O Viajante - Capítulo XXI - Wolfgang - Abril de 1973
Eu estava esfregando o chão do bar com um rodo coberto por um pano molhado. O início da tarde costumava ser muito vazio no bar e eu aproveitava para limpar o chão e as mesas, se é que aquela espelunca de paredes verdes e mofadas podia ficar limpa.
Enquanto esfregava o chão, vi, com o canto dos olhos, alguém entrando pela porta do estabelecimento.
Virei o rosto para olhar e meu corpo paralisou. Era o Mikael. Seu rosto estava muito machucado, com um corte na sobrancelha coberto por sangue seco. O nariz também tinha um rastro de sangue coagulado debaixo das narinas, o lábio inferior estava cortado e sangrando e ambos os olhos estavam inchados. Havia manchas de sangue em sua camiseta e ele estava segurando uma mala retangular feita de couro marrom.
Encostei o rodo na parede e andei rapidamente até ele.
— Que porra aconteceu? — Perguntei enquanto via os seus olhos castanhos me acompanharem.
— Muita coisa. — Ele respondeu em voz baixa.
— Quem te bateu? — Senti raiva de quem fez aquilo com o Mikael. Eu queria espancar o filho da puta que o machucou.
— Merda, desculpa. Eu vim no seu trabalho nesse estado…
— Porra nenhuma. Vem, vamos pra outro lugar. Esse bar é um lixo.
— Isso não vai te dar problema? — O enfermeiro perguntou. A voz dele estava fraca. Era estranho o ouvir falando daquele jeito.
— Não, eu sempre dou dessas. O Silva não vai me mandar embora. — Nós dois saímos pela porta do bar e começamos a andar, calmamente, pela calçada. Meu peito já estava começando a ficar ofegante. Eu me sentia cada dia mais fraco. Minhas costelas fraturadas, em sua lenta recuperação, ainda doíam, vez ou outra, na caminhada.
Ficamos em silêncio. Eu segui os passos do Mikael e chegamos em uma praça vazia e sucateada. Havia ali alguns bancos de concreto - mais da metade estava com partes quebradas - e um campo de futebol improvisado, cheio de terra escura e com traves de madeira apodrecida.
O loiro se sentou em um banco e colocou a mala aos seus pés. Eu me sentei ao lado dele.
Após minutos de silêncio, Mikael finalmente falou.
— O meu pai… — Ele negou com a cabeça. — O Isaac fez isso.
Senti vontade de matar o pai do Mikael. Um homem como aquele verme não merecia ter filhos. Nem mesmo merecia qualquer tipo de felicidade. Eu não o conhecia, mas já o odiava pelas coisas que o Mikael me contava sobre ele.
— Quando eu tinha 18 anos, o Isaac deslocou o meu cotovelo de propósito. — Mikael contou e seus olhos me fitaram de relance. — Eu já tinha idade pra me defender, mas não me defendi. Tinha medo do que ele faria se eu revidasse. E o meu irmão tava vendo tudo. Eu não queria que o Samuel pensasse que eu era um homem violento como o Isaac.
— Por que o Isaac faz essas coisas com você?
— Ele quebrou o meu braço porque eu chamei ele de covarde quando ele deu um tapa na cara da minha mãe. Hoje, o Isaac bateu no Samuel e eu empurrei o desgraçado, então ele foi pra cima de mim.
— Esse filho da puta merecia sofrer tudo isso em dobro. — Soltei. Meu rosto estava queimando de raiva daquele desgraçado do Isaac.
— Merecia. — O enfermeiro estava trajando uma camiseta verde, folgada e de mangas compridas. Ele dobrou a manga esquerda da camiseta até um pouco acima do cotovelo. — Esse cotovelo é torto até hoje, eu não consigo dobrar esse braço totalmente e tenho menos força nele do que no outro braço. O tratamento não foi bem feito.
Observei atentamente e notei que o cotovelo esquerdo do Mikael era ligeiramente torto para o lado.
— Eu aguentei isso quieto pra evitar o caos que aconteceu hoje. — Notei as lágrimas escorrendo de seus olhos e sua voz embargada. Meus próprios olhos marejaram e um nó se formou em minha garganta. — E eu… Hoje eu fiz a merda de revidar a surra que o Isaac me deu. Agora o Samuel e a minha mãe tão sozinhos com aquele animal. Eu prometi que vou voltar pra buscar eles, mas eu nem sei… Nem sei se consigo… — O choro dele se tornou mais intenso. Eu nunca imaginei que veria o Mikael daquele jeito.
— Mikael… — A dor no meu lábio inferior já denunciava que o mordia nervosamente. — Você aguentou aquele filho da puta tirando o seu braço do lugar, porra. Agora ele arrebentou a sua cara… Ninguém aguenta isso. Você é uma pessoa e não um boneco de madeira. — As palavras saíram de forma desajeitada. — Não dá pra você fingir que não é um ser humano e aguentar o seu pai acabando com você. Você sente dor, porra. Tem sangue correndo nas veias
Ao terminar de falar, eu estava ofegante. Todas as minhas palavras soaram rápidas e atropeladas.
Mikael ficou em silêncio e soltou um suspiro pesado.
— Você tem pra onde ir? — Indaguei.
— Não… Mas eu dou um jeito nisso, tenho um dinheiro guardado. Posso pagar um quarto em uma pensão.
— Não. — Meu rosto queimou ainda mais. — Fica na minha casa. Guarda o seu dinheiro pra tirar a sua mãe e o seu irmão de perto do Isaac.
— A vida de vocês já é difícil, eu vou dificultar ainda mais. Não posso aceitar.
— Nem vem com essa merda de conversa fiada.
— Eu tô falando sério. Vou ser um problema a mais pra você e pro seu pai. — O rapaz rebateu.
Direcionei o meu corpo em direção ao enfermeiro, toquei os seus ombros com ambas as mãos e usei todas as minhas forças para o olhar nos olhos. Meu coração acelerou, mas eu precisava que ele prestasse atenção no que eu ia dizer, independentemente do meu desconforto.
— Você salvou a minha vida duas vezes e eu te coloquei em problemas nessas duas ocasiões. Te oferecer a minha casa é o mínimo que eu posso fazer. — Falei pausadamente para evitar me engasgar com as palavras. Mikael me encarou com os olhos arregalados e levemente perdidos enquanto eu falava. — Então para com essa merda e aceita de uma vez.
Soltei os ombros dele e me afastei. Minhas mãos estavam geladas e suadas.
— Tá… — A respiração do enfermeiro estava ofegante e seus olhos ainda pareciam perdidos. — Tudo bem. — Ele assentiu e encarou o horizonte, conforme sua respiração voltava ao ritmo natural.
—
Quando finalmente saímos da praça, após longos minutos de silêncio, caminhamos até o bar. Eu avisei o Silva que já estava indo embora e o patrão me xingou como resposta, mas não me importei.
Mikael e eu seguimos até minha casa sem trocar muitas palavras. No ônibus, em algum momento, levei meus olhos até o enfermeiro. Ele não percebeu que eu o olhava. Seu olhar estava perdido carregava uma tristeza excruciante. Talvez eu não apenas gostasse dele e sim o amasse. Mas como era possível amar alguém com quem eu nunca tive nada? E ele sequer sabia desse amor.
Eu jamais contaria. Se o Mikael soubesse, pegaria nojo de mim. Tudo o que me bastava era poder conviver com ele e o ver feliz. Sua dor me deixava triste.
Eu era um idiota.
—
Ao chegarmos na minha casa, peguei um colchão e um travesseiro velho que meu pai guardava e os coloquei em meu quarto no chão, ao lado da minha cama. Forrei-os com as roupas de cama azuis e desbotadas que tínhamos em minha casa.
Mikael colocou sua mala ao lado da cômoda, no meu quarto, e foi ao banheiro. Ouvi o chuveiro ligado. Ele devia estar ansiando para lavar o rosto ensanguentado há horas.
Ofereci pães com manteiga a ele e preparei café. O Mikael devorou aquela pobreza que eu chamei de refeição, ele estava claramente com muita fome.
Essa foi toda a minha hospitalidade. Além da pobreza e escassez da casa, havia o fato de eu ser incapaz de ser uma pessoa minimamente educada ou normal, o que me dificultava oferecer cortesia, por mais que Mikael a merecesse.
Após o café, ficamos silentes à mesa. Eu o olhei, fitando o seu rosto machucado, e agora limpo, e o enfermeiro me olhou de volta com seus olhos inchados e roxos pelas pancadas. Nada foi dito por nenhum dos dois. Apenas nos olhamos tristemente.
Pouco tempo depois, o Mikael foi descansar. Ele não tinha dormido à noite por conta do plantão.
Restou-me ficar sozinho com os meus pensamentos, remoendo o quão idiota eu era. Uma espécie de rei dos imbecis. Eu não estava triste por amar o Mikael e sim por seguir linhas tortas. Enquanto todos os homens amavam mulheres, eu amava um outro homem. Sempre fui assim.
Lembrei-me do André, o único namorado que tive, ainda na época da escola. Quando os boatos sobre nossa relação começaram a surgir, ele terminou comigo e nunca mais nos falamos. Eu sofri com isso na época.
O que senti pelo André não era nada perto do amor que eu sentia pelo Mikael. Me dar conta disso fez meus olhos marejarem.
— Wolfgang? — Ouvi meu pai me chamar e saí daqueles pensamentos de imbecil. Ele tinha acabado de chegar do trabalho e estava parado no batente da porta de entrada da casa. — Já tá em casa. Aconteceu alguma coisa? — Indagou com o semblante preocupado.
— Aconteceu, mas não foi comigo.
— E o que foi? — Wilhelm franziu o cenho, andou com pressa até o sofá e se sentou ao meu lado. Ele ainda tinha uma expressão preocupada no rosto.
— O Mikael teve um problema com o pai dele e saiu de casa. Eu… — Cerrei os dentes e desviei os olhos do meu pai. — Convidei ele pra ficar aqui por um tempo.
— Problema?
Devido a apreensão, senti minhas entranhas gelaram.
— O pai do Mikael é um filho da puta e espancou ele. Esse desgraçado bate na esposa e nos filhos. E dessa vez, o Mikael revidou o que o pai dele fez… — A cada palavra, mais nervoso eu ficava. — Pai, desculpa, eu sei que eu devia ter perguntado pro senhor se ele podia ficar aqui, mas não dava pra deixar ele todo fodido na rua…
Senti a mão do meu pai sobre o meu ombro.
— Você deve muito ao Mikael e fez bem em oferecer abrigo, rapaz. — O austríaco bagunçou o meu cabelo com a mão que estivera, anteriormente, no meu ombro. — Nunca vou esquecer o que ele fez pra salvar sua vida. O convite pra que ele se abrigue aqui também é meu.
Olhei para o Wilhelm conforme o alívio apaziguava a minha aflição. Um sorriso idiota me escapou perante sua demonstração contida de afeto e meu pai sorriu também, com seu habitual sorriso triste.
—
Quando fui me deitar, o Mikael estava deitado no colchão, olhando para o teto do quarto, divagando.
— Eu deixei a cama pra você. Esse colchão é uma merda. — Falei ao notar que ele estava acordado. — Tinha colocado ele aí pra mim.
— Por isso eu peguei ele. A casa é sua, Wolfgang. — Sua voz havia recuperado parte da força. Seus olhos ainda estavam fixos no teto.
— Para com essa porra, Mikael. — Resmunguei.
— Dormir no chão é coisa pra adulto. — Um sorriso jocoso se formou em seus lábios. — Os adultos deixam a cama pras crianças.
— Babaca. — Retruquei no mesmo tom e ri, Mikael também riu. Ao menos, ele pôde rir no fim daquele dia desleal. — Eu conversei com o meu pai. — Contei conforme me sentava sobre a minha cama. — Ele disse que o convite pra você ficar aqui também é dele.
— Vocês dois são boas pessoas. — Mikael me olhou de soslaio
— Meu pai é. Eu não sou.
— Por que? — Notei indignação na voz dele.
— Sou… Todo torto. — Respondi em meio a um suspiro. Eu não queria precisar explicar os meus caminhos tortos.
— Torto… — Ele repetiu a palavra e se calou por um tempo. — Ser torto não é ser uma pessoa ruim...
Eu não queria deixar escapar o que não devia ser dito.
— A Isabelle me ligou hoje cedo. — Contei, mudando de assunto para não falar demais. A ligação dela tinha me deixado animado, mas depois tantas coisas aconteceram que a animação desapareceu. — Eu tinha até esquecido disso.
— Ela me ligou também. Disse que achou alguma coisa…
— Sim. Eu tô curioso pra descobrir o que foi.
— Não aconteceu mais nada de estranho com você? — Mikael indagou.
— Não. — Nesse mesmo instante, senti uma ameaça daquele sofrimento visceral. — Mas quando eu penso nisso, vem uma sensação…
— Você tá bem? — Mikael se sentou no colchão e se inclinou em direção à cama, com um olhar assustado.
Olhei de volta para o Mikael e prestei atenção nos seus olhos.
— Parece que tem alguma coisa que eu preciso lembrar, mas que não consigo.
— Essa… Sensação tá acontecendo agora?
— Foi só tocar no assunto, que ela veio. — E mais uma vez, o medo apareceu. Meu corpo estava tremendo pelo pavor.
— Você tá passando mal? — Ele indagou de forma assustada.
— Não. — Percebi que o Mikael suspirou aliviado com a minha resposta. — É difícil explicar. Tem alguma coisa que me dá medo nessa história.
— Você quer parar de investigar? A gente pode só esquecer tudo isso.
— Você lembra do que me falou quando eu disse que o melhor pra você era que a gente deixasse essa história de lado? — Indaguei. Ainda que eu estivesse apavorado, me recordava vividamente do que o enfermeiro me dissera quando tentei o afastar de mim.
— Que ela é uma coisa única.
— Eu quero descobrir o que é tudo isso. — Mikael me fitou sem dizer nada.
Mais uma onda de medo me atingiu. O suor escorreu do meu rosto junto com algumas lágrimas que escaparam dos meus olhos.
Mikael levantou e sentou ao meu lado sobre a cama. Ele me olhava com preocupação enquanto a sensação de que algo horrível estava prestes a acontecer me dominava.
— A única certeza que eu tenho é que essa merda que eu preciso lembrar é alguma coisa muito ruim. — Murmurei.
— As consequências de lembrar disso podem ser horríveis, Wolfgang. O dia que você foi parar no hospital foi uma prova do perigo delas.
— Eu acho que não tenho mais escolha. — Olhei-o nos olhos. — Eu não escolhi me enfiar nessa história, ela só começou a acontecer na minha vida e eu contaminei você, a Isabelle e o Levi.
— Contaminou? Isso a gente fala pra doença. — Mikael franziu o cenho. — Eu tô envolvido nessa história também, assim como a Isabelle e o Levi. A gente só não sabe o motivo. E tem outra coisa…
— O quê?
— Você me ofereceu um lugar pra ficar hoje. Eu não teria quem me oferecesse abrigo se não fosse por essa maluquice toda.
A argumentação dele me calou. Naquele ponto, o Mikael tinha razão. Se não fosse por aquele fenômeno bizarro, ele seria só mais um freguês que passou pelo bar do Silva.
Percebi que os olhos dele estavam marejados. Suspirei tristemente enquanto o medo ainda se dissipava aos poucos. Minha respiração se normalizou lentamente, embora ainda houvesse, em mim, um resquício do pavor que eu senti.
Mikael desviou o olhar e voltou para o colchão no chão, sentando-se nele.
— Aquela sensação passou? — Ele indagou.
— Sim.
— Vamos deixar pra pensar nisso amanhã. Já tá tarde.
Assenti, concordando.
Levantei da cama e peguei a cartela do meu remédio para convulsões. Engoli o comprimido sem água mesmo, sentindo o sabor ruim dele na minha boca. Fui até o interruptor e apaguei a luz. Apenas as luzes dos postes da rua invadiam a janela. Retornei para a minha cama e me deitei sobre ela. Pude ver a silhueta do Mikael se deitando sobre o colchão e se cobrindo com o cobertor.
— Boa noite, Mikael. — Eu gostava de dormir deitado de lado, o que fazia com que minha visão ficasse direcionada ao colchão em que o Mikael estava. Puxei o meu próprio cobertor até os meus ombros e observei a silhueta do enfermeiro, iluminada apenas pelas luzes amareladas que vinham de fora.
— Boa noite, Wolfgang. — Ele retribuiu e eu mantive os meus olhos sobre ele, no escuro. Eu não era capaz de ver os olhos do Mikael e nem ele os meus. Não saberia dizer se ele já tinha os fechado.
Apesar de tudo, eu estava feliz por poder o abrigar na minha casa e o proteger da sua tormenta. Ao menos eu era capaz de o deixar seguro, apesar de todas as minhas malditas falhas
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