O Viajante - Capítulo XXX - Levi - Abril de 1973
Abri os olhos. Várias nuvens de tempestade cobriam o céu acima. Eu estava caído feito merda no asfalto. Algumas gotas de chuva estavam molhando minha cara. Aquilo ia virar um temporal logo.
Minha cabeça estava tonta. Lembrei da última coisa que vi antes de desmaiar: eu, ainda moleque, morto no ônibus, com a cabeça machucada, ensanguentada e o pescoço virado para o lado, de um jeito estranho.
O vômito veio. Precisei me sentar para não engasgar e eu regurgitei tudo no asfalto. A marreta que eu carregava estava jogada do meu lado. A Isabelle também estava sentada no asfalto, abraçada com a bolsa em que guardava a máquina fotográfica. Ela olhava para cima e a chuva molhava o seu rosto lindo.
O Mikael estava se levantando do chão, com a caderneta da jornalista em mãos. Ele ficou de pé, guardou o caderno no bolso das calças e foi até o Grilo, que ainda estava apagado.
Um trovão alto veio e a chuva ficou mais forte. Parecia que eu tinha trabalhado pesado o dia inteiro, pois meu corpo estava pesado e eu só queria ficar ali, sentado no asfalto e tomando chuva.
O galã parou ao lado do maluco desmaiado, porém os joelhos dele cederem e ele caiu sentado. Já a princesa continuava sentada, sem se mexer, só olhando para o céu.
Pelo menos não tinha nenhum filho da puta ali para encher o saco, como da outra vez. Havia só nós quatro, totalmente fodidos.
A chuva ficou ainda mais grossa. Depois de um tempo, a água começou a escorrer pelo asfalto e a gente continuava ali.
Senti que não conseguia mais ficar parado e me levantei. Minha cabeça girou e eu firmei os pés no chão para não cair, em seguida, andei até a princesa e ela não me olhou. A moça tinha tirado os óculos e os segurava. Já não fitava mais a chuva, seu rostinho de anjo encarava o chão.
Agachei diante dela.
— Isabelle?
A moça me olhou.
— Vamos sair daqui. Tá chovendo muito. — Continuei. Seus olhos brilhantes piscaram e ela negou com a cabeça.
— Que merda foi essa… — Ela balbuciou e esfregou o rosto. Ergui a mão para ela, que a segurou para se apoiar e ficar de pé.
O Mikael estava sentado, com a cabeça do Grilo sobre suas pernas. O magrelo continuava apagado. Isabelle arregalou os olhos ao ver aquilo e correu até os dois. Eu fiz o mesmo.
— Ele ainda não acordou? — A princesa perguntou.
— Eu já tentei acordar ele várias vezes… — O Mikael, de vez em quando, fazia uma cara que me perturbava. Eu já tinha visto homens desesperados quando estava no reformatório. Lá dentro, os moleques viravam bichos. Brigavam e gritavam como animais e, às vezes, a fúria escalava para coisas ainda mais horríveis. Em outros momentos, eles se desesperavam como bichos caçados. Nessas horas, faziam exatamente a mesma expressão que eu via nos olhos do Mikael. Mas os caras do reformatório gritavam, choravam, corriam quando estavam com medo. O enfermeiro não. O rosto dele não mudava, só os olhos. Nunca tinha visto alguém assim. Ele fez essa cara quando o Grilo teve que ir pro hospital, quando falou do pai e estava fazendo ela ali, naquele momento.
— Vamos levar ele pro carro. — Isabelle sugeriu. Ajudei o galã a levantar o magrelo. A camiseta cinza dele estava suja de sangue. Ver aquela mancha vermelha me fez lembrar dos cadáveres do ônibus e só não vomitei porque não tinha mais nada no estômago.
A gatinha abriu o carro e ajudei o Mikael a colocar o Grilo no banco de trás. Isabelle e o enfermeiro entraram no veículo e eu voltei para pegar a marreta.
Retornei com a ferramenta em mãos e entrei pelo lado do passageiro. O Grilo estava deitado no banco de trás, com os pés sobre as pernas do enfermeiro, que ainda tinha aquele olhar sinistro.
Ninguém falou nada. Ficamos lá dentro, ouvindo a chuva. Eu estava com frio, não via a hora de me cobrir com alguma coisa quente.
Ouvi uma tosse alta. O Grilo se levantou, enquanto tossia. Senti alívio, eu estava preocupado com ele.
Olhei para o Mikael para ver se o galã ainda tinha aquele olhar bizarro. Constatei que seus olhos não estavam mais perturbadores. Na verdade, pareciam conter o choro.
— Tá tudo bem? — Ele indagou para o magrelo. A Isabelle os olhava com um semblante preocupado.
— Aquilo no ônibus foi horrível… — O Grilo falou com uma voz fraca. — Eu não quero mais ver aquela merda… — Ele esfregou o rosto. — Nunca mais.
— Nem eu, tá maluco? Nunca mais entro naquela bosta. — Meus braços estavam doendo pela força que usei para amassar a lataria da merda do ônibus e, toda vez que eu me lembrava do que vi, sentia vontade de vomitar.
— Eu também não quero mais ver nada daquilo. — Isabelle falou daquele jeitinho mandão. Ela era a única luz naquele horror todo. — Mas a gente precisa decifrar o que tá acontecendo.
— É, a gente precisa… — O magrelo concordou, cabisbaixo.
— Tem alguma coisa em você, Wolfgang. Você é a peça central dessa história toda… — A jornalista continuou. — Quando eu penso nessa história, percebo que você tem alguns fragmentos de memórias e sensações… — Ela falava de um jeito muito bonito e era estudada e inteligente. Eu mal conseguia prestar atenção naquele mistério todo, porque meus olhos focavam nela e no seu charme e beleza. — Que dão pistas.
— O que eu sinto é medo. — O Grilo respondeu. — E também um sofrimento grande. Mas nunca senti tanta dor como no ônibus. Eu… só queria que tudo acabasse. Foi horrível ver vocês mortos. — Fui trazido de volta ao mundo quando ele falou aquilo. O meu cadáver morto, com o pescoço quebrado e sangrando, invadiu meus pensamentos novamente.
— E teve aquela vez na casa do Levi. — Isabelle acenou com a cabeça em minha direção. — Você me olhou e me pediu desculpas.
— Eu me senti uma criatura detestável… — O rapaz de cabelos pretos sussurrou.
— Medo, dor e culpa? — O Grilo assentiu à pergunta da boneca.
— Sobre um acidente de ônibus em que todos nós morremos… — Mikael completou. — E ainda teve a greve. Você falou que isso era importante, Wolfgang.
— Não tem como saber se o Grilo morreu também. Eu não vi ele morto lá no ônibus. — Eu tinha ido um pouco mais a frente do que eles, onde encontrei o meu próprio corpo morto.
— A gente não explorou o ônibus inteiro. — O enfermeiro rebateu.
— Então, o que a gente pode deduzir é que a gente morreu em um acidente de ônibus. — Isabelle olhou de relance para cada um de nós. — Aquela greve dos motoristas em 1966 foi por conta da sobrecarga de trabalho. O excesso de trabalho ou a greve devem ter influenciado esse acidente…
— Caralho, você fala bem demais. — Deixei escapar. — É muito esquisito a gente já ter… Morrido antigamente. — Aquela conversa era completamente maluca. — Mas estar vivo hoje. Parece que… O passado mudou. — Franzi o cenho, sem acreditar no absurdo que era tudo aquilo. — Porra, que conversa esquisita.
Isabelle assentiu ao que falei e seus olhos se perderam em pensamentos.
— A gente já descobriu muita coisa… — O galã falou com hesitação. — Agora falta entender como o passado se alterou.
— Como… — O Grilo balbuciou. — O passado… Se alterou. — O rapaz falou aquilo devagar, feito um drogado. Bruscamente, ele levou os dedos até o nariz e eu vi o sangue vazar por entre seus dedos magrelos e pálidos.
— Essa merda sempre acontece… — Ele reclamou com uma voz anasalada.
O enfermeiro tocou a parte de trás da cabeça dele, com cuidado, e a empurrou para frente, fazendo com que o maluco cabeludo ficasse com a cabeça baixa. Aquele monte de sangue, que escorria do nariz, deixou ele todo sujo.
Isabelle deu partida no carro e fomos até o apartamento dela.
—
Em seu apartamento, Isabelle ofereceu outra camisa do seu ex-namorado para o Grilo, já que a camiseta do moleque ficou ainda mais suja quando o seu nariz sangrou.
O ex-namorado da Isabelle devia ser um idiota. Ele namorou a mulher mais linda daquela cidade e deu um jeito de perdê-la. E ela não era só linda, também era inteligente e corajosa. Eu não sabia o motivo pelo qual eles terminaram, mas o cara devia estar arrependido até hoje. Talvez ele fosse um daqueles burros que não sabe lidar com tudo o que tem.
—
Depois disso, nós fomos embora. Ficou acordado que nos encontraríamos em minha casa para conversarmos melhor. Todo mundo estava com a cabeça fodida depois de ver os cadáveres no ônibus.
Tentei, a todo custo, esquecer o que eu vi. Os cadáveres invadiam a minha memória como pragas. O do Mikael, da Isabelle… E o meu próprio.
Quando cheguei em casa, Tereza e Lurdes notaram que eu estava estranho naquela noite, após retornar da casa da Isabelle. As velhas me encheram de perguntas e eu tive que desconversar em todas elas.
—
Foi difícil pregar o olho após eu ir me deitar, quando todas as luzes da casa estavam apagadas e só tinha silêncio dentro dela. Me revirei na cama por horas, tentando esquecer aquelas merdas de defuntos. Mas era impossível, quanto mais eu tentava esquecer, mais forte as lembranças ficavam.
Meus pensamentos demoraram a ficar lentos e o sono só me atingiu no alto da madrugada.
Eu estava sentado no banco do ônibus, olhando para fora. Para onde eu iria ainda era um mistério. Tudo o que eu queria era fugir do reformatório.
Com pouco dinheiro, sem rumo, sem futuro, sem pai, sem amigos… O que eu tinha na vida?
Só a minha mãe.
Pensar nela me fez chorar. Como ela ficaria em saber que fugi do Santa Maria e sumi no mundo? Eu daria mais esse desgosto para ela?
O mínimo que eu poderia fazer pela minha mãe era voltar para o internato e essa foi a minha decisão.
Sequei as lágrimas e me levantei do assento. Eu desceria na próxima estação.
Antes que meus dedos tocassem a barra de metal, ouvi um baque muito alto e senti o meu corpo caindo para a esquerda, como todo o resto do ônibus. Parecia que, nesse momento, o tempo passava devagar. Cada segundo era registrado pelos meus olhos. A queda foi lenta…
E eu estava pronto para sentir o impacto dela quando tudo escureceu.
Acordei gritando, levantei com pressa da cama, corri até o banheiro e vomitei. Me afastei da privada, eu estava agachado na frente dela, e fiquei de pé. Meu coração parecia prestes a sair pela minha boca e eu estava tremendo.
Eu, um marmanjo com 21 anos nas costas, que já foi preso duas vezes, tremendo de medo na madrugada após um pesadelo.
Foi quando percebi que era uma lembrança. Me recordei da minha morte no acidente. A sensação era apavorante. Eu nunca senti tanto medo em toda a minha vida.
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