O Viajante - Capítulo XXIX - Wolfgang - Abril de 1973
Parei diante do ônibus tombado e fitei a escuridão dentro dele pelo para-brisa. A todo instante, eu precisava secar as lágrimas dos meus olhos.
Eu não conseguia parar de pensar na lembrança daquela voz feminina e isso doía mais do que tudo.
Senti uma mão sobre o meu ombro. Olhei para trás e vi o Mikael. O cintilar esverdeado do céu o iluminava. Meu pranto continuava a escorrer por minhas bochechas enquanto nos olhávamos.
— Sai de perto do ônibus, Grilo. — Levi estava a poucos metros do Mikael. Sua voz ecoou por todo espaço, como todos os sons naquela manifestação estranha da rua 18. — Vou tentar aumentar o espaço pra gente passar.
— Você consegue sozinho? — Mikael indagou.
— Consigo. Eu sou forte. — O mecânico falou em um misto de sarcasmo e nervosismo. Eu fiz o que ele pediu e me afastei do veículo.
— Espera um pouco. — Isabelle disse enquanto se aproximava do ônibus. Ela fotografou o enorme automóvel. — Mikael, 4.ª Foto: O ônibus acidentado. Tirada durante o fenômeno da rua 18 no dia 15 de abril de 1973.
O enfermeiro anotou o que ela disse. A mulher se afastou da lataria tombada, deixando o caminho livre para o Levi.
O mecânico se aproximou do ônibus, segurou o cabo da marreta com ambas as mãos e afastou a cabeça da ferramenta do seu ombro.
Após um recuo de um passo, Levi bateu a marreta com tudo na divisão do para-brisa com a parte que deveria ser o teto. Como o veículo estava tombado, o seu teto estava à esquerda do mecânico.
O som da pancada ecoou, amplificado, para todos os lados e meus ouvidos doeram. Meu corpo desejou fugir, como um rato, perante aquele barulho, porém eu apenas cobri minhas orelhas com as mãos.
No primeiro golpe, a lataria amassou apenas discretamente e trincou as partes de vidro, do para-brisa, que permaneciam intactas.
Levi arfou, em uma respiração alta, e bateu a marreta no mesmo local que antes. O vidro trincado se soltou e os cacos caíram no chão, resplandecendo sob a luz no céu como pequenas pedrinhas cintilantes. Nesse momento, o mecânico recuou alguns passos para não ser ferido pelo vidro. A lataria entortou um pouco mais para esquerda com o segundo golpe e o rapaz parou para tomar um pouco de ar.
A cada pancada, meus ouvidos doíam, por mais que eu os cobrisse com as mãos. Senti uma agitação intensa no meu peito junto do excruciante sofrimento que me atingia.
Após tomar fôlego, o Levi acertou a marreta na lataria à sua esquerda várias vezes. Os estalos altos me atordoaram.
A passagem do para-brisa tinha sido alargada pelos golpes do mecânico.
— Vamos entrar! — Ele disse, ofegante. — Que eu abro o caminho. — E se inclinou, entrando no ônibus por aquela abertura improvisada.
Isabelle tomou a frente. A jornalista caminhou até a passagem deformada do para-brisa, se agachou e entrou por ela. Mikael começou a andar e me olhou por cima do ombro. Meus pés não queriam me obedecer. Eu estava paralisado, tremendo dos pés à cabeça e chorando.
— Você não vem? — Ele indagou.
Eu queria gritar que não iria entrar no ônibus. Meu desejo era berrar até a minha garganta sangrar, colocando para fora todo aquele medo e dor.
Subitamente, uma brisa fria começou a soprar, fazendo a neblina esvoaçar como cortinas sopradas pelo vento.
— Tá ventando? — O enfermeiro olhou em volta. Pude notar o olhar curioso da Isabelle pela abertura frontal da lataria do ônibus.
Eu precisava voltar para mim. A todo custo, meu corpo tinha que me obedecer. Abri a boca para dizer alguma coisa e a minha voz se tornou um som grotesco e inaudível.
Mikael me fitou com preocupação, colocou ambas as mãos sobre os meus ombros e me olhou nos olhos.
— Wolfgang, você tá bem? — Disse com urgência e angústia na voz.
Finalmente, eu movi os meus pés e dei um passo para frente, por mais que estivesse tremendo de medo. O vento parou de soprar no mesmo instante em que consegui me mexer, vencendo o medo paralisante.
— Vamos… O ônibus. — Falei como pude. Tudo o que consegui dizer foram palavras isoladas em sussurros. Mikael tirou as mãos dos meus ombros e assentiu.
Caminhamos até o veículo. O enfermeiro deixou que eu passasse na frente e eu agachei e entrei no ônibus.
A escuridão lá dentro era opressiva. As nuances que as sombras podiam ter eram inúmeras. Os tons cinzentos da escuridão nos cobriram.
— Eu não consigo abrir o caminho todo. — Levi disse. — A gente anda um pouco. Mais ou menos até o meio… — A intensidade da voz dele diminuiu.
— Até onde a gente achou o meu cadáver. A partir dali, acho que você pode abrir o caminho. — O enfermeiro falou com enorme apatia na voz o que o Levi se constrangeu e não disse.
— Tá… — O mecânico consentiu, sem jeito.
Levi deu os primeiros passos e nós o seguimos. A lataria amassada os pedaços de vidro trincado estalavam ao serem pisados. Por se tratarem das janelas, a superfície estava desnivelada.
Eu ouvia o meu coração e minha respiração pesada. Um suor nervoso me escorria pela pele. O ambiente apertado não dava margem para qualquer movimento que não fosse mínimo.
— É mais ou menos por aqui. — Mikael avisou o Levi.
O cheiro de sangue denunciou o cadáver naquela escuridão.
Abruptamente, os estalos da cabeça da marreta empurrando a lataria ecoaram lá dentro, indicando que o Levi começou a abrir o caminho. O som parecia queimar os meus ouvidos. Era como se os ruídos do baque estivessem presos dentro do ônibus e, devido à prisão, ficassem mais furiosos.
Mais altos. Constantes.
Tapei os ouvidos, pressionando as mãos com força contra eles. Os cabelos que caíam sobre as minhas orelhas foram pegos pelos meus dedos ao cobri-las. Eu os puxei, procurando algum alívio para o inferno que aquele som causava dentro de mim.
O som cessou. No lugar dele, só se ouviu a respiração pesada do Levi.
O corredor de sombras, que antes era estreito, aumentou de tamanho. Foi como se ele se tornasse um portal de puro breu, com discretos feixes de luz verde o invadindo de cima.
Isabelle se esgueirou até aquele espaço alargado. Levi avançou alguns passos, transpassando algo, para permitir que ela pudesse se mexer no caminho que ele abriu.
Assim que ela avançou, consegui identificar a silhueta do corpo falecido. O fulgor do lado de fora contornava os traços firmes do seu rosto sem vida, evidenciando-os nas sombras que se projetavam em sua pele morta. Dele exalava o odor metálico do sangue.
Era o Mikael ali e o que eu senti era desespero. Olhei para o Mikael, o vivo, por cima do meu ombro. Sua respiração não estava mais pesada que o normal e o enfermeiro não demonstrou nenhuma reação ao ver o próprio cadáver.
A jornalista fez ânsia de vômito.
— Merda. — Ela praguejou e tentou fotografar o cadáver. Não consegui ouvir se a câmera emitiu o seu ruído característico. — Não deve sair nada, tá muito escuro… — E mais uma ânsia. Ela andou para frente, tomando cuidado para não tocar no cadáver.
E eu precisei avançar. Porém, eu não queria. Se eu pudesse escolher, iria preferir ter meus ossos perfurados por ferro quente a ter que ver o Mikael morto, ainda que fosse um de outra época.
Fechei os olhos e dei um passo para frente. E mais um. O cheiro de sangue não permitia que eu esquecesse sua presença ali. Tive que estar atento para não tropeçar nele e acabei o encarando. Seus globos oculares estavam abertos, isso pude perceber pela escassa luz que penetrava pelas janelas. Olhos vazios e sem brilho
Ele carregava uma expressão estranha na face, que não indicava nenhuma emoção específica, mas também não demonstrava paz ou naturalidade. O sangue lhe escorria, vindo de um enorme ferimento na cabeça.
— Eu prefiro morrer… — As palavras me escaparam sem eu entender a razão de as dizer.
— O quê? — Ouvi quase em coro e simplesmente não consegui responder. Eu precisava parar de olhar para o cadáver.
Usei todas as minhas forças para caminhar mais dois passos e, enfim, aquela cena horrível saiu do meu campo de visão. Fui covarde e não tive coragem de ver a reação do Mikael ao encarar, mais uma vez, seu próprio cadáver.
— Eu vou continuar. — Levi avisou. Notei, em contornos difíceis de distinguir, que o rapaz segurava a marreta com uma mão próxima à cabeça dela e outra no final do cabo de madeira. A ferramenta estava na horizontal. Ele a moveu de maneira abrupta contra, empurrando-a contra a lataria, tal como um aríete.
As pancadas fizeram o ônibus chacoalhar mais do que a primeira vez. O som alto novamente me atordoou.
Os olhos do Mikael morto me vieram à memória.
O sussurro feminino nas minhas lembranças.
Tudo aquilo junto, em um novelo de caos dentro da minha cabeça…
Ao mesmo tempo...
Ouvi o uivo de uma ventania do lado de fora e algo se chocou contra o meu corpo. Bati as costas na lataria e caí sentado.
— Wolfgang? — Isabelle indagou.
— O que… — O Mikael se calou abruptamente e ouvi o vômito sair da garganta da Isabelle. Algo quente pingava na minha blusa.
Tateei o que caiu em cima de mim. Parecia ter cabelos e os toquei. Eram crespos. Um par de óculos caiu no chão, fazendo um estalido.
Tomei coragem para olhar para cima e vi o corpo morto da Isabelle sobre mim. Aquela versão adolescente dela, de cabelos presos e saia comprida. Supus que ela tinha deslizado da parede dos assentos à minha direita.
O que pingava em mim era sangue. Ele tinha da boca da moça morta e de um corte na cabeça.
Nenhum grito saiu da minha garganta, porque fiquei paralisado com aquela visão. O Mikael afastou o cadáver de cima de mim e se agachou ao meu lado.
— Wolfgang, calma… — Ele falou, mas tudo ao meu redor estava longe e lento devido ao meu horror. Era como estar preso dentro de mim.
Ouvi um grito estridente do Levi.
— Eu também… Tem um morto aqui! E sou eu! — Ele disse ofegante, atropelando as palavras em uma expressão de puro horror.
— Me deixa morrer. — Não pedi para a minha boca dizer aquilo, mas ela disse.
O vento do lado de fora estava tão intenso que a lataria balançava e tudo o que eu desejava era morrer.
Depois de sentir tanto medo da morte, ela me parecia um acalento.
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