O Viajante - Capítulo XXIII - Levi - Abril de 1973
Quando voltamos para minha casa, estava todo mundo ensopado por causa do surto do Grilo.
A princesa estava tremendo de frio. Claro que o magrelo maluco também estava congelado e tremia, encolhido. O único que não dava o braço a torcer era o enfermeiro galã. Estava encharcado, mas continuava com aquela cara calma.
Convidei os três para entrarem em casa. Estava muito frio na varanda. Eu mesmo estava morrendo de frio com aquelas roupas molhadas.
A varanda dava para a sala. Minha mãe não estava ali e nem a Lurdes. Olhei para o curto corredor em que ficavam os quartos e notei que a luz do quarto da velha estava acesa. Lurdinha estava colocando ela para dormir.
Guiei a princesa e os dois caras para a cozinha, mostrei as cadeiras ao redor da mesa e falei para ficarem à vontade.
Em seguida, fui para o meu quarto e troquei minhas roupas molhadas por roupas secas. Além disso, eu precisava procurar algumas coisas para cobrir os visitantes encharcados.
Peguei o meu cobertor, que estava em cima da minha cama. Era a única coberta que eu tinha e ela seria para a princesa. Isabelle não merecia tremer de frio daquele jeito.
Abri a porta do armário e tirei de lá um lençol velho e uma toalha. O maluco e o mauricinho que se virassem com o que tinha.
Saí do quarto com as mãos cheias, carregando tudo o que achei.
E assim que cheguei na cozinha, vi Lurdes na beira do fogão.
- O que é isso, Lurdes? - Indaguei enquanto entregava o cobertor para Isabelle.
- Obrigada. - A jornalista agradeceu, enrolando-se no meu cobertor amarelo. Ela tirou os óculos e puxou um pedaço da coberta para limpar as lentes. Seu rosto estava molhado e a maquiagem dela escorria dos olhos. Mas continuava linda. Era impossível Isabelle ser feia.
- Tô fazendo uma sopa pros seus amigos. - A vizinha respondeu. Coloquei o lençol e a toalha em cima da mesa. O Mikael pegou a toalha rapidamente e a colocou ao redor dos ombros. O Grilo olhou para o loiro e pegou o lençol, cobrindo-se com ele.
- A gente já disse que não precisa, dona Lurdes. - Isabelle disse.
- Sim, a gente vai embora logo. - Mikael complementou o que a boneca falou. - Não precisa se preocupar.
- Não! Vocês vão ficar e comer! Olha isso, todos molhados! Inventaram de ir pra uma chuva dessas, meu Deus. - Lurdes reclamou. A coitada da Lurdinha sentia falta dos filhos e sempre queria dar uma de mãezona. Aquela mulher era um anjo.
- Vai descansar, velha. - Retruquei. - Deixa a sopa comigo.
- Deixa de ser mal educado, Levi. A Terezinha não te ensinou a ser assim. E você não sabe cozinhar direito.
Suspirei. As duas velhas eram teimosas. Eu sempre era voto vencido quando uma delas colocava alguma coisa na cabeça.
Olhei para a Isabelle e ela me olhou de volta. A princesa estava com o cobertor ao redor dos ombros. Fiquei satisfeito por ela poder se aquecer e tomar uma sopa quente na minha casa.
Lurdes não demorou para terminar de fazer a sopa. Ajudei a velha cabeça dura a servir a refeição. A vizinha teimosa então se despediu de nós e eu a acompanhei até sua casa, com medo dela escorregar no concreto molhado.
Voltei para minha casa o mais rápido possível e fui para a cozinha, onde os três tomavam sopa. Isabelle praticamente engolia as colheradas. Ela tinha me dito que não comia há muitas horas.
Coloquei a cesta dos pães, que sobraram do café da manhã, na mesa. Sopa não enchia a barriga de ninguém. Era só água, legumes e temperos.
Depois, me servi do caldo e sentei à mesa junto dos três.
- Pega pão, boneca. Você me disse que tava com fome.
Isabelle me olhou com o canto dos olhos, feito um passarinho, pegou um pedaço de mão, mergulhou o pão na sopa e o comeu.
O Grilo ficou me encarando com cara de cachorro assustado.
- Pega também, moleque. É pra vocês. - Ele pegou um pedaço de pão na cesta e o enfermeiro fez o mesmo.
Catei o pedaço de pão que sobrou para mim. Eu era filho de Deus como qualquer um.
Todo mundo comeu em silêncio.
- Eu não sei por que fiz aquilo. - O Grilo falou, em voz baixa, depois de terminar de comer.
- O que aconteceu quando você olhou pra foto no jornal? - Mikael perguntou depois de tomar uma colherada da sopa.
- Boa pergunta. - Falei. - Um magrelo de nada feito você deu um baita trabalho. Só pode ter visto o diabo pra ter ficado com tanto medo. - O Grilo era magrelo e mais baixo que eu, mas foi difícil segurar ele. Nem conseguia acreditar que aquele palito precisou ser segurado pelo Mikael e por mim para ficar quieto.
- Tudo tá meio escuro na minha cabeça. Eu olhei a foto do jornal e senti... Sei lá, eu pensei que fosse morrer.
- Você lembrou de alguma coisa? - O Mikael perguntou.
- Não sei. Foi uma sensação de perigo. Eu tive a certeza de que ia morrer. E eu não sabia onde eu tava, quem eram vocês...
- Foi a foto do motorista na rua 18. - A princesa linda observou. - Tem alguma coisa lá, não é? Se a gente juntar palavras-chave, a gente tem 1966, rua 18 e ônibus.
Que gata inteligente era aquela.
- O jornal falava de greve, não é, brotinho? - Perguntei. Aquele tipo de movimento deixava a polícia puta. Fiquei preocupado quando Isabelle disse que conhecia gente que publicava coisas sem passar pela censura. Até um malandro feito eu tinha medo de mexer com o governo desse jeito.
- Isso. - Ela respondeu.
O Grilo fez uma cara estranha.
- Greve. - O magrelo repetiu. - E motorista.
- Isso também é importante, Wolfgang? - O Mikael olhou para Grilo. Parecia preocupado.
- Sim.
Encarei a Isabelle, ela estava pensativa.
- 1966, rua 18, ônibus, greve, motorista. - Ela repassou em voz alta. - Parece fazer algum sentido, mas não sei como isso pode ter relação com a gente.
- Eu tenho que voltar na rua 18. - O Grilo falou.
- Tem certeza? - O Mikael perguntou.
- Tenho. A gente só consegue descobrir alguma coisa importante lá.
- Então, a gente vai. - Isabelle disse. - Você consegue ir, Levi?
- Eu dou um jeito. - Respondi. Eu estava curioso com aquela merda toda e ia pensar num jeito de ir sem fazer a Lurdinha precisar trabalhar demais.
- Tá. Eu ligo pra vocês marcando um dia. É lá perto da minha casa. Recebo vocês no meu apartamento e a gente vai junto. - Fiquei nervoso, feito um moleque que mal saiu das fraldas, quando pensei em conhecer a casa da Isabelle. Minhas mãos começaram a suar. Eu estava fodido de tão apaixonado.
- Você pode ligar pro Wolfgang e ele me passa o recado. - O galãzinho falou baixo. Isabelle assentiu. - Eu não tô mais na casa dos meus pais.
- Então, foi isso? Te expulsaram de casa? - Perguntei.
Todo mundo ficou me olhando com caras estranhas. Porém alguém tinha que perguntar e eu não ia perder aquela chance.
- Foi. - O Mikael respondeu com uma voz séria.
- Isso aí na sua cara foi uma briga feia. Só um cara muito puto pra arrebentar outro assim. - Eu entendia de porrada. Só fiquei daquele jeito uma vez, no reformatório. Três moleques me pegaram na porrada e arrebentaram o meu rosto. Eu tinha o nariz meio torto por causa dessa surra. - Foi seu pai? Um irmão? Os dois juntos?
Mikael suspirou. Ele estava de saco cheio de me responder, mas eu não liguei.
- Meu pai. - O enfermeiro engoliu seco. - Ele é um filho da puta. - O cara estava com ódio, dava para notar nos olhos.
- Sinto muito por isso, Mikael. - Isabelle falou com uma voz doce. O enfermeiro assentiu.
Eu não tinha pai. O homem que engravidou a minha mãe se chamava Cássio. Ele foi embora assim que ela descobriu a gravidez. Eu não me lembrava ao certo o que ela me disse que ele fazia da vida. Tereza me contou uma vez que cometeu um grande erro ao se envolver com esse homem e Lurdes comentou comigo que ele era casado com outra mulher quando se envolveu com a minha mãe. Nunca me preocupei em procurar o Cássio, assim como ele nunca se importou em me procurar.
Mas era melhor não ter um pai a ter um pai filho da puta como o do Mikael. Se um dia eu tivesse filhos, eu não faria esse tipo de merda, como abandonar ou espancar. Tentaria só ser um pai. Nem o melhor, nem o pior.
Eu não soube o que dizer ao enfermeiro bem vestido. Dei um tapa amigável em suas costas e resolvi não falar nada. Ele assentiu como resposta.
Depois de tomarem a sopa, os três me ajudaram com as louças e foram embora. Isabelle deu carona para o Mikael e o Grilo. A princesa me deixou com a promessa de uma ligação para marcar o dia que iríamos para aquela rua estranha.
-
Na manhã seguinte, teve muita encheção de saco do seu Jorge e passei horas trocando os cilindros do freio de um Corcel.
No horário de almoço, fui para um bar beber um copo de cerveja e comer um prato feito.
O bar era uma construção quadrada pintada com cal. Na parede em direção à calçada, tinha uma janela com um balcão. Era onde Ulisses, o dono do bar, recebia os pedidos e os pagamentos. Ao lado da janela, havia uma porta vagabunda de madeira. Seu Ulisses passava por lá para entregar os pedidos. As mesas e cadeiras ficavam na calçada
Depois de encher a barriga, acendi um cigarro para aproveitar os últimos minutos do meu horário de almoço. Fiquei sentado, fumando, sem olhar ou fazer nada.
Tomei um susto com uma movimentação estranha no bar. Um moleque entrou correndo ali, passou a mão em tudo o que viu no balcão, pegou o dinheiro de um bêbado que estava pagando o Ulisses e saiu correndo.
O velho Ulisses começou a gritar, muito puto. Ele saiu pela porta de madeira, tentando correr atrás do malandro, mas desistiu nos primeiros passos. As pessoas ali também desistiram de pegar o menino. Vários intrometidos vieram ver o que estava acontecendo.
- Porra, ninguém viu quem foi o filho da puta? - O dono do bar gritou.
- Fugiu muito rápido, seu Ulisses. - Uma mulher na multidão respondeu.
- O desgraçado roubou meu dinheiro. - Reclamou o freguês roubado.
- Pra olhar vocês são bons, pra pegar o bandido, não. Puta que pariu. - Ulisses reclamou. Em seguida, ele me olhou.
Não. Não era possível que isso ia acontecer novo.
- E você? Viu e não fez nada? - O freguês que foi roubado perguntou.
- Foi muito rápido, meu bom. - Respondi. Minhas mãos começaram a suar. - Não deu tempo.
- Esse daí não é o filho da Tereza? - A mulher, que tinha se justificado para o dono do bar, indagou. Era mesmo uma fofoqueira desgraçada.
- Tereza? - Ulisses perguntou. Era um inferno morar no mesmo lugar a vida toda. Ainda mais quando se tinha cometido tantos erros no passado.
- A entrevada. - Um imbecil na multidão falou. Senti a raiva arder dentro de mim. Aquele era o Wagner, morava no fim da minha rua.
- Não fala assim da minha mãe, porra! - Levantei da cadeira e me segurei para não socar o filho da puta.
- Ele é bandido, seu Ulisses! - A mulher disse de maneira estridente. Eu nem sabia quem era ela.
- É mesmo... - Ulisses coçou o queixo. - Lembrei do moleque. Você roubou a venda do Luís, não foi?
Eu jurei que podia ouvir o meu coração batendo rápido dentro do meu peito. Recuei alguns passos, sem dizer nada.
- Ele mesmo. - O dedo duro do Wagner respondeu.
- Você tá metido nisso, seu filho da puta? - O proprietário perguntou com os dentes cerrados. - A bandidagem tá toda aqui hoje?
- Eu não tenho nada a ver com isso, seu Ulisses. - Minha visão ficou borrada. Eu estava assustado igual a uma criança.
- Foi igualzinho lá na venda do Luís. - A mulher disse. - Eu lembro. - Provavelmente, era mentira. Eu nunca tinha visto aquela desgraçada na vida.
- Alguém chama a polícia! - Ulisses gritou. Olhei para trás, em direção ao fim da rua. Se eu ficasse, o bicho ia pegar, se eu corresse, o bicho ia comer.
- Eu não tenho nada a ver com isso. Eu fiz merda quando era moleque, sim. Mas agora eu trabalho. Mudei de vida, seu Ulisses. - Meu estômago revirou.
- Vagabundo não muda. - Olhei por cima do meu ombro mais uma vez e notei um cerco de pessoas ao meu redor. Aqueles filhos da puta eram como urubus com carniça. Assim que sentiam o cheiro da encrenca, apareciam.
- Eu mudei. Juro por Deus. - Já não tinha mais como correr. Então, o bicho ia comer. - Eu trabalho lá na oficina do Jorge, pode perguntar pra ele.
Voltei a olhar para frente e vi que o dono do bar entrou pela porta de madeira. Fitei ao redor e notei todos aqueles cornos me olhando com raiva. Não demorou para Ulisses voltar com uma espingarda nas mãos. Todos se afastaram assustados ao verem a arma.
Mas eu não podia mexer um dedo, pois ele a apontou para mim.
- Vai ficar aí até a polícia chegar. - O homem armado mandou. Queria ver se ele era homem sem aquela espingarda e sem aqueles filhos da puta por perto. Eu conseguiria arrebentar a cara daquele velho em dois tempos.
Não dava para esquecer os meus erros. Aqueles filhos da puta não iam deixar.
- Que porra é essa? - Nunca senti tanto alívio por ouvir a voz do arrombado do Jorge. - Que merda você fez agora, malandro?
Com o canto dos meus olhos, vi o patrão se aproximando da multidão assustada.
- Seu Jorge, fala pra eles que eu trabalho pra você! - Me senti um idiota por estar com voz de choro.
- Esse vagabundo tá metido com um roubo aqui no bar. - Ulisses falou sem desviar a arma de mim.
- Metido como? - O dono da borracharia perguntou.
- Um moleque veio aqui e roubou meu freguês no caixa. O vagabundo ali já fez isso quando era moleque, igualzinho. Ele deve ter alguma coisa a ver com isso, já que viu tudo e não fez nada.
- Deixa de ser burro, porra. Esse cara trabalha pra mim. - Jorge apontou para mim. - Ele não tem nada a ver com essa merda, não. Passou a manhã toda arrumando um Corcel que deu prego. Inclusive, eu tava procurando ele. - O chefe me encarou. - Tá achando que tá de folga, malandro? Já deu a hora de voltar pro serviço.
Ulisses franziu a sobrancelha. Lentamente, o filho da puta abaixou a espingarda.
- Some daqui, então. - Ele disse com raiva na voz. Para que aquele desgraçado não me acusasse de roubar ele de novo, tirei minha carteira do bolso, arranquei uns cruzeiros de dentro dela e os joguei em cima da mesa.
- O pagamento. - Falei enquanto sentia meus dentes apertarem, um contra os outros, de tanta raiva.
- Anda, Levi. Chegou serviço. - Jorge me apressou e começou a andar em passos rápidos. Eu o segui.
- Aí, seu Jorge, obrigado. - Agradeci enquanto caminhávamos em direção à oficina. Tentei esquecer o que aconteceu, mas a raiva não deixou. Eu queria arrebentar o dono do bar e dar um motivo para ele chamar a polícia.
- Esquenta, não. Fiz isso porque você dá dinheiro, malandro. Você é jovem, não quer voltar pra cadeia, tem contas pra pagar... - Ele riu. - E sabe que nunca vai arrumar um serviço melhor do que o tem na oficina. Eu tô faturando bem contigo.
Eu já sabia que o Jorge não tinha feito aquilo por bondade, mas ao menos ele me livrou de ser preso ou morto. Estava de bom tamanho. A vida era assim e eu não podia fazer nada.
-
No fim da tarde, quando cheguei em casa, minha mãe já estava sabendo do que aconteceu no bar. Ela chorou e isso me fez sentir ainda mais raiva do desgraçado do velho Ulisses e daqueles filhos da puta que ficaram me acusando de ter alguma coisa a ver com o roubo.
Consolei a minha mãe como pude. Lurdes também tentou consolar a minha velha. Nada adiantou e ela foi dormir triste e abatida.
Aquelas pessoas eram doentes. Não só pela merda no bar, mas por contarem para a minha mãe o que aconteceu. Ela estava muito doente, ao menos essas pessoas deveriam ter a decência de poupá-la dessas fofocas nojentas.
-
Depois do que aconteceu, meus dias pareceram mais difíceis e demorados. Tentei não pensar na acusação no bar, mas a lembrança vinha sem eu deixar. E eu sempre ficava muito puto. Pior do que lembrar disso, era me recordar da minha mãe chorando.
O meu único consolo depois só veio cinco dias depois. Isabelle me ligou e com aquela voz linda e me chamou para ir na casa dela domingo, junto do Grilo e do Mikael. Era impossível negar, ainda que eu tivesse que pedir para a Lurdinha cuidar da minha mãe.
A raiva foi embora depois da ligação. Eu podia aguentar tudo aquilo, por mais difícil que fosse.
Essa era a minha vida e eu não tinha outra opção a não ser seguir em frente.
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