O Viajante - Capítulo XXVII - Isabelle - Abril de 1973
Minha cabeça estava atordoada com tudo o que aconteceu no dia anterior. Meus olhos se perderam no papel de ofício na máquina de escrever. Eu trabalhava como detetive particular às vezes. Devido ao Vozes do Povo ser um projeto social, eu precisava ganhar a vida com outro trabalho, embora não gostasse muito de investigar acerca de coisas como infidelidade alheia e podres familiares.
Eu não podia me distrair. O meu dia seria cheio, pois, eu pretendia levar um dossiê para a mulher que contratou os meus serviços. Ela pediu para eu investigar se o marido estava tendo um caso extraconjugal e eu documentei todas as evidências que encontrei. Depois disso, passaria no apartamento do Eduardo para pegar a sua câmera fotográfica emprestada.
A segunda parte me deu calafrios. Encontrar o meu ex me assustava. Da última vez que nos vimos, demos um ponto final definitivo no relacionamento. O que eu encontraria quando o procurasse era imprevisível.
Acendi um cigarro e voltei a datilografar. Eu me sentia patética. A Isabelle da Silveira que escrevia sobre o caso extraconjugal de um gerente de banco não era a mesma que publicava em um jornal subversivo.
Após terminar o dossiê, fui até o banheiro para tomar um banho e me arrumar. Coloquei a máscara de mulher forte mais uma vez. Fiz a minha típica maquiagem composta de uma sombra escura nas pálpebras e batom vermelho. Eu tentava mentir para as pessoas e me passar por uma moça com garra e coragem. Vesti calças boca-de-sino pretas e uma sóbria camiseta carmesim com gola alta. Olhei no espelho e vi uma mulher inabalável e de olhar decidido. Essa não era eu.
—
Dirigi até uma cafeteria para encontrar a minha cliente. Apresentei o dossiê para ela com inúmeras evidências de que seu marido a traía. Ela foi firme como aço. Provavelmente, estava mascarada de mulher forte, assim como eu. De certo, chegaria em casa e choraria toda a sua dor.
Da cafeteria, segui para o prédio em que Eduardo morava. O porteiro já me conhecia. Ele telefonou para o meu ex e autorizou que eu subisse até o quarto andar, onde ficava o apartamento do Edu.
Bati na porta e ele atendeu. Meu coração acelerou assim que eu o vi. Ele estava com seus cachos levemente bagunçados, usando uma camiseta branca velha e bermuda preta. O rapaz não estava arrumado, mas era bonito e vê-lo assim me fez recordar de quando ele se levantava da cama após momentos de amor.
— Oi, Belle. — Eduardo sorriu ao me ver. — Você tá bonita. — Era um galanteador maldito.
— Oi, Eduardo. — Falei com firmeza na voz. — Obrigada. — Agradeci ao seu elogio. — Como você tá?
— Bem. Entra. — Ele ofereceu espaço para eu entrar em seu modesto apartamento de paredes verdes. — E você?
— Tô bem. — Eu não queria falar sobre a minha vida para ele.
— Bem mesmo? De verdade? — Indagou conforme fechava e trancava a porta do apartamento.
— Eu tô seguindo como posso. — Senti que a firmeza desapareceu e soei doce. — Não vou enrolar, eu vim te pedir um favor. — Fui direta. Meu coração estava acelerado e eu sabia que ainda era apaixonada pelo Eduardo. O melhor era sair o mais rápido possível dali.
— Pode falar. — Ele acenou com a cabeça para o sofá, em um convite implícito para eu me sentar.
— Não, não. É rápido. — Neguei o convite e permaneci de pé. — Você pode me emprestar sua câmera fotográfica? Eu compro o filme e pago a revelação.
— Claro que empresto, Belle. — Ele sorriu de novo e meu corpo arrepiou. — Não se preocupa com nada disso. Eu tenho um monte de filmes aqui…
Eduardo andou até um armário no canto da sala, abriu uma gaveta e tirou de lá sua câmera fotográfica e uma bobina de filme fotográfico, em seguida abriu a um compartimento da câmera e inseriu a bobina dentro dele. Observei o processo em silêncio, enquanto o suor banhava as minhas mãos.
— Aqui. — Eduardo andou até mim e entregou a câmera. — Se quiser, eu revelo pra você depois.
Guardei a câmera na minha bolsa e o olhei nos olhos. Ao encará-lo, meu coração acelerou ainda mais.
— Obrigada. Não precisa revelar, eu resolvo isso depois.
— Vai ter alguma coisa que eu não possa ver? — Sua voz soou sarcástica.
— Eduardo, por favor. — Suspirei. — Que merda. Esquece isso. — Abri a bolsa e peguei a câmera lá de dentro para devolver a ele.
— Calma! É brincadeira. — Eu odiava aquelas brincadeiras do Edu. — Você tá precisando da câmera, Belle. Eu sei que não iria vir aqui se não tivesse.
— É, eu tô.
— Só fiz uma brincadeira. — Assenti ao que ele disse, desviei os olhos e guardei novamente a câmera na minha bolsa. Eu não queria me prolongar ali. Eduardo me irritava e desestabilizava.
— Obrigada. Te devolvo o mais rápido possível. — Eu não queria olhar nos olhos dele. — Agora eu preciso ir embora.
— Isabelle… — Meu ex-namorado se aproximou de mim e tocou o meu ombro. — Já vai? Tão rápido assim?
— Eu tenho muita coisa pra fazer hoje. — E não era mentira. Eu pretendia ir ao porão do Vozes do Povo à noite.
— Faz tempo que a gente não se vê.
— Porque a gente terminou! — Rebati, impaciente.
— Eu não queria isso…
— Não quero começar com essa conversa de novo. — Virei-me para ele. — A gente já colocou um ponto final nessa história.
— Eu ainda amo você. — Meus olhos marejaram quando Eduardo falou aquelas palavras. Sua mão foi até o meu rosto e ele o acariciou. — Não… Não me olha com tanta tristeza. Tudo o que eu queria era te ver feliz.
Não encontrei palavras para o responder. Eu amava o Eduardo, mas não podia perdoar o fato de ele ter me deixado sozinha no dia em que tentei cometer uma loucura contra mim mesma. Eu o avisei que iria fazer isso e ainda assim o rapaz foi embora e me largou no meu apartamento.
As lágrimas escorreram dos meus olhos e o Eduardo as secou com os dedos. Ele aproximou o rosto do meu e depositou um beijo suave em meus lábios.
Não consegui resistir ao beijo dele. Toquei nossos lábios com mais intensidade e joguei a bolsa sobre o sofá. Envolvi os seus ombros com os meus braços. Eduardo abraçou a minha cintura e me puxou para mais perto de si. Nossos corpos se tocaram e eu senti o calor dos braços dele.
Eu sabia que aquilo era um erro, mas eu não era mais senhora de mim mesma.
O rapaz segurou a minha mão e me guiou até o quarto. No caminho, nos beijamos com desejo, de forma que nossas bocas só se separavam quando nosso fôlego acabava.
Entramos no quarto e, em meio aos beijos, tirei os óculos e as sandálias com pressa. Nós nos deitamos em sua cama. Eduardo se inclinou sobre mim, despiu a minha blusa e a dele e tocou os meus seios, ainda cobertos pelo sutiã. Suas mãos deslizaram do busto até a minha cintura e o rapaz a segurou, afundando os dedos na minha pele. Seus olhos me fitaram com um brilho lascivo. Eu contemplei o corpo dele. Sua musculatura não era tão volumosa, mas era evidente, tornando sua constituição atlética e esbelta. A respiração do rapaz estava ofegante e o peito arfava discretamente.
Eduardo percorreu seus lábios sobre o meu pescoço e o beijou várias vezes. Seus dedos apressados despiram as minhas calças e as roupas íntimas.
A forma como nossos corpos ainda ansiavam um pelo outro era assustadora. Após ficarmos nus em meio aos lençóis da cama dele e trocarmos carícias, consumamos o desejo e transamos.
Ao fim do seu clímax, Eduardo se deitou ao meu lado. Meu corpo estava relaxado e as pernas ligeiramente doloridas.
Aquilo foi um erro terrível. Eu não deveria ter me entregado a alguém incapaz de me apoiar quando necessário. E, além disso, não usamos nenhum método contraceptivo. Engravidar do Eduardo seria a ruína da minha vida.
— Foi um erro… — Sussurrei.
Ele me envolveu em um abraço.
— Por que seria, Isabelle?
— A gente terminou…
— Mas a gente não queria terminar. Eu amo você e você me ama. Qual o problema nisso?
Me desvencilhei do abraço dele e me sentei na cama
— Eu quis terminar. — Falei. Eduardo se sentou na cama, atrás de mim, e colocou as mãos sobre os meus ombros, massageando-os. Ele sabia que adorava receber massagem após o sexo.
— Da última vez que a gente se viu, você disse que ainda me amava…
— E amo, mas não posso contar com você. — A pressão dos dedos dele contra os meus músculos me acalmava.
— Se você me aceitar de volta, eu nunca mais vou deixar você desamparada.
Voltei a chorar. Meu pranto foi silencioso.
— Não… — Murmurei. — Não dá mais, Edu.
Eduardo tirou as mãos dos meus ombros bruscamente e suspirou com impaciência.
— Foi só um erro, Isabelle. Por que você fica remoendo tanto isso? Vai desistir da gente por uma bobagem?
Ao ouvir o que ele disse, levantei da cama, peguei as roupas jogadas pelo chão e comecei a me vestir apressadamente. A raiva queimava no meu peito. Eram por atitudes assim que eu não podia ceder e voltar para os braços do meu ex.
Eduardo percebeu a enorme merda que tinha falado, vestiu sua bermuda, levantou da cama e veio até mim.
— Desculpa. — Pediu e ergueu a mão para acariciar o meu rosto. Eu me afastei para que ele não me tocasse.
As calças já passavam pelos meus pés. Só faltava vestir aquela peça.
— Isabelle, fala alguma coisa. — Eduardo suplicou. Após eu vestir as calças, peguei os meus óculos na mesa de cabeceira e os coloquei. Em seguida, sentei na cama e calcei as sandálias.
Levantei sem dizer nada e caminhei para fora do quarto. O rapaz foi atrás.
— Você vai embora assim? — Indagou.
— Vou. — Respondi secamente. Peguei a bolsa que tinha deixado em cima do sofá. — E eu não preciso da sua câmera…
— Não, Belle. Você me pediu ela. Eu… Pelo menos com isso, eu posso ajudar.
Eu realmente estava interessada em documentar o fenômeno da rua 18. Do contrário, não teria aceitado a oferta dele.
— Depois que eu usar, deixo na portaria pra você pegar.
— Isabelle…
— Destranca a porta, por favor.
— Vamos conversar… — Mais uma súplica. Meu coração me dizia para o perdoar, envolvê-lo com os meus braços e o encher de beijos. Entretanto, o meu orgulho e a minha dignidade eram mais fortes do que um coração bobo.
— Eduardo! — Aumentei a intensidade da minha voz. Eduardo foi até a porta e a destrancou.
— Tchau. — Ele falou tristemente. Com passos rápidos, saí do apartamento. O rapaz não falou mais nada, desistindo de pedir para eu ficar. Sua desistência era o melhor para nós dois. Eu fui embora sem olhar para trás.
—
Chorei muito ao chegar em casa e passei o dia prostrada na cama. Foi só perto das 8h da noite que tomei coragem para ir ao Vozes do Povo e deixar os meus textos naquele porão. Encontrei a Catarina lá, montando as edições a serem publicadas. Ela me convidou para um encontro com os outros fundadores do jornal. Não pude negar, mas senti medo do que poderia acontecer se a polícia descobrisse algo sobre aquele encontro.
Restava-me seguir. Me acovardar em uma ocasião tão importante quanto aquela era fugir do legado que meu pai deixou
—
Na manhã seguinte, recebi uma carta da minha mãe. Não tive coragem de abrir. De certo, Amália escreveu sobre como estava a vida no interior e acerca da minhas irmãs. Eu era muito próxima da Rita, que estava com 16 anos e Cecília, de 12, me tinha como exemplo. Era doloroso ler notícias delas e responder com mentiras, dizendo que eu estava bem e que não me envolvi com nada arriscado.
O restante do dia foi vazio. Meus pensamentos me guiaram para o meu passado de alegria. Viajei para as recordações do meu pai, em uma época que a minha mãe, as minhas irmãs e eu éramos felizes. Quando eu ia para o passado, o presente se desligava.
Passei o dia inteiro agindo como uma máquina. Meu corpo estava vivo e eu datilografei textos afiados para o Vozes do Povo, fiz faxina no apartamento, fui ao mercado e realizei uma compra para semana…
Tudo isso sem ao menos prestar atenção ao que acontecia diante dos meus olhos.
Só senti a minha mente despertar perto do entardecer, quando decidi iniciar a documentação do fenômeno da rua 18 e toda aquela história misteriosa envolvendo o Wolfgang, o Levi, o Mikael e eu.
—
Dirigi até à bendita rua. Desci do carro carregando uma bolsa de couro transversal. Dela, tirei um caderno e uma caneta, olhei para o relógio de pulso e anotei:
1.ª Foto: Tirada próximo das 5:30 da tarde do dia 13 de abril de 1973.
Guardei o caderno e a caneta e peguei a câmera, aproximei o meu olho do visor e enquadrei a rua. Eu estava na calçada oposta da loja de discos. Meu dedo pressionou o botão de fotografar e ouvi o característico barulho da captura da imagem. A câmera estava no modo automático, portanto não precisei arrumar o foco manualmente.
Voltei para casa e datilografei a cronologia do fenômeno.
Em 1966, ocorreu um acidente de ônibus na rua 18. Um dos passageiros faleceu. Seu nome era Mikael.
Eu tinha colocado o caderno, que estava em minha bolsa, sobre a escrivaninha. Ao lado da máquina de escrever, havia um suporte para caneta de tinteiro e um frasco de tinta. Peguei a caneta, molhei-a na tinta e anotei nas páginas do caderno:
O que é aquele fenômeno do céu de brilho verde? Por que o Mikael está vivo hoje, se ele morreu no acidente? Onde está a minha contraparte e a do Levi? O que o Wolfgang tem a ver com isso?
A ponta da caneta se movia apressadamente, depositando a tinta preta sobre o papel:
Wolfgang.
Sublinhei o nome dele.
Causador do fenômeno. Tem convulsões anormais e sem sequelas quando entra em contato com o estranho acontecimento. Seu nariz sangra. Ele sente tristeza.
Minha respiração ficou ofegante e senti um calafrio.
Medo.
Fitei a palavra “medo” e tornei a escrever.
E me pediu desculpa por ter feito algo, mas não se lembra o que é.
Lembranças dolorosas…
Culpa?
Bruscamente, a tinta da caneta vazou sobre o papel, deixando uma enorme mancha preta. Eu soltei um grito contido enquanto as minhas mãos tremiam e meus olhos marejavam.
Por alguns instantes, me perguntei com que tipo de situação eu estava lidando.
E quem era ou o que era o Wolfgang
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