O Viajante - Capítulo XXIV - Wolfgang - Abril de 1973
Meus pensamentos iam, a todo tempo, para a foto que vi no jornal. Nela estava um motorista ao lado de um ônibus na rua 18. Sempre que eu me lembrava disso, sentia um medo que congelava até os meus ossos.
Contei os dias para o domingo chegar. Entretanto, por mais que estivesse muito ansioso, não foi difícil aguentar a espera. Eu estava feliz com a presença do Mikael na minha casa e me esquecia de me importar com o tempo.
Eu aumentava, diariamente, a minha carga de sofrimento futuro. Por mais que soubesse que meu amor por ele iria me fazer sofrer, eu não conseguia deixar de gostar da sua companhia. Nossa convivência diária era próxima da leveza. Em alguns momentos, meu rosto e abdômen doíam de tanto rir enquanto conversávamos sobre histórias bobas. Eu nunca ri dessa maneira com ninguém.
Na manhã de domingo, o enfermeiro estava de plantão. Acordei muito cedo, mesmo que fosse o meu dia de folga. Encontrei o meu pai na cozinha, tomando café da manhã e me juntei a ele.
Enquanto tomávamos café, ouvi alguém batendo palmas no portão.
- Willi! - A voz da serpente chamou. Era a minha intragável tia Norma.
- Que merda. - Praguejei.
- Wolfgang, não começa. - Wilhelm me censurou. - Eu não vou tolerar desrespeito. Se comporta.
Achei melhor não responder o meu pai e apenas assenti à sua ordem. Ele se levantou e foi receber a irmã. Tentei terminar o café antes da tia Norma chegar, mas meu pai e ela alcançaram a cozinha antes de eu terminar.
- Bom dia, Wolf. - Ela me cumprimentou com sua voz apática e olhar frio.
- Bom dia, tia.
- Senta, Norma. Vou servir café pra você. - Wilhelm falou enquanto pegava mais uma xícara no armário.
Norma se sentou na cadeira livre e me olhou. O primeiro bote estava sendo preparado.
- Você tá melhor? - Ela perguntou. - Não teve mais nenhum ataque?
- Sim, eu tô tomando remédio. Nunca mais tive nenhuma convulsão. - Eu não consegui olhar para ela por muito tempo. Era mais fácil se eu encarasse o calendário que meu pai pendurou na parede.
- Que bom. - Norma disse com sua típica voz doce de antes do bote. Eu conhecia muito bem as estratégias dela. - Não deve ser epilepsia, então.
- Tenho que fazer uns exames ainda. - Falei enquanto já sentia os meus lábios doerem pelas mordidas.
- E você não marcou a consulta, não é, Wolfgang? - A voz grave do meu pai nos interrompeu, atrasando o ataque venenoso da irmã.
- Eu vou marcar, pai. - Com o canto dos olhos, vi meu pai se sentar na cadeira, servir café na xícara que pegou no armário e entregar para a Norma.
- Ah, mas se você não teve mais ataques, talvez não seja epilepsia mesmo. - Não era possível que a Norma iria insinuar aquilo. - Pode ter sido outra... Coisa. - Ela disse de maneira maldosa e insinuou o que eu temia.
- Norma! - Meu pai respondeu antes de mim. - Você não veio aqui ofender o meu filho, veio?
- Foi só um comentário, meu irmão. Ele é jovem, faz parte experimentar algumas coisas...
Coloquei ainda mais força na mordida em meus lábios e eles sangraram.
- O Wolfgang não é esse tipo de rapaz! Qual a sua dificuldade de tratar o meu filho com algum tipo de respeito? - Notei que meu pai estava ficando muito irritado. Sua respiração estava ofegante e sua fala soava ríspida.
- Calma, Willi. Desculpa, foi só um comentário. - Perto do meu pai, Norma sempre recuava como um anjo. - Eu sei que o Wolf não é assim, mas os jovens hoje em dia andam sem juízo nenhum...
Wilhelm só suspirou em resposta e um silêncio pesado se instaurou.
Foi quando percebi que eu não falei nada. Eu estava com raiva, mas não perdi o controle, o que era incomum.
Senti minha boca doer e passei a mão nela. Minha pele ficou manchada de sangue. Eu tinha me ferido com a mordida forte.
Levantei da cadeira e fui até o banheiro limpar o sangue. Fiquei longos minutos trancado ali, sem nenhuma reação a não ser olhar para os meus olhos no espelho. Nesse intervalo, o sangue nos meus lábios secou e precisei lavar com água.
Saí do banheiro e fui para o meu quarto. Peguei A Metamorfose na gaveta da cômoda e repassei as páginas nos dedos, relendo as anotações que fiz aos 15 anos.
"O meu pai vai me odiar"
Encontrei essa anotação em meio às outras. Sempre que a Norma aparecia, ela desencadeava as lembranças ruins da minha adolescência e eu acabava com o livro do Kafka nas mãos, relendo tudo o que escrevi nos cantos das páginas.
Repassei as anotações e li cada uma delas. Um gosto amargo me subiu à garganta, mas ainda assim, acabei me lembrando do quanto eu gostava daquele livro e resolvi o reler pela vigésima vez.
Eu já estava na página 42 quando alguém bateu na porta do quarto e eu voltei à realidade, sem a mísera noção de quanto tempo se passou.
Deixei o livro na cama, fui até a porta e abri. Dei de cara com a tia Norma. O rosto dela estava vermelho e ela estava ofegante.
- Eu não acredito no que você fez. - Norma falou entre dentes enquanto os olhos azuis me olhavam com raiva.
- Cadê o meu pai? - Perguntei. Eu não estava entendendo nada.
- Ele foi ajudar a vizinha. - A resposta foi curta e grossa. - E eu aproveitei pra vir falar com você.
- Não fode, tia.
- Me respeita! - Ela gritou e colocou o braço contra a porta para impedir que eu a fechasse. - O que você acha que tá fazendo, Wolfgang?
- Eu nem sei do que a senhora tá falando! - O grito dela me deixou muito irritado
- Você transformou a casa, que foi dos meus pais, em um antro de sodomia? É isso? - Ela ainda gritava.
Percebi que minha tia falava do Mikael.
- Porra! A senhora é doente! Eu ofereci a casa porque ele não tem onde ficar!
- Não deve ser a toa que expulsaram ele de casa, não é? Foi isso o que o Willi me falou.
- Eu tenho certeza de que o meu pai falou o motivo. - Eu também estava gritando. O meu sangue fervia dentro do meu corpo.
- E eu tenho certeza de que você mentiu. Porque é isso que você é: uma criaturinha mentirosa!
- Eu nunca menti pro meu pai. Cala a porra da sua boca, Norma!
- Então ele sabe o que você é? O que você faz?
Quando Norma falou aquilo, as lágrimas invadiram os meus olhos e minha visão ficou borrada. As minhas palavras sumiram e só pude responder com silêncio.
- Se você não tirar esse rapaz da casa do seu pai, eu vou contar tudo pra ele. - Ela continuou.
- Eu não vou expulsar o Mikael daqui, porra. - Minha garganta doeu ao gritar. - E ele... Ele não é gay, tia. - Mas não tive força na voz para dizer aquilo alto. As palavras saíram em um sussurro.
- Eu não suporto ouvir essa palavra. - Minha tia disse em um grito agudo e desafinado. - E não acredito em nada do que você diz.
- Então fica sem acreditar, cacete!
- Se você não colocar esse rapaz pra fora, eu vou contar tudo pro seu pai.
Eu não soube o que responder e as lágrimas escorreram dos meus olhos.
- Não vai colocar o seu amante pra fora? - Minha tia indagou irritada com o meu silêncio.
- Ele não é... - Meu rosto queimou de raiva e vergonha. Não adiantava insistir, Norma não ia acreditar em mim. - Eu não vou expulsar o Mikael! - Cuspi as palavras.
- Então o Willi vai saber de tudo.
- Vai se foder, Norma! Sua infeliz! - Eu queria que aquela mulher morresse. - Vai se foder! - Gritei ainda mais alto. - Você é uma fodida! É uma...
Antes de eu xingá-la ainda mais, senti sua mão contra o meu rosto em um tapa forte. Olhei para ela com um misto de espanto e ódio.
- Meu irmão merecia um filho melhor. - As palavras de Norma foram carregadas de desprezo. - E não um serzinho imundo feito você.
Ela se afastou da porta e deu as costas para mim. Minha tia infernizava a minha vida desde que flagrou o André, meu ex, na minha casa enquanto o meu pai estava no trabalho.
Sentei-me na cama, sem reação alguma ao tapa. Tudo o que eu sabia era que odiava aquela desgraçada.
-
Desde a briga com a minha tia, entrei em um estado que eu já não entrava há anos: o de total apatia ao mundo ao meu redor. Eu não conseguia prestar atenção em mais nada e nem em ninguém.
Meu pai reparou e me perguntou várias vezes se foi pela insinuação da Norma de que eu tinha usado alguma droga quando convulsionei. Eu só conseguia responder um seco "não". Quando o Mikael chegou do plantão, também me perguntou o que tinha acontecido e eu não respondi.
Eu me sentia um covarde quando caía nesse buraco de silêncio. Por mais que eu tentasse voltar ao mundo real, não conseguia. A manhã e o início da tarde daquele domingo ficaram muito distantes da minha consciência.
-
No meio da tarde, tentei acordar daquele abismo com um banho frio. Por mais que o meu corpo tenha reagido à água gelada do chuveiro, meus pensamentos ainda estavam distantes.
Pouco depois, o Mikael acordou do sono que dormia após os plantões e seguimos juntos até a casa do Levi. Não trocamos muitas palavras no caminho. Estava difícil voltar para o mundo fora de mim.
Levi nos acompanhou até a estação de ônibus e nós três pegamos o coletivo. Foi curioso como nenhum de nós falou nada além do necessário.
De vez em quando, eu olhava para o Mikael e ele também olhava para mim. Nenhum dos dois esboçava reação alguma, mas era reconfortante.
-
O percurso até o apartamento da Isabelle foi tão silencioso quanto o resto do caminho.
A jornalista nos recebeu e subimos até o apartamento dela. Isabelle nos convidou para sentar. Mikael e eu nos acomodamos no sofá amarelo e grande, Levi se alocou em uma poltrona de couro e a dona da casa se ajeitou em outra poltrona idêntica.
- Que caras são essas? - Isabelle perguntou, embora ela também não parecesse muito feliz.
- Tem muita merda acontecendo, princesa. - Levi respondeu. Eu assenti ao que ele falou. Mikael me fitou com o canto dos olhos.
- Que tipo de merda? - A jornalista indagou.
O silêncio denso se instaurou por alguns segundos.
- Uns filhos da puta me acusaram de roubar uma espelunca de merda há uns dias. - Levi respondeu com raiva na voz. - Só não me mataram porque o meu patrão chegou.
- Que... - Isabelle cerrou os dentes, irritada. - Eu nem sei o que falar...
- Essas pessoas são nojentas. - Minha voz saiu em um sibilo e me lembrei, bruscamente, dos olhos furiosos da minha tia.
- O corno do dono do bar apontou uma espingarda pra mim. Aquele imbecil... - Eu não conseguia imaginar o Levi irritado até o ver daquele jeito. - Ah, porra. Esquece. Não vale a pena lembrar disso.
- Tem muita gente por aí que é igual ao meu pai. - Mikael olhou para o Levi. - Essa gente só precisa de alguém pra espancar e vomitar todo o... - Notei o peito do enfermeiro arfar. - Lixo que tem dentro delas. - Ele disse entre dentes, com rancor nas palavras.
Levi assentiu. Eu não queria falar nada sobre a Norma, porque eu acabaria por ter que contar o motivo do seu ódio.
- Viver nesse mundo cansa... - Isabelle comentou e mais silêncio se instaurou entre nós quatro. Isabelle pareceu se perder nos próprios pensamentos e o Levi também.
Recostei no sofá e fitei o Mikael. Ele retribuiu o olhar. Observei o seu rosto machucado e olhar cansado. A firmeza dos seus traços não podia ser escondida, ela aparecia mesmo debaixo dos hematomas.
Meus olhos foram até os lábios dele e meu rosto queimou. A minha respiração acelerou enquanto o calor se espalhava da face para todo o meu corpo.
E o tapa da Norma me veio à memória. Desviei o olhar do dele, voltando-me para mim.
- Quando a gente vai na rua 18? - Perguntei e os três despertaram repentinamente dos próprios pensamentos.
- Ah, é... Agora. - Isabelle respondeu, olhando-me com uma expressão triste. Ela tinha uma tristeza constante nos olhos. - Vamos? - Perguntou, encarando o Levi e, em seguida, o Mikael.
Eles concordaram. Senti alívio por quebrar aquele momento de contemplação coletiva. O único caminho que eu iria encontrar se fosse levado pelos meus pensamentos era o da vergonha.
-
Eu estava tão afundado naquele estado de apatia que não senti medo no percurso até à rua 18.
Descemos do carro e enxerguei o reflexo da luz verde em minha pele. Levantei o olhar e vi que tudo era iluminado por ela. A névoa já tinha deixado o horizonte opaco e o som agudo ressoou por todo o espaço.
O sofrimento me perfurou. Senti o meu peito doer de tamanho desespero e as lágrimas vieram junto dos soluços altos. Meus joelhos falharam e eu cambaleei para frente. Com o canto dos olhos vi o Mikael se aproximar de mim.
Mesmo que meus joelhos estivessem trêmulos e a dor me consumisse, dei um passo para frente.
Senti o perigo da morte se aproximando junto da minha dor. Meu coração acelerou e minhas entranhas gelaram. Meus soluços ficaram ainda mais altos e a respiração se tornou mais curta e rápida.
Dei outro passo para frente.
Eu estava cego por conta das lágrimas. Tudo no horizonte estava borrado. Senti a minha carne tremendo e o guincho constante e agudo atordoou a minha cabeça.
Minhas pernas cederam e eu caí de joelhos no chão. O Mikael veio correndo até mim para me ajudar a me levantar. Ele se agachou ao meu lado, mas eu não consegui olhar para ele.
Tive a certeza de que tudo estava acabado. Não havia outro caminho para mim se não o da morte.
Eu iria perder tudo o que eu amava e morrer?
Meus pensamentos se tornaram confusos e um grito de desespero me escapou da garganta enquanto eu sentia os meus dedos cravados no asfalto áspero. Alguém segurou o meu pulso com gentileza e afastou a minha mão do asfalto. Mas isso não aliviava a minha dor de modo algum. Ela vinha de dentro.
Por uns instantes, me perguntei onde eu estava.
Aquilo tudo era mesmo real?
Minha cabeça doeu em uma pontada forte. Eu pensei que morreria com aquela dor de cabeça.
Entretanto, tão rapidamente quanto veio, a dor se foi e eu encarei o horizonte.
No meio da rua 18, vi um ônibus tombado para o lado esquerdo e com a lataria amassada. Ele estava ali, sendo iluminado pela luz verde e cercado pela neblina que o cobria como um véu.
Voltei a mim. Eu estava na rua 18, com o Mikael, a Isabelle e o Levi. Olhei para o lado e enxerguei o enfermeiro agachado e encarando o ônibus com um semblante assustado. O meu pulso repousava sobre a palma aberta de sua mão. Foi ele que me impediu de me machucar no asfalto ao segurar o meu braço.
Isabelle e Levi se aproximaram de nós. Eles também encaravam o ônibus com um semblante atônito.
Era isso o que me atormentava. Uma lembrança sobre um acidente de ônibus e que agora se tornava real para nós quatro.
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