O Viajante - Capítulo XVI - Wolfgang - Março de 1973
Um rapaz virou a esquina e se aproximou apressadamente de Isabelle. Tive certeza que era o Levi. Sua versão da atualidade mantinha os cabelos raspados, tal qual o menino da fotografia de 1966. Mas agora já era um homem adulto e tinha uma barba por fazer no rosto. Também estava mais alto e mais forte do que na fotografia. Suas feições eram severas, os olhos eram escuros e a pele oliva. Ele carregava um aspecto cansado na face. Notei que sua camisa de estampa extravagante estava suja de algo escuro, supus ser graxa.
— É o Levi? — Ouvi a voz de Mikael. Nós dois estávamos próximos ao carro de Isabelle.
— Eu acho que sim. — Respondi enquanto observava o homem se aproximar da jornalista. Ele abriu um largo sorriso ao olhar o rosto da moça.
Os dois conversaram brevemente. Isabelle esboçou um sorriso tímido em resposta e ambos se aproximaram do carro.
Os olhos do Levi foram até mim e, no mesmo instante, o mundo ao meu redor escureceu. Meus braços e minhas pernas perderam a força enquanto um ruído estridente me deixou surdo para qualquer som além dele. Mikael me segurou segundos antes de eu perder totalmente a consciência.
—
Abri os olhos. Eu estava sentado no banco de trás do carro da Isabelle. Mikael estava sentado ao meu lado. Deduzi que ele me colocou no carro após eu desmaiar.
Vi que Isabelle estava dirigindo e Levi estava no banco do passageiro.
— Que merda… — Sussurrei enquanto esfregava os olhos.
O enfermeiro me encarou com um semblante aflito.
— Eu tava ficando preocupado. — Ele disse ao perceber que eu tinha voltado a mim. — Você tá bem?
Assenti para a pergunta. Notei Isabelle me olhando, rapidamente, com o canto dos olhos. Entretanto, logo sua atenção voltou para a estrada.
— Esse moleque tá chapado? — Ouvi Levi indagar. Ele tinha uma voz grave e, ao mesmo tempo, estridente. Havia alguma semelhança com o timbre do Silva.
— Não. — Isabelle respondeu. — Olha, eu disse que você só vai entender tudo quando a gente chegar na rua 18. Calma aí e relaxa.
— Eu só aceitei vir porque você é muito bonita pra eu conseguir negar o pedido, mas se isso é algum encontro de hippie, eu passo.
— Não é nada disso. — A jornalista respondeu com seriedade na voz.
— Vão me matar então? Me prender? — Ele riu.
— Não. Só fica quieto e espera a gente chegar. — A mulher reclamou, impaciente.
— À suas ordens. — Levi então virou o corpo ligeiramente para trás, de modo que seus olhos enxergassem Mikael e eu nos bancos traseiros.
— E você… Volf… — Levi franziu o cenho. Aparentemente, eu já tinha sido apresentado a ele. — Nome difícil… Parece nome de carro.
— Wolfgang. — Pronunciei meu nome lentamente.
— Porra, difícil pra caralho. Você não tem outro nome? Apelido? Sei lá…
— Grilo. — Mikael respondeu. Vi uma ameaça de sorriso sarcástico se formar na face sempre séria do enfermeiro.
Levi riu de forma alta e estridente.
— Você é um traidor do caralho. — Resmunguei, olhando com o canto dos olhos para o enfermeiro. Mikael riu e eu não consegui manter um semblante sério e cedi à risada também.
— E qual é a sua, Grilo? — O rapaz de cabelos raspados perguntou após recuperar o fôlego da risada.
— Eu já disse pra esperar. — Isabelle retrucou antes que eu respondesse. Agradeci a jornalista em meus pensamentos por eu não precisar entrar em uma conversa. Eu era inapto socialmente e só falava bobagens.
— Tá bom, princesa. Tá bom. — Levi disse em resposta e se virou para frente. Aparentemente, Isabelle o encantou com sua beleza.
Quase que de maneira involuntária, fitei Mikael com o canto dos meus olhos. Ele falava pouco quando estava perto de outras pessoas.
O enfermeiro me olhou de volta e apenas compartilhamos silêncio enquanto o carro se movia em direção àquela rua estranha. Eu senti que ia sorrir e quebrei o contato visual antes disso. Eu não queria permitir que meus sentimentos por ele se desenvolvessem mais do que o inevitável.
Encarei a janela do carro. Meu corpo ainda estava um pouco fraco devido ao desmaio e, jogado contra aquele banco acolchoado, observei a cidade anoitecendo.
—
Pela janela, notei que tínhamos chegado à rua da Alves Discos. Isabelle estacionou o carro em frente à loja.
Meu coração acelerou e meus olhos se encheram de lágrimas. Senti-me triste. Aquela dor avassaladora me atropelou e meu peito foi consumido por ela. Como era possível aguentar tanto sofrimento?
Abri a porta do carro e caminhei até o meio da rua. Meus olhos estavam cegos pelas lágrimas que os inundavam e escorriam pelo meu rosto.
Ouvi alguma conversa ao fundo e tive certeza que Mikael e Isabelle falaram comigo. Levi provavelmente soltou algum comentário. Porém, esses sons eram agora tão distantes que eu não conseguia entender o que eles falavam. A dor os calou e oprimiu meus pensamentos.
O chiado estridente apareceu, soando de forma contínua. O céu foi tomado pela densa mancha brilhante e verde que cobria as estrelas e a névoa invadiu o lugar. Minhas lágrimas deixaram minha visão embaçada e, em meio ao pranto, tudo o que eu via era o brilho verde, refletindo em minhas lágrimas cristalinas.
Sequei os meus olhos com a mão, mas não adiantou. Eu continuei chorando e logo minha visão ficou embaçada mais uma vez.
Olhei para trás e vi Mikael, Isabelle e Levi de forma distorcida pelas lágrimas. Levi estava exclamando algo de forma incrédula. Isabelle olhava ao redor, maravilhada e atônita e o brilho verde refletia em seus óculos. O Mikael estava me olhando.
Suas respectivas contrapartes mais jovens surgiram da névoa. Com hesitação, aquela Isabelle ainda adolescente se aproximou da jornalista adulta que, por sua vez, estava paralisada, com uma expressão de incredulidade.
Levi gritou algo para sua versão mais jovem, que se afastou com pressa e desapareceu no horizonte.
Mikael foi o único que não reagiu. Ele continuava me olhando e parecia não se importar com a presença de sua contraparte. Era recíproco, o Mikael adolescente, com uniforme do Colégio Presbiteriano, sequer olhou para o enfermeiro adulto e, em passos calmos, seguiu andando rua acima, até sumir na neblina.
Voltei a olhar para frente e vi minha versão púbere parada diante de mim.
— Que porra que tá acontecendo? — Encarei os meus olhos do passado. Eles também choravam. — Por que… Dói tanto? — Indaguei em meio a um soluço causado pelo choro.
— Você vai ver… — Minha contraparte respondeu afogada em seu próprio pranto.
Tudo ao meu redor pareceu girar em uma vertigem e minha visão escureceu.
—
A luz invadiu os meus olhos e minha cabeça doeu. Eu estava me sentindo tonto.
Percebi que estava sentado em algo desconfortável. Tateei o assento e, conforme meus olhos se acostumavam com a luz, percebi que estava dentro de um ônibus.
A luz verde invadia as janelas do veículo e o som agudo soava tão incômodo como sempre. O ônibus estava parado e vazio.
Exceto pela minha contraparte mais jovem que estava sentada no assento ao lado do meu.
Bruscamente, a luz esmeralda sumiu e o que entrou pela janela do ônibus foram raios de sol. Pelo vidro, via-se um dia ensolarado. O ônibus começou a se mover e algumas pessoas apareceram, subitamente, dentro do veículo. Eram passageiros, pessoas comuns.
Olhei ao redor, confuso. Minha versão adolescente ainda estava sentada ao meu lado, mesmo em plena luz do dia, num momento em que aquele estranho fenômeno do esplendor esmeralda não estava acontecendo.
Pela janela, reconheci a rua 18. O ônibus estava passando pela rua da Alves Discos.
Novamente, tudo escureceu.
—
Abri os meus olhos e me vi no meio da rua 18. Mikael, Isabelle e Levi estavam ali. A luz, o som e a névoa desapareceram naquele momento, bem como as nossas contrapartes mais jovens.
A rua da loja de discos se tornou uma rua qualquer, iluminada por postes, debaixo de um céu de estrelas brilhantes.
Eu ainda estava tonto. Não entendia nada do que estava acontecendo e sequer conseguia pensar, porque eu continuava atormentado por aquele sofrimento sem sentido.
Minhas pernas perderam a força e eu caí de joelhos no chão. Até mesmo a dor da pancada não foi o suficiente para me fazer reagir.
Mikael veio correndo até mim e eu vi Isabelle e Levi se aproximando também. O enfermeiro chegou mais rápido, pois estava mais próximo.
— O que foi? — Ele indagou assustado, oferecendo a mão para eu me levantar.
— Eu… — Sussurrei. Foi como se eu tivesse perdido tudo. Não havia mais nada para mim, só aquele sofrimento, ao passo que eu senti um medo inexplicável. — Tô com medo.
— Medo do quê? Wolfgang, seu nariz tá sangrando. — A voz do Mikael soou distante. Ele se agachou diante de mim. Eu o via, mas não estava o enxergando exatamente. Meus olhos estavam perdidos no horizonte. — Wolfgang! — O rapaz me chamou de novo.
— Isabelle, me ajuda aqui! — Ouvi Mikael gritar. Sua voz estava tão longe.
— Ele precisa ir pra um hospital… — A voz feminina de Isabelle ressoou ao fundo como o cantar de um pássaro que some no céu.
Tudo estava tão distante. Tão longe…
O mundo ao meu redor se dissipou e eu perdi a consciência.
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