
Quando fomos embora, o Mikael já havia terminado a sua escala. Meu pai, ele e eu fomos para casa em um percurso silencioso no ônibus.
—
Mais uma vez, fui dispensado do trabalho. O Silva estava muito preocupado com a minha saúde, o que era surpreendente.
Ao chegar em casa, tomei um banho longo. Eu estava muito cansado, assim como Wilhelm e o Mikael.
Meu pai mantinha um olhar estranho. Às vezes ele parava ao meu lado e me olhava, como quem quisesse dizer algo, mas não falava nada. Supus que a razão era eu ter mencionado a minha mãe quando acordei após a convulsão.
Pela manhã, o austríaco também permaneceu em casa. O Mikael, como sempre, fez questão de fazer o almoço sem ajuda. E após a refeição, meu pai foi trabalhar.
—
O enfermeiro e eu ficamos novamente sozinhos em casa. Fui até o quarto, onde o Mikael se preparava para dormir seu habitual sono pós-plantão e me sentei na minha cama. Os seus olhos inchados me acompanharam.
— Aconteceu alguma coisa, não foi? — Ele deduziu. — Suas convulsões são sempre por causa daquele… Fenômeno.
— Aconteceu. E eu preciso contar pra vocês três o mais rápido possível.
— O que foi? — Mikael franziu o cenho, em uma expressão confusa.
— É uma história grande. — A ideia de contar tudo e reviver as emoções que senti era assustadora. — Eu vi a minha mãe quando desmaiei…
O semblante do enfermeiro ficou ainda mais atordoado.
— Ela sumiu quando eu era bebê. O nome dela era Rosa. Meu pai nunca me contou o que aconteceu… — Senti um nó na garganta. — Merda, é muita coisa pra contar. É melhor eu falar tudo de uma vez pros três.
Quando dei por mim, estava com o punho cerrado e afundado no colchão da minha cama. Algo me sufocava e apertava o meu peito. Eu não sabia se era raiva, medo ou tristeza. Ter visto a Rosa desencadeou aquela sensação em mim e relembrar o seu rosto trazia o sentimento de volta.
Os olhos do enfermeiro foram até a minha cômoda, onde ficava a fotografia do casamento dos meus pais.
— Já olhei aquela foto algumas vezes. — Ele acenou com a cabeça em direção ao porta retrato. — Eu pensava que sua mãe tinha morrido e nunca quis perguntar o que aconteceu, porque imaginei que fosse doloroso falar dela. — Mikael me olhou com o canto dos olhos. — Deve ter sido difícil… — O loiro hesitou. — Viver sem ela.
— Foi. — Eu estava mordendo meus lábios mais uma vez. — Minha tia me falou uma vez que minha mãe abandonou o meu pai.
— Sua tia é uma desgraçada. — O enfermeiro praguejou.
— Ela é… — Norma nunca mais apareceu desde o dia que me esbofeteou. Além disso, meu pai comentou que ela também não falou mais com ele e nem enviou uma felicitação de aniversário para mim, através do irmão, como fazia todos os anos. Eu gostava da ausência dela. Entretanto, tinha medo que minha tia estivesse preparando um grande bote.
Ficamos em silêncio. Senti os olhos do Mikael sobre mim e o fitei.
— Eu quero ir na casa do Levi hoje e chamar a Isabelle pra ir pra lá também. — Eu disse após a típicas e silenciosas troca de olhares que tínhamos.
— Hoje?
— Não dá pra esperar. O que aconteceu foi importante pra cacete!
— Talvez eles nem tenham tempo hoje, Wolfgang.
— Foda-se, eu preciso tentar. É urgente.
Mikael negou com a cabeça enquanto sustentava apatia nos olhos.
— Vou tentar descansar até o fim da tarde, então. Você também devia dormir um pouco. — Suspirei ao que ele disse, às vezes ele era um porre.
— Por que tá me olhando com essa cara? — Ele indagou, enquanto se deitava no colchão.
— Você é chato pra caralho. — Retruquei e só ouvi uma risada contida e cansada como resposta.
Resolvi sair do quarto. Eu sempre evitava permanecer por longos períodos, acordado, junto do Mikael no aposento. Quando chegava em casa à noite, só ia ao cômodo para dormir. O enfermeiro geralmente já estava adormecido nesse momento. Dividir o quarto com alguém que eu desejava tanto era complicado e constrangedor.
—
No fim da tarde, Mikael e eu fomos até a casa do Levi. As minhas entranhas estavam geladas e meu corpo tremia. Encarar e contar sobre o encontro com a minha mãe iria ser difícil.
Quando alcançamos a residência do mecânico, gritei o seu nome e bati palmas no portão até ele aparecer para nos receber.
— Porra, Grilo, o quarteirão inteiro ouviu. — Levi falou enquanto destrancava o portão. O rapaz tinha suor no rosto, barba desgrenhada e sua camiseta marrom estava suja de graxa. Ele tinha acabado de chegar do trabalho.
— Eu tenho uma coisa muito importante pra falar! — Vomitei todas aquelas palavras. Eu odiava quando isso acontecia, mas era difícil me controlar.
O dono da casa ofereceu espaço para o Mikael e eu passarmos.
— E o que foi que aconteceu? — Levi indagou após fechar e trancar o portão.
— A Isabelle… A gente tem que ligar pra ela! — Senti meu corpo inquieto, a sensação de urgência parecia me sacudir de dentro pra fora.
— Ela mora longe, Wolfgang. Não sei se a Isabelle consegue vir. — Mikael comentou, me olhando com o canto dos olhos. Minha paciência com o enfermeiro tinha diminuído drasticamente depois do que aconteceu entre nós.
— E eu te perguntei, cacete? — Deixei escapar.
— Porra, trocou a ferradura hoje? — Levi indagou e riu. O Mikael me encarou com tristeza no semblante. Foi uma reação inesperada. Eu saberia lidar com a raiva dele, mas não com sua tristeza. O arrependimento veio como uma navalha enquanto eu tateava, no bolso das calças, o canivete que o enfermeiro me deu de aniversário. Ele era um bom amigo.
Eu é que parecia não me contentar mais com a sua amizade.
A culpa era merecida. Eu era um verme cujo destino era se afogar em um poço de culpa, lama e merda.
— Vou ligar pra boneca. — Levi tirou os olhos de mim e fitou o Mikael. — Ei, cara, você pode dar uma olhada na minha mãe? Ela não tá muito bem.
— O que ela tem? — O enfermeiro perguntou.
— Tá com umas febres e uma tosse esquisita. — Mikael assentiu ao que o Levi disse.
O anfitrião levou o enfermeiro até o quarto da mãe dele e saiu pelo corredor, em direção à sala de estar para ligar para a Isabelle.
Eu não soube o que fazer e entrei no quarto junto do Mikael.
A mãe do Levi estava sobre a cama, recostada na cabeceira, com um travesseiro apoiando as costas.
Ela sorriu para nós. Tereza estava com uma voz rouca. Eu sentia muita pena dela ao vê-la tão magra e adoecida.
— Oi, Mikael, e… — Ela me encarou. — Seu nome é difícil. Meu filho te chama de Grilo. Eu não ensinei ele a chamar as pessoas assim.
— Wolfgang. — Respondi, dando o meu melhor para sorrir. — Pode me chamar de Grilo… — Não consegui manter o meu olhar e notei que já mordia os meus lábios.
— Só vou te chamar assim porque seu nome é difícil. — Tereza falou com simpatia e eu só consegui assentir.
— O Levi disse que você não tá bem, dona Tereza. — O Mikael se aproximou da mulher. — O que você tá sentindo?
Preferi sair do quarto nesse momento. Devia ser uma merda ser examinado por alguém com um imbecil assistindo tudo.
Fechei a porta do quarto e recostei na parede do corredor em que ficava o quarto, aguardando alguma resposta do Levi ou o Mikael terminar de conversar com a Tereza.
Mais uma vez, a lembrança do rosto da minha mãe invadiu a minha memória. Finquei as unhas na parede e mordi os lábios com força.
Doía tanto lembrar dela. Passei a vida toda sem a Rosa. A falta de uma mãe era sofrida, mas como não me lembrava do curto tempo que passamos juntos, parecia que nunca a tive. Portanto, eu estava acostumado com sua ausência. Porém, de repente, depois de tê-la visto, aquela dor excruciante ao pensar nela apareceu.
—
Mikael saiu do quarto da mãe do Levi, fechou a porta do cômodo e me olhou.
— Tá tudo bem? — Perguntou.
— Sim. — Meus lábios estavam doendo e com gosto de sangue. Me afastei da parede, com os pensamentos velozes, como numa correnteza violenta de um rio.
Olhei para o loiro e ele permaneceu diante de mim, fitando os meus olhos. Novamente, vi aquela tristeza em sua face.
— Desculpa por ter falado igual um babaca contigo. — Verbalizei após algum tempo de silêncio, quando eu já não conseguia mais encarar a tristeza dele.
— Relaxa, não foi nada. — A voz dele estava insossa.
Permanecemos ali, um diante do outro. Recostei novamente na parede. Os olhos castanhos do Mikael, cujos hematomas ao redor já quase desapareciam, percorreram o meu rosto.
Notei a respiração dele acelerada, assim como a minha.
Levi atravessou a entrada no corredor e se aproximou de nós. Ele franziu o cenho, de forma desconfiada ou confusa, eu não sabia ao certo, e olhou para mim e depois para o loiro. — A boneca tá vindo… — Falou após uns segundos embaraçosos, enquanto as sobrancelhas franzidas relaxavam. — E aí, olhou a velha, Mikael?
— Ela tá com uns sinais de infecção. Precisa ir no médico. — Mikael se voltou ao mecânico.
— Você acha que é grave? — Notei medo na voz do Levi. Ele pareceu falar mais baixo, de forma lenta e contida.
— Eu não sei. — O loiro respirou fundo. Seu olhar demonstrava cansaço. — Não parece nada muito sério, mas eu não sou médico. Posso conversar com um dos plantonistas do São Francisco pra ele dar uma olhada nela.
— Faz isso, galã. Tô preocupado com a velha Tereza.
O Mikael era admirável e eu estava ali, ressentido como uma mocinha abandonada das novelas do meu pai. Era hora de amadurecer.
—
Nós três esperamos Isabelle, sentados na cadeira da varanda. Levi e eu compartilhamos o maço de cigarro e isqueiro enquanto a jornalista não aparecia.
Após um hora, ela chegou. Levi, como sempre, ficou todo bobo ao vê-la. Ele ofereceu uma cadeira para a jornalista e a moça nos cumprimentou.
— E então, o que aconteceu? — Isabelle indagou, olhando para mim, ao sentar na cadeira. Em suas mãos, estavam algumas fotografias.
Os olhos dos três foram até mim. Eu pude ouvir a minha respiração. Minhas mãos e minha barriga estavam frias e os meus dedos suavam.
O momento de contar sobre a Rosa chegou.
— Minha mãe sumiu quando eu ainda era bebê. — Comecei a falar. Eu não conseguia encarar ninguém ali. Mantive o meu olhar sobre os meus joelhos cobertos por jeans surrados. — O nome dela era Rosa. Ninguém sabe pra onde ela foi e o que aconteceu. Meu pai sempre me proibiu de perguntar sobre esse assunto…
Meu peito doeu e minha visão foi coberta pelas lágrimas. Entretanto, eu enchi o saco de todo mundo ali para contar logo o que aconteceu. Era uma obrigação moral continuar a falar.
— Eu desmaiei hoje de manhã e acordei… No exato lugar em que eu caí duro, que foi a cozinha da minha casa. Mas lá tava meio diferente, com os meus móveis mais novos e a casa mais arrumada. Tinha um calendário na parede e… Eu sei que essa merda parece lorota, mas o calendário era 1954. — Só pude continuar porque não via os seus rostos ao olhar para baixo. — E tinha um carrinho de bebê na sala. O bebê tava se esgoelando e eu fui olhar o que tava acontecendo… Ah, cacete… Aquela criança era eu!
Parei de falar e engoli seco. Ouvi as respirações pesadas na varanda.
O que eu temia era contar o que aconteceu depois.
— Então peguei o bebê e fui pra fora da casa, a porta tava escancarada. — O sofrimento foi como a munição de uma arma que me atravessou. — Ela tava na varanda. E… Me viu. — O choro veio com intensidade e os soluços me calaram. Me senti patético chorando daquele jeito na frente das pessoas. Porém, era impossível conter o pranto.
Alguém tocou os meus ombros. Tomei coragem para olhar e vi a Isabelle, agachada em minha direção e me fitando com os olhos marejados. O Mikael, por sua vez, estava de pé ao lado da cadeira. Ele ergueu a mão até mim, mas a recuou em seguida.
— Você foi pra 1954 e viu sua mãe e a si mesmo ainda bebê, foi isso? — Isabelle indagou com uma ternura que eu não conhecia nela. Só pude assentir, os soluços não me permitiam falar. — Você voltou pro passado…
— No ônibus... — Tentei falar em meio aos soluços. — Quando vi vocês… — E não consegui terminar.
— Você também foi pro ônibus em 1966, não foi? Daquela vez que você falou que viu a gente mais novo. — Mikael perguntou.
— Foi. — A resposta saiu em um sussurro.
— É isso. — Isabelle falou. — Você vai pro passado. Foi isso que mudou tudo…
— Eu ouvi uma voz… — E mais um soluço. — Na rua 18. E era a voz da minha mãe…
As expressões deles ali eram de puro atordoamento.
— Espera, espera… — Levi se manifestou. — O Grilo voltou no tempo e por isso a gente não morreu?
Quando ele disse isso, senti mais uma onda de sofrimento e o sangue começou a pingar do meu nariz...
Mais uma vez.
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