O Viajante - Capítulo XLVIII - Isabelle - Maio de 1973
Eu era covarde.
Não tinha mais como fugir dessa verdade, eu sempre fui covarde. Naquele momento, essa dura realidade era confirmada pelas minhas pernas, apressadas, que me guiaram para longe da casa do Wolfgang, devido a briga entre o Levi e o Mikael.
Corri como um ratinho que era caçado por um gato. Eu tinha medo dos militares, da polícia, do Eduardo, do meu passado e agora temia o Levi, o Mikael e o Wolfgang. Sentia, a todo tempo, os olhos do mundo me fitando com acusações e hostilidade e evadia. Tudo o que eu fazia, na minha vida, era fugir.
A névoa cobria o horizonte e corri tanto que não soube onde estava. Eu só enxergava o asfalto de uma rua vazia diante dos meus olhos, cercada por calçadas cinzentas e repletas de rachaduras em que o mato ousava crescer.
Parei de andar ao perceber que estava perdida. Não havia nenhum sinal que me indicasse como voltar para a casa do Wolfgang.
E eu nem sabia se queria voltar. O Levi e o Mikael desistiram de procurar soluções e se atracaram como dois cães, descontando um no outro o pavor que sentiam.
Mas quem era eu para condenar a forma com que eles lidavam com o medo se, tudo o que eu fazia, era fugir?
Sequei as lágrimas, que escorriam dos meus olhos, e me vi desejando ser apagada da existência pelo Wolfgang. Senti a mesma sensação de vazio daquela noite em que o Eduardo me deixou sozinha no meu apartamento.
Naquela ocasião, eu tinha passado o dia inteiro chorando, com ele ao meu lado, por causa do desaparecimento do meu pai. Quando a noite caiu, cansado de me ver sofrer, o Edu disse que já era hora de parar de me lamentar e encarar a minha dor. Depois de suas palavras dolorosas, ele foi embora - minhas súplicas para o rapaz continuar comigo não funcionaram. No fim, concretizei a ameaça que fizera ao Eduardo e tentei desaparecer do mundo.
Submersa nessas lembranças, olhei para a luz pulsante no firmamento, emanando feixes esmeralda, e deixei as lágrimas escorrerem. O choro escalou para soluços altos e gritos, que ecoavam no ar, e se misturavam ao guincho.
Algo se agitou dentro do meu peito. Começou como um tremor breve e suave e se espalhou pelo meu corpo, comprimindo os meus músculos e fazendo os meus olhos se arregalaram. Era quente e assustador, mas também me fazia acordar e querer me mover.
Percebi que desejava sobreviver, independente de qualquer coisa. Eu deveria lutar e não só fugir. Surgiu, em mim, a necessidade de continuar firme e teimosamente ali, sem ser erradicada e sem me esconder.
Apesar de tudo, era bom sentir desejo de sobreviver. O ar entrava e saía do meu peito, meu coração pulsava, o sangue corria em minhas veias e tudo isso significava que eu estava viva. Extraordinariamente viva.
Fui acometida por minutos de euforia e, diante de todo aquele caos, sorri por ainda possuir ânsia pela vida.
Porém, aquela plenitude logo se quebrou.
Meus ouvidos captaram passos atrás de mim. Virei para olhar e vi uma silhueta, de um corpo pequeno, se formando na neblina. A constituição era estreita e baixa demais para ser um homem adulto. Quanto mais ela se aproximava, mais nítido ficava que era uma mulher. Consegui distinguir os cabelos volumosos, que iam até abaixo do ombro, e a saia que pendia até os seus joelhos.
Quando a imagem se revelou, ainda levemente enevoada, reconheci aquele rosto, ainda que nunca tivesse a visto. Era a mãe do Wolfgang, sem sombra de dúvidas. A mulher tinha os mesmos olhos negros e brilhantes dele, assim como as maçãs do rosto evidentes, o queixo suave e os lábios finos. Seus cabelos eram tão pretos quanto os do filho e as ondas emaranhadas iam até suas costas. O vestido que usava era amarelo, cobrindo-lhe as pernas até a altura do joelho.
Ela arregalou os olhos ao me ver.
— Quem é você? — E franziu o cenho ao perguntar.
— Isabelle. — Respondi sem saber exatamente como abordar aquela mulher. Eu nem mesmo sabia o que estava acontecendo. — Você é a mãe do Wolfgang, não é? — Me esforcei para me lembrar do nome dela e ele logo me veio à língua. — Rosa, certo?
— Por favor, me ajuda... — Sua voz saiu em uma súplica. — Você viu meu filho?
Olhei-a confusa. O Wolfgang contou que ela sumiu quando ele ainda era um bebê e aquela pessoa diante de mim devia ter, no máximo, uns vinte anos. De certo, era a Rosa na época em que desapareceu. Portanto, eu não sabia dizer qual das versões do filho ela procurava.
— Qual deles? — A pergunta me escapou à boca.
Rosa me encarou atordoada e cerrou seus olhos.
— Você também viu ele crescido? — A mulher estava nervosa, dava para notar suas mãos tremendo, os olhos inchados e chorosos e a fala acelerada.
— Rosa... — O semblante desesperado da mãe do Wolfgang se acentuou. — Eu conheci ele já adulto. Sou amiga do Wolfgang.
Sua mão trêmula foi até o peito, ela agarrou o tecido do vestido e o apertou, como quem sentisse dor. Seus lábios formaram um sorriso ao passo que seus olhos permaneceram desesperados.
— Ele tá mesmo vivo? — Suas lágrimas torrenciais escorriam até o queixo e pingavam no chão.
— Sim. O Wolfgang tá vivo. — O pranto dela me contagiou e senti um nó na minha garganta. — Ele... — Hesitei em fazer aquela pergunta, seria cruel da minha parte. Porém, senti algumas luzes se acenderem em minha cabeça e mais peças, daquele quebra-cabeça, pareceram se encaixar.
Se Rosa estava chorando, perguntou se o Wolfgang estava vivo e sorriu ao ouvir a resposta, era porque, em algum momento do passado, ele morreu.
— Aconteceu alguma coisa com ele? — Enfim, indaguei.
Percebi que, ao ouvir a pergunta, as pernas da mulher tremeram, o sorriso se desfez e ela apertou o vestido com mais força. Sua respiração se tornou intensa e saiu ruidosamente de sua garganta. O choro, que já era violento, se tornou incontrolável e Rosa começou a gritar palavras ininteligíveis que acabaram se tornando berros intensos e guturais.
Tomei um susto com a sua reação. Ao ver aquela dor, cedi e chorei também. Eu estava com medo e remoendo dores passadas, bastava uma pequena gota para meus olhos transbordarem de novo.
Me aproximei dela - que ainda urrava e chorava - e com certo receio, toquei-lhe o ombro. Rosa me encarou e eu me dei conta que nunca vi tanto sofrimento estampado no rosto de alguém. A face, iluminada pelo fulgor do céu, tinha rastros de lágrimas por toda a extensão das bochechas, as sobrancelhas estavam franzidas e os olhos arregalados, tão chorosos, que refletiam o brilho verde e cintilavam.
Dei-lhe um abraço, pois senti muita pena dela. Seus gritos se calaram e ela passou a murmurar algo enquanto chorava. Suas lágrimas molhavam a minha camiseta e eu permaneci abraçada com a Rosa até o seu horror se dissipar. Seria impossível fazê-la parar de chorar, afinal não existia acalento para um filho morto.
Aquele abraço perdurou por um bom tempo..
— Onde o Wolfgang tá? — Perguntou após se afastar de mim e limpar o rosto com as costas da mão.
— Eu também tô procurando ele. — Tentei demonstrar tranquilidade na voz.
— Meu anjinho... — Rosa balbuciou olhando para o vazio. — Eu vi ele, já adulto, com um moço alto no portão da minha casa, mas eles sumiram...
— O Mikael. — Inferi. — É o... — Percebi que diria a palavra "namorado", assustei-me com minha desatenção e tentei não deixara Rosa notar que interrompi minha fala tão bruscamente. — O melhor amigo dele.
— Meu anjo tá vivo! Onde ele tá?
— Não sei. Eu tava com o Wolfgang e outros dois amigos. Mas esse mundo começou e... Ele sumiu.
— Sumiu? — Ela franziu o cenho e adotou um olhar taciturno. — Você disse que ele tá vivo! — Sua voz ficou mais alta e as palavras se revezaram entre sibilos e gritos. — Você tá mentindo?
— Calma! — Notoriamente, a mãe do Wolfgang não estava bem. Eu precisava ter cuidado com as palavras. — Muitas coisas aconteceram e eu descobri que, nesse lugar, o passado pode ser mudado. Eu conheço o Wolfgang, ele é meu amigo. É um rapaz que trabalha em um bar e se parece muito com você... — Ao ouvir aquilo, suas sobrancelhas relaxaram e seus olhos fitaram os meus com atenção.
— Mas você tá nervosa, muito nervosa. E pelo o que você tá falando... O Wolfgang morreu. Mas, nesse mundo em que a gente tá, você pode mudar o passado. Me diz... Você mexeu no tempo pra salvar a vida do seu filho?
Rosa assentiu positivamente com a cabeça.
— Tá tudo bem com ele, Rosa. Eu só...
— Não! — Ela me interrompeu. — Eu mexi no destino, mas, ainda assim, não consegui salvar o Wolfgang.
Meu coração acelerou e eu era capaz de ouvir a minha própria respiração pesada. Minhas mãos ficaram frias e úmidas pelo suor e a necessidade de sobreviver me incendiou de dentro para fora de novo.
— Mas eu conheço o Wolfgang. Ele não pode ter morrido. — Eu já não sabia mais o que estava acontecendo.
— Eu tentei... — A angústia, em sua voz, se tornou intensa e ela virou o rosto para o lado esquerdo, observando algo no horizonte. Segui o seu olhar e, na densa neblina, enxerguei uma silhueta.
Era pequena, magra e nitidamente feminina.
— Tentei demais. — Ela se justificou. — Não sei quantas vezes...
O vulto se revelou quando uma mulher idêntica à Rosa surgiu por entre a névoa. Ela também chorava e seus soluços eram altos.
Recuei alguns passos assustada com o que vi e me lembrei do relato do Mikael sobre as inúmeras contrapartes da mãe do Wolfgang.
No horizonte, vislumbrei algo se mexer. Outra Rosa apareceu, também chorando alto, em gritos aflitos de puro sofrimento.
A cada segundo, eu via mais uma versão da mulher aparecer, surgindo da neblina. Todas choravam alto e carregavam um olhar apavorado olhos inchados e cabelos negros e desgranhados.
Quando dei por mim, o meu campo de visão estava repleto de cópias da mãe do Wolfgang. Com o canto dos olhos, procurei uma brecha para fugir. Recuei alguns passos, andando para trás, pois era o único caminho que eu podia seguir sem esbarrar em uma daquelas mulheres.
Por eu ser uma estranha ali, atraí a atenção das inúmeras versões da Rosa.
E, perdidas em agonia, elas se aglomeraram e correram em minha direção. Identifiquei, naquele coro de vozes, perguntas sobre o Wolfgang. Meus olhos percorreram por todas elas e contabilizei 11 - somado com a contraparte que eu já havia conversado.
O calor da presença de tantas pessoas fez a minha pele suar. Elas vinham até mim pela frente e pelas laterais, me cercando com suas respirações pesadas e estreitando nossas distâncias. Quanto mais perto chegavam de mim, maior era a sensação de estar sendo sufocada.
Eram onze mulheres idênticas e desesperadas vindo em minha direção. Senti pena de as deixar ali, sem respostas sobre o filho. Porém, eu não sabia o que fazer, uma vez que nem mesmo entendia o que estava havendo. Tudo o que eu tinha era a minha palavra garantindo que conhecia o Wolfgang adulto.
Virei as costas e acelerei o meu passo, mas não adiantou. Elas eram muitas e, no ápice da angústia em que se encontravam, tinham forças para mover montanhas.
As mãos, de algumas delas, me seguraram pelos braços. As palmas eram calejadas e, apesar de serem pequenas, eram fortes. Os toques de mãos afoitas se tornaram apertões dolorosos e algumas unhas se cravaram na minha carne.
Eu estava imobilizada por elas e não tinha mais como correr. Nenhuma das versões da Rosa parecia ter a intenção de me machucar, elas só estavam atormentadas pela morte do filho. Entretanto, todo aquele sofrimento as fazia agir de forma brusca e implacável e isso era assustador.
Eram capazes de tudo para encontrar o filho e eu estava nas mãos delas. Tudo o que eu queria era fugir, me tornei a presa caçada por mulheres que não tinham mais nada a perder, agarradas apenas à esperança de ver o Wolfgang novamente. Meu corpo, com a sobrevivência correndo pelas veias, se debatia, incapaz de ficar parado.
— Cadê o meu filho? — Esse grito ecoou, vinha de mais de uma delas.
— Eu não sei! — Meu medo me fez chorar mais e meu berro foi quase infantil. — Eu não sei onde o Wolfgang tá!
— Quem é você? — Uma indagou.
— Ela conhece o Wolfgang! Conhece ele adulto! — Julguei que, quem falou isso, foi a primeira versão da Rosa que eu encontrei. — Ele tá vivo!
— Ele tá bem? — Essa pergunta também reverberou.
— Tá. Mas eu não sei onde o Wolfgang tá! Eu também tô procurando! — Respondi. As vozes reverberavam, enquanto as mãos me apertavam e me puxavam para trás. Me afoguei em um pânico que fez minhas pernas fraquejarem e caí de costas para elas.
Suas unhas deslizaram sobre a minha pele durante a minha queda, deixando pequenos rastros feridos. Pensei que elas me agarrariam e dilacerariam a minha carne, mas, para minha surpresa, as Rosas me apoiaram com suas mãos e braços e eu me vi sendo segurada por aquelas mulheres. Seus olhos negros e consternados me atravessaram.
Mesmo com os corações destruídos e feridas de morte, aquelas mulheres se deram ao trabalho de impedir a minha queda e afrouxar os dedos que machucavam os meus braços. A maneira como me apoiavam era cuidadosa. Quando perceberam que perdi o equilíbrio, o desatino do toque delas sumiu, dando lugar à gentileza.
Me lembrei da Catarina. Ela nunca deixou de me amparar após o desaparecimento do meu pai. Quando a procurei, a minha antiga professora tentou me fazer desistir de publicar no jornal, pois temia que eu tivesse o mesmo destino do Álvaro. Porém, com seu insucesso, se preocupou em sempre me ouvir e me aconselhar com ternura.
Catarina e sua esposa, a essa altura, deviam estar muito machucadas devido às torturas - isso se não estivessem mortas. Era tão doloroso refletir sobre elas.
Também pensei em minha mãe e suas cartas que imploravam para eu ir morar com ela. Eu sentia saudade de suas palavras gentis, do seu carinho e do seu amor. Rosa e suas contrapartes me trouxeram a lembrança do meu ninho e do cuidado que eu abri mão.
Era impossível ficar inerte perante a dor delas.
— Eu ajudo vocês a procurarem o Wolfgang... — Foi difícil falar, o medo prendia as palavras dentro de mim. — A gente vai achar ele, prometo. — Demonstrei firmeza e, com o amparo delas, consegui me erguer.
Contemplei os seus olhares esperançosos e, por alguma razão, a promessa que eu fiz me trouxe uma tranquilidade pura e leve, tal como uma brisa. O peso de todos os meus temores se desfez e a única urgência era achar o Wolfgang e trazer paz para o coração delas.
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