O Viajante - Capítulo XXXII - Isabelle - Abril de 1973
Eu estava voltando das aulas do professor Marcel Desrosier, um imigrante francês que lecionava na mesma faculdade que o meu pai. Marcel era poliglota, além do francês, falava português, inglês, alemão e russo.
Meu pai o pagava para dar aulas de Inglês e Francês para mim. Mounsieur Desrosier ensinava os filhos dos colegas como uma forma de aumentar sua renda. Marcel era muito chato. Achava tudo ruim e se nossa pronúncia não fosse perfeita, dizia que brasileiros não aprendem nada direito. Bem que meu pai dizia que a única coisa boa dos encontros na casa do francês eram os vinhos que ele servia.
Eu estava no assento ao lado do corredor, com uma bolsa com livros no meu colo. O banco ao meu lado, da janela do ônibus, estava vazio. Vislumbrei a rua pela vidro enquanto bocejava devido ao cansaço. E eu ainda teria que ir para o colégio à tarde.
Ouvi um som alto. Tão alto que pareceu invadir a minha cabeça. Senti minha pele ser perfurada pelo vidro da janela e senti um forte impacto contra a minha cabeça.
Tudo se desfez ao meu redor e desapareceu.
Abri os olhos, com o peito ofegante. Sempre que eu dormia, sonhava com a lembrança do acidente. Eu já devia ter me acostumado, mas o medo ainda me atormentava ao acordar.
Me sentei na cama e olhei para a mesa de cabeceira. O relógio marcava 6h da manhã, ainda era cedo. Senti uma cólica em meu ventre e uma umidade entre minhas pernas. Abaixei o rosto e vi uma mancha vermelha, em minha região íntima, nos shorts brancos do pijama. O pequeno calendário, ao lado do relógio, denunciava o dia 19 de abril. Era a época que minha menstruação costumava descer.
Suspirei aliviada. Eu não engravidei do Eduardo naquela transa inconsequente que tivemos. Decidi usar aquele susto para dar uma lição em mim mesma e não cometer mais o mesmo erro. Nada me prendia ao Eduardo, não tinha motivos para eu ser tão idiota e ir para a cama com ele de novo.
Meu estômago estava gelado. Aquele seria o dia do encontro com os fundadores do Vozes do Povo. Se o DOPS¹ descobrisse o evento, estaríamos todos mortos.
—
Passei o dia inteiro apreensiva. Além do trabalho como detetive e das colunas dos Vozes do Povo, eu estava tentando documentar tudo o que aconteceu na rua 18. Era difícil me concentrar estando tão nervosa, mas consegui datilografar algumas folhas de ofício.
Li os documentos do que intitulei Arquivo da Rua 18. Narrei tudo o que aconteceu desde que o Mikael e o Wolfgang me procuraram. Nitidamente, via-se que algo tinha alterado o passado e que o Wolfgang era o gatilho daquela história toda, mas nem ele mesmo entendia o que estava acontecendo.
Foi difícil escrever tudo aquilo. Quando eu me lembrava dos acontecimentos no ônibus, sentia náusea. Precisei abrir a janela do apartamento e tomar ar para não acabar vomitando sobre a escrivaninha.
—
Eu precisava mascarar o meu pavor de ir ao evento junto da Catarina. Queria parecer forte e me vesti com uma camisa preta e calças da mesma cor. Coloquei um par de tênis, preocupada que eu pudesse ter que correr. O revólver estava na minha bolsa e nunca tive tanto medo de precisar usar a arma.
Dirigi até o prédio antigo em que ficava a sede do jornal e Catarina me deu carona até o local do encontro com o carro dela.
—
Chegamos em uma chácara afastada da cidade. Fui bem recebida por Januário, o dono da propriedade. Além dos fundadores, vários estudantes estavam presentes.
Meu coração estava acelerado e minhas mãos suavam. Recusei o vinho que ofereciam, assim como os pedaços de queijo que serviam. Tudo o que eu conseguia fazer era ficar sentada em um sofá, roendo o canto das unhas. Eu arrancava pedaços das cutículas com meus dentes e, em alguns dedos, isso fazia sangrar. Era um movimento compulsivo, frenético, impossível de ser interrompido.
— Essa é filha do Álvaro da Silveira. — Ouvi Catarina dizer para o Airton e o Januário. Eles se aproximaram do sofá que eu estava e eu me levantei, como sinal de respeito.
— Isabelle. — Januário disse lentamente. Ele era um homem de meia idade, com pele bronzeada e cabelos curtos e encaracolados. No meio dos cabelos castanhos, havia alguns fios grisalhos. — Eu conheci o seu pai, sabia?
— Conheceu? — Indaguei. Minha barriga estava gelada.
— Sim. Os boatos, na faculdade, que um professor do curso de História incentivava os alunos a encararem a ditadura se espalhou muito rápido. Eu quis conhecer esse homem corajoso.
— Meu pai foi um grande homem.
— Não perca as esperanças, Isabelle. — Airton se manifestou. — Ninguém sabe o que aconteceu com o seu pai.
— Todo mundo sabe o que acontece nos porões do DOPS. — Acabei rebatendo de forma ríspida. Catarina fitou Airton com censura.
— Não acho que seja momento pra falar disso, Airton. Por que a gente não foca no que o Álvaro fez de bom? E nas contribuições da Belle ao nosso jornal? — Airton assentiu ao que a mulher disse, um tanto sem jeito.
— Seu pai mobilizou muitos estudantes a pensarem de forma crítica e enxergarem as mazelas do regime, Isabelle. Alguns deles eram filhos de militares, o que me surpreendeu. — Januário continuou, após bebericar sua taça de vinho. — Ele se comunicava muito bem com as pessoas e tinha muito carisma.
— Ele era… Incrível. — Meus olhos marejaram.
— Assim como sua filha mais velha. — Catarina sorriu para mim. — Sua reportagem sobre a violência policial contra a distribuição de cestas básicas do coletivo Democratização fez muito sucesso, sabia?
— Ah, essa foi bem feita! Tão falando dela até hoje lá na faculdade. — Airton se manifestou. Ele era um homem de estatura baixa, cabelos raspados e óculos. — Não sente vontade de fazer parte de nenhum coletivo, Isabelle? Ou partido?
— Não. Eu só quero continuar o que meu pai fazia. — Tentei sorrir com simpatia e falhei miseravelmente. — Conscientizar as pessoas. Os três assentiram ou sorriram e o assunto se encerrou.
Depois disso, conversamos sobre algumas manifestações, a desigualdade e as epidemia que vinham acontecendo nas regiões periféricas. Eu não conseguia me sentir à vontade. Tudo que eu desejava era ir embora.
—
Felizmente, logo Catarina se despediu das pessoas e fomos embora.
No caminho, demos de cara com uma blitz. Os dois policiais pararam o carro e pediram a habilitação da minha antiga professora.
Catarina entregou o documento e eles olharam a habilitação dela e conversaram entre si.
Meu estômago revirou. Eu estava carregando um revólver na bolsa e nós duas estávamos atuando ilegalmente no Vozes do Povo. E se eles soubessem disso?
— Calma, minha querida. — Catarina sussurrou para mim ao notar o meu nervosismo.
Após conversarem, um dos policiais voltou, devolveu a habilitação da Catarina e nos liberou.
— Viu? Não foi nada. — Ela verbalizou após alguns minutos em silêncio. — A maioria desses homens tão cumprindo ordens, Isabelle. É o trabalho deles.
Eu gostava muito da Catarina, mas nesse momento, meu rosto ardeu de raiva e senti vontade de bater nela.
— Torturaram e mataram o meu pai! — Rebati em voz alta. — Isso foi só o trabalho deles, Catarina? Toda essa gente desaparecida… É só trabalho? Só ordens?
— Belle, eu não tô atenuando o que eles fazem. — Ela me olhou com o canto dos olhos e tornou a encarar a estrada. — Pelo contrário. Essas pessoas cometem crueldades, mas se você conversar com um deles, vai ver que são homens comuns. Têm família, amigos… — Ela suspirou. — Não são assassinos sem sentimentos. A ditadura impõe que eles não considerem seus atos como errados. Eles tão afundados nessa ideia de perseguir pessoas. Acreditam que o que fazem é justiça. O regime desumaniza as pessoas. Tantos seus agentes, como suas vítimas.
Quando dei por mim, eu estava chorando.
— Por isso que seu pai… E você são tão importantes. O único ideal que seguem é a informação. Pessoas informadas são mais resistentes a lavagens cerebrais desse tipo. — Uma de suas mãos tocou o meu ombro. — Mas os agentes dessa crueldade devem ser penalizados, por mais que sejam seres incapazes de ver, eles têm os punhos manchados de sangue e não existe razão que absolve essa culpa. — E rapidamente, voltou sua mão ao volante.
—
Após voltar para casa, chorei até dormir. As palavras de Catarina não saíam da minha cabeça. Ela tinha razão e aqueles fatos eram assustadores.
Sonhei com o acidente de novo. Eu já não suportava mais acordar assustada e não descansar devido ao sono atormentado. E mais uma vez, acordei enquanto o dia ainda estava amanhecendo e o céu estava pálido.
Logo cedo o meu telefone tocou. Atendi sem muita vontade. Eu não queria falar com ninguém naquela manhã, meu único desejo era desaparecer.
— Alô?
— Oi, Isabelle. É o Leonardo. — Leonardo era um antigo colega da faculdade que trabalhava como jornalista investigativo. Eu pedia para revelar as fotos das minhas câmeras fotográficas descartáveis, no trabalho como detetive. A qualidade das fotografias delas eram péssimas. Era a primeira vez que eu mandava um rolo de filme de uma câmera boa.
— Eu revelei as fotos que você me pediu. Mas os negativos vieram muito estranhos. Só tinham duas fotos decentes. — Ele continuou. — As outras três… — Ele hesitou. — Ficaram totalmente pretas. Tipo, muito escuras mesmo… Onde você tirou?
— Eu… — Engoli seco, sentindo minhas mãos tremerem. — Tava meio escuro… — Menti.
— Eu já revelei fotos escuras. Mas nunca uma coisa assim. Geralmente, as fotos não saem quando não tem luz. As suas ocuparam o filme, mas saiu tudo preto. Parece que você tirou de um lugar sem nenhuma fonte de luz.
Meu estômago gelou ainda mais. A última fotografia foi tirada dentro do ônibus, o que justificaria a escuridão. Mas ainda assim, a luz esmeralda do céu iluminava o veículo. As outras duas tinham o céu resplandecente como iluminação, não fazia sentido saírem totalmente negras.
Aquela história definitivamente não era algo desse mundo.
¹Departamento de Ordem Política e Social. Foi conhecido por sua repressão agressiva aos movimentos sociais e censura durante a Ditadura Militar.
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